quarta-feira, março 11, 2009

As Intimidades de Analu e Fernanda


Com narrativa semelhante às produções hollywoodianas dos anos 40, "As Intimidades de Analu e Fernanda" (1980) levava ao público brasileiro, em um período marcante de abertura na vida nacional, aquilo que o diretor e roteirista José Miziara sabia fazer de melhor: rocamboles eróticos, oportunistas, transpassados por certo moralismo ingênuo e machismo de anedota, daqueles nos quais se a mulher não é frágil, é neurótica. Se não é obediente, é fácil.

Frágil e fácil, a heroína Analu (Helena Ramos) desiste do marido Gilberto (Ênio Gonçalves), escuta o lp "Guto Para Viver"(?!?), bebe uísque contrabandeado e conhece em um botequim Fernanda (Márcia Maria), pantera emancipada, dominadora, que se toma de amores por ela. As duas partem para uma casa de praia em Ubatuba, vivem um romance, trocam juras de amor e confidências.

Terminasse aqui o argumento, teríamos um belo drama de costumes -- no estilo que a Boca produzia aos montes -- sobre um casal diferente. Uma reflexão -- pinçada do erotismo comercial -- sobre o amor entre iguais. Mas como nada é fácil, Miziara achou por bem que duas mulheres juntas vivem necessariamente angustiadas por algo que falta.

E o que falta? O pênis, claro. Na presença de um, tanto Analu quanto Fernanda desmontariam sua paixão de aparências. Eis que surge o garanhão -- um garanhão qualquer, tosco e gaiato -- que seduz ambas e provoca o fim do relacionamento. Primeiro, Fernanda vê Analu aos risos com o rapaz. Em seguida, parte para cima dele e os dois transam. Analu presencia a cena e foge.

Desorientada, perambulando seu corpinho bronzeado pelas areias quentes, Helena Ramos encontra Maurício do Valle, no papel de um pescador bêbado, sobre o qual Glauber Rocha faria centenas de obscuras alegorias. Febril em ciúmes de Fernanda, resolve se deixar possuir pelo caiçara. Vira de bruços, e Maurício do Valle logra o êxtase, em uma parte de Benedita (primeiro nome de La Ramos) onde muitos gostariam de estar.

O que incomoda em "As Intimidades", mais do que esse esquema simplório -- que em outros casos soaria engraçado --, é a crença mórbida em uma culpa inevitável, que ninguém sabe de onde vem. A iluminação noir, o olhar pesado da câmera, tudo nos induz à crença de que elas fazem algo de muito espúrio, que terminará em desagregação e tragédia.

Se não há indícios de religião, nem de moral vinculada, há -- à semelhança de "Embalos Alucinantes" -- uma motivação particular do diretor. Ou Miziara era hipócrita e acreditava que seguindo um código Hays conquistaria uma platéia menos tolerante, ou seu pensamento era contraditório ao ponto de trabalhar em um meio permissivo manipulando repressão insidiosa.

Até um parecer (4190/80) da Censura, emitido em 4 de agosto de 1980, foi taxativo em dizer que "Apesar da exploração do lesbianismo, o assunto é tratado com certa seriedade (...) atenuado por um desfecho que desencoraja a prática de atitudes similares (...)."

Quando Fernanda encontra Analu desmaiada na praia (dotes calipígicos à mostra, como convém a um suspense made in Boca), o relacionamento entre as duas já terminou. Mas como bem disse a senhora censora, Fernanda está louca, e começa a perseguir Analu para que a miséria, a penúria existencial se consuma.

Há no desfecho de thriller toda uma explicação vitimizante para Analu -- ela seria eternamente "refém" de seus casos amorosos -- que não convence. Persiste uma lição prussiana, como se fugir ao rigor das convenções sociais enrolasse tanto o ser humano em perigos que a libertação só fosse possível através do retorno dócil às mesmas convenções. Um ciclo vicioso e controlador. Mensagem mais reacionária que essa, impossível.

Bom lembrarmos que "As Intimidades de Analu e Fernanda" rivalizou nos cinemas -- menos de seis meses de intervalo entre os lançamentos -- com duas das mais libertárias produções da história: "Giselle", fábula de Carlo Mossy, e o sensacional "Império do Desejo", de Carlos Reichenbach. Se possível, recomendo vê-los em maratona: Mossy, o sexo schopenhaueriano; Reichenbach, uma discussão franca sobre quando termina a ideologia e começa a perversão; e Miziara, o lúmpen aburguesado, dialética de algo que não servindo para explicar, é falho mesmo em confundir.


24 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Querida Andréa,
Primeiro, muito obrigado por atender meu pedido, fico lisonjeado.
Mas...

Há muito não lia uma crítica tão raivosa sua.
E, ainda que concorde com você em várias coisas, "As Intimidades de Analu e Fernanda" me desperta interesse.

Discordo quando você diz que as duas se deixam seduzir pelo gaiato. Não é bem assim, ne não?
Analu tenta fugir das investidas insistentes dele na praia, e quando Fernanda acha que a primeira se deixou seduzir, ela fica com o gaiato só para afrontar Analu.

É lógico que há um moralismo muito grande no filme, como o fato de associar Fernanda ao mal e à loucura - uma alusão clara a sexualidade dela, mas ao contrário de você, vejo aquele final da aliança, não como uma solução hipócrita, mas como se o filme não visse diferença em nenhum dos dois personagens, o do marido e a da amante.

E não vejo Analu como uma vítima deles, ou que tenha que se submeter docilmente ao seu cativeiro, mas como se fosse vítima sim de uma arapuca, de um labirinto do qual tenta, mas não cosnegue sair. E a câmera fixa no seu rosto com o dedo de aliança à frente reforça isso.

Bom, estou eu aqui de chato analisando sua crítica. Mas é que, ainda que encharcado de moralismo, me parece que As Intimidades de Analu e Fernanda fala de algo mais.
Bjs e obrigado.
Adilson

Adilson Marcelino disse...

E não tome minhas palavras como oposição a sua crítica, pois a sua crítica é soberana.
Mas é porque acho que temos espaço para isso.
Bjs

Andrea Ormond disse...

Adilson, adoro quando discordam de mim em alguma crítica. Aliás, gostaria que os leitores discordassem mais e expusessem mais os seu pontos de vista, pra gente esquentar o debate sobre o cinema nacional.

A questão é que "Analu e Fernanda" me pareceu de um moralismo terrível. O interesse de Analu por Fernanda se dá por conta de um casamento arruinado, e ela embarca numa novidade mal resolvida, que termina de maneira psycho. A sapata louca querendo assassinar a que lhe deu um fora rsrs

Percebo que no filme os homens são sempre retratados de maneira forte. E as mulheres, que deveriam ser as heroínas, são fracas e manipuláveis. Miziara, me parece, funcionou como um anti-Jean Garrett.

Igualar Fernanda e o marido, como vc bem lembrou, não salva o filme dessa mensagem machista. Pelo contrário, a ressalta, pois Analu nunca é forte o suficiente para se libertar.

Até para se livrar do gaiato, ela apela a um marido imaginário. Ou seja, a mensagem é sempre delas à mercê da posse masculina, o que é triste. E a Fernanda não seria nada além do que um homem de saias? Falta sutileza no roteiro para diferenciar a experiência feminina da masculina.

A época tb é ingrata para a análise, pois eram tempos de "Giselle", "Império do Desejo" e "Os Imorais", que dão conta do tema de forma bem mais inteligente, expressiva, libertária. Na minha opinião, isso não significa ser "a favor da causa gls", mas ver a sexualidade, no geral, de maneira mais tolerante.

Não havia escrito antes sobre "As Intimidades" por conta disso. sabia que ia subir nas tamancas rsrs Agradeço pelo comentário e pela oportunidade da gente debater. Beijos, querido.

Adilson Marcelino disse...

Ah que bom Andréa, pois depois de publicar minhas impressões fiquei com um certo receio de estar sendo invasivo.

Então, é claro que As Intimidades de Analu e Fernanda é muito moralista. Concordo com isso. Como é moralista também, fazendo um giro, o Atração Fatal, de Adryan Line, ainda que de outra forma.

Mas não sei, O Intimidades tem alguma coisa que me fascina, e já começa pela cena da aliança, que você deplora tanto. Vejo ali algo mais, não uma mulher submetida a um homem, mas uma pessoa presa em uma arapuca, da qual ela tenta se debater, mas não tem o total controle - como em muitas coisas na vida da gente, um namoro complicado, um trabalho indigesto, uma amizade pesada.

Enfim, há ali, pelo menos sinto assim, muito mais que uma mulher se submetendo às convenções de forma dócil, como você vê. Não há doçura, há raiva, há pavor nos olhos dela. Mas não uma raiva ou pavor de vítima, pelo menos não nessa cena crucial, mas de alguém acuado contra a vontade.

Também não vejo os homens fortes, eles são risíveis: o machismo de almanaque do Ênio; a canastrice sedutora do gaiato; a sordidez do Maurício.

E Analu não inicia um romance homossexual porque saiu de uma relação hetero fracassada. Ela simplesmente pegou o que achou pelo caminho. Mas aí viu que a roupa seria a mesma e não quis continuar.
E acho que isso poderia ter se dado também caso fosse um outro homem.

Concordo quando você fala da ausência do pênis, mas vejo essa ausência do pênis, e estamos, claro, falando de psicanálise, inclusive naqueles homens. Não a ausência física, mas a incapacidade deles de lidar com aquelas mulheres que querem tirá-los de suas vidas, seja porque sua vida está no mesmo sexo, seja porque a estrada de fuga torna-se uma possibilidade.

O maniqueísmo maior está na persoangem Fernanda, sobretudo na loucura associada à sexualidade. Sei disso. Sei muito bem disso. Mas infelizmente já vi muitas mulheres assim, sejam heteros ou homos.

Também acho que o cinema e outras artes quase sempre nos vê - e aí estou me incluindo - os homossexuais, de um forma torta. E é porque o sexo é mesmo um agente que abala o poder, e incomoda ainda mais quando é considerado desviante.

Mas mesmo que ainda seja assim, EXISTEM homos e heteros como a Fernanda, que se não matam de verdade, matam ou tentam matar de outras formas.

Agora, é claro que isso fica potencializado quando é homo, porque associar a sexualidade a também o que consideram um desvio de caráter ou de sanidade, é encarar a questão com um reducionismo que dói e incomoda até a medula.

Não sei, quando digo que o filme diz algo mais, não é porque aprovo o moralismo dele - longe disso -, mas por achar que, de certa forma, ele fala de algo real, de algo obscuro, que ainda não sei por completo.
Bjs

Adilson Marcelino disse...

Mais uma coisinha, na verdade, um esclarecimento.
Quando digo que vejo homens e mulheres como a Fernanda, seja heteros ou homo, é claro que estou falando da obsessão dela. Não no maniqueísmo que ela é delineada, longe disso.
Pois o que empobrece as amplas possibilidades da personagem é exatamente o maniqueísmo reducionista.
Bjs

Andrea Ormond disse...

Entendo o q vc quer dizer, Adilson, e acho que é outra leitura possível. Infelizmente não consigo vê-lo dessa forma, e o filme me causa certa indignação.

Vc fez essa outra releitura do "Intimidades" que achei interessantíssima. Mas à sombra de "Império do Desejo", "Os Imorais" etc, me incomoda a falta de sutileza e jeito de "Analu e Fernanda".

Para escrever a crítica dei uma olhada na documentação da censura e vi que o filme, salvo engano ou documento faltoso, foi liberado sem cortes. E até com elogios. Isso é outra coisa que me incomodou bastante, em se tratando da época.

A questão é que a bi/homossexualidade sempre foi muito mal tratada no cinema nacional. Quis ressaltar no texto esse vício dos esquemas e dos estereótipos, no qual "As Intimidades" me parece campeoníssimo.

Vou manter meu ponto de vista e espero que vc não fique chateado comigo rsrs: há por trás do roteiro toda uma maldade dialética.

Há também uma tentativa clara de atrelar a vontade da mulher ao poder fálico, masculino. As mulheres são somente homens sem pênis, o que é um raciocínio que nem o Ody Fraga em seus piores momentos abraçaria.

Não quero dizer com isso que bissexuais ou homossexuais sejam inimputáveis. Mas por que só retratá-los, em 90 minutos, de forma fraca e negativa? O marido vive se dando bem com as mulheres, está feliz com a sua sexualidade. Fernanda e Analu são desestabilizadas por um trouxa de praia qualquer.

Penso naquilo tudo dirigido e roteirizado pelo Garrett e vejo um filme melhor, menos esquemático. Beijos!

Adilson Marcelino disse...

Qerida, é claro que jamais ficaria chateado. O que vale aqui é a crítica e não a imposição do olhar.
É porque se o cinema brasileiro, sobretudo o mais popular é poquíssimo analisado, só vejo aqui e na Zingu!, ter a possibilidade de discuti-lo é melhor ainda, algo que me faz completamente apaixonado pelo formato blog.
Só espero que você tenha realmente entendido as coisas que quis dizer, que realmente tenha entendido.
Obrigado pela oportunidade da troca.
Bjs
Adilson

Anônimo disse...

Andrea e Adilson

gostaria de esquentar o debate, mas ainda não prestei atenção ao filme devidamente - não que eu seja algum especialista como vcs - mas aviso que passa no Canal Brasil esta semana, dias 13/03 - 02:30 e 29/03 - 04:20

saudações a todos

Fofão disse...

Andrea, seu senso de humor é precioso. A descrição da cena do pescador é hilária. Ainda por cima me ensinou um adjetivo novo, "calipígio", ótimo para mexer com as moças que passam na porta do boteco (brincadeirinha...).

Por vício de historiador, eu trato os filmes da boca como documento de época. Nesse sentido, tudo que você diz é verdade, e por isso mesmo acho o filme sensacional não como obra, nem como discurso, mas como indicativo daquela encruzilhada moral do início dos anos 80: liberação na prática e encucação nos valores.

Para os leitores que se interessam pelo amor lésbico, hoje o Canal Brasil está inspirado. Antes da Analu, passa "Amor Maldito" (0h15, reprise de sábado para domingo às 4h20). Depois dela, "O Olho Mágico do Amor" (4h20), que não deixa de tocar na questão.

Quanto a Miziara, acho que seu grande acerto foi mesmo "Pecado Horizontal", cheio da saudável brejeirice safada típica das pornochanchadas. Já que você tem aceitado pedidos, poderia fazer uma resenha dele, que tal?

Um abraço.

Anônimo disse...

Oi,
Como o Adilson também sou fã de Analu e Fernanda e deste filme do mestre Miziara. Poxa vida, será que ninguém aí viu "Pecado Horizontal", um dos melhores filmes feitos na Rua do Triunfo de SP. Não achei o resultado moralista não e sim um excelente pornodrama. Creio que a atuação da grande musa e genial atriz Helena Ramos nesse filme (bem como no Patty, Uma Mulher Proibida do Gonzaga) são as melhores interpretações dela no cinema. E quanto a Márcia Maria, é outra atriz maravilhosa que infelizmente está esquecida.
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com

Andrea Ormond disse...

Adilson, ontem estava conversando com uma amiga e nós estávamos falando justamente disso. As pessoas hoje em dia não compreendem a crítica construtiva, tomam qq discordância como se fosse algo pessoal, é terrível. O debate serviu principalmente para oferecer uma outra leitura do filme, além da que eu tive. Acho isso um luxo, fundamental! Beijos

Bom aviso, Daniel! Aliás, o timing foi ótimo.

A minha visão a respeito do filme trafegou por aí, Fofão. Esta quebra entre liberdade e moralismo, principalmente tendo-se em conta a perspectiva superficial com que a homossexualidade me pareceu ser tratada. "Amor Maldito" é outro exemplo trash, mas que acaba indo pelo lado trágico, baseado em fatos reais. Em resumo, a expressão "maldade dialética" serve de emblema para descrever o que observei no "Analu e Fernanda". "Pecado Horizontal" é uma boa, divertido. Vou conseguir uma cópia para revê-lo :) Abraços

Matheus, vc se situa em um terreno entre o Adilson e eu. Eu e ele concordamos quanto ao moralismo gritante do filme, vc não vê desta forma. Viva a diferença, já diriam em Stonewall rsrs Em relação a Helena Ramos, "Mulher Objeto" caiu como uma luva para ela. Os olhares, a histeria. Para mim, esta é a melhor atuação da Benê Ramos.

Adilson Marcelino disse...

Pois é Matheus. Minha leitura se diferencia da Andréa, porque ela vê moralismo no filme todo, já eu vejo esse moralismo é na personagem Fernanda, na forma como ele é construída, associando homossexualidade à insanidade e desequilíbrio. Mas não na personagem Ananalu, que a Andréa vê como vítima e eu vejo como uma mulher acuada. E o que me aproxima da sua leitura, é que como você, eu gosto muito de "As Intimidades de Analu e Fernanda". É um filme que tem muito a me dizer.

Andréa, que bom que gostou das nossas conversas por aqui, também gostei muito.
Bjs

Anônimo disse...

Como sempre uma crítica brilhante, Andrea, embora discorde dela. Nesse caso estou mais de acordo com o que o Adilson Marcelino disse.

Só porque a personagem lésbica vivida por Marcia Maria é a "vilã" o filme é machista - inclusive porque, como foi lembrado, o "maridão" é retratado sem piedade? Será que em todos os casos em que o vilão da história é negro, índio, judeu, árabe, homossexual, a obra merece ser automaticamente ser condenada como preconceituosa? No caso, por exemplo, de "O Nascimento de uma Nação", onde todos os negros e abolicionistas são imbecis ou malvados, ninguém tem a menor dúvida. Na Hollywood de hoje em dia, onde todos os árabes são vilões, eu também não duvido. Em outros casos, a coisa é bem mais complicada. Em "Esse Obscuro Objeto do Desejo", a protagonista feminina faz gato e sapato do personagem de Fernando Rey, isso significa que o filme é machista? Ou então, retratar o Fernando Rey como um otário faz dele um filme feminista? Um filme merece ser condenado porque uma personagem com a qual simpatizamos acaba sendo retratada de forma pouco lisonjeira?

E qual seria o rumo "adequado" para o filme então? As duas vivendo felizes para sempre e triunfando sobre o marido cruel, ou então acabando "vítimas" dele? Não seria, esse sim, um desfecho maniqueísta?

Também não acho que a Helena Ramos no filme encarne o estereótipo da mulher frágil, submissa, influenciável. Fragilizada sim, mas não frágil. Aquela cena no início do filme em que ela enfrenta o Ênio Gonçalves, que está de revólver em punho, e o desmoraliza, é emblemática nesse sentido.

Bem, enfim, eu particularmente gostei bastante do filme, do enredo, da qualidade técnica, e também da primorosa seleção do elenco. Que time de atores maravilhosos, Ênio Gonçalves, Marcia Maria, Helena Ramos, e até, que luxo, Maurício do Valle fazendo uma ponta. Não era toda produção da Boca que tinha essa preocupação. Acho que o filme também merece esse reconhecimento.

De qualquer forma, Andrea, toda unanimidade é burra, é sempre um prazer ler suas resenhas, mesmo nos raros casos em que não concordo com elas, e estamos sempre de acordo no essencial, a admiração pelo cinema brasileiro das décadas de 70 e início da de 80.

Andrea Ormond disse...

Jorge, "Esse Obscuro Objeto do Desejo" me parece sim, uma crítica à angústia de posse e às imposições masculinas. Neste aspecto, ele se liga bastante aos movimentos feministas dos anos 70, que discutiam isso.

Não gosto muito quando alguém diz depreciativamente que uma obra de arte é "datada" -- a médio e longo prazo tudo será datado, logo o termo me parece vicioso. Mas ao mesmo tempo não consigo separar um filme do tempo e contexto em que foi produzido.

No contexto da Boca, os filmes do MIziara me parecem nunca ascenderem além das visões de mundo da época, talvez buscando um público mais tradicional, classe-média.

Ainda naquele contexto, estávamos em uma época de profundas mudanças no país. A gente sabe que a censura em 1980 era uma guerra, muitas vezes os produtores e diretores gastavam fortunas para se locomoverem até Brasília e assim evitarem que seus filmes fossem mutilados e até proibidos.

Nesse estado de coisas, "As Intimidades de Analu e Fernanda" recebeu pareceres elogiosos (!), afirmando que desencorajava a prática do lesbianismo. Para mim, não existe prova mais cabal de que o filme guarda sim, o moralismo na manga.

Não me parece existir "rumo adequado" para um filme. Mas a gente pode apontar vícios e vicissitudes, relacionados à época e ao gênio dos envolvidos. O que percebo de mais gritante no filme é que ele parece não "compreender", não "atingir" o que seja o relacionamento amoroso entre duas mulheres. E neste aspecto, ainda força a mão em um poder invasivo do sexo oposto.

Poderia ser um filme sobre um casal hetero em que o diretor e roteirista cometesse a mesma falha.

Não sou feminista ou militante GLBT xiita. Apesar de conhecer a pressão que um homem/mulher bi/homo sofre cotidianamente na sociedade, não radicalizo para o outro lado, querendo um mundo "ideal".

Somente acho que apesar do elenco fantástico, do esforço sincero e da qualidade técnica, "As Intimidades" tem menos sutilezas do que parece. Isso o aproxima inclusive de certo estilo do cinema hollywoodiano, como ressaltei no texto. A Boca, com todos os seus atropelos eróticos, sempre fez melhor.

E vc está certo, Jorge, toda unanimidade é burra. Oferecemos aqui amplas visões do filme, todas bem fundamentadas, para o leitor. Isso me parece importante para manter a crítica e a obra cinematográfica vivas.

Anônimo disse...

Estou adorando o debate, que realmente esquentou sobre esse filme. Concordo com a Andrea quanto ao subtexto, posteriormente enfatizado explicitamente em Atração Fatal, de que procurar aventuras fora do casamento pode dar problemas. Mas ainda assim acho que o roteiro tenta suavizar o preconceito acentuando o mau-caráter do personagem Giba (Enio Gonçalves) - que já havia apontado uma arma para a protagonista. Ou seja, a coitada da Helena Ramos não tinha muita saída. Reitero o elogio à Marcia Maria, linda e muito convincente no papel, sem estereótipos clássicos, num belo estilo lesbian chic. Pena, sempre, a dublagem da Helena Ramos, o que sempre me remete às personagens ou do Scooby Doo ou de Josie e as Gatinha (Daphne e Josie). Aliás, acho que quem dubla o Mossy em Gisele é o Alan, do Josie e as Gatinhas. RSRS
De qualquer modo, o filme vale a pena, é divertido e prende a atenção, notadamente pelo desempenhos dos atores em geral. Bem melhor que Amor Maldito. Obrigado sempre, Andrea, pelas respostas e por dar atenção aos meus comentários de diletante/ignorante.

Adilson Marcelino disse...

Daniel,
Que bom que agora você viu o filme e pode perceber essas considerações que você fez. Também gostei, e continuo gostando, desse debate.
Abs

Adilson Marcelino disse...

Daniel,
E outra coisa. Quando eu citei o Atração Fatal, eu quis dizer que o moralismo ali é na forma como foi delineada a personagem da Glen Close, ou seja, da amante obsessiva, sem matização em seu cosntrução. Que é como vejo no caso da Fernanda. mas não desse possível moralismo de um castigo por, no caso da Analu, ser castigada por buscar algo fora da relação do casamento. Como já disse, o filme mostra, inclusive, que o casamento é uma prisão, e mais que coitada, a Analu é uma mulher acuada.
Abs

Anônimo disse...

Prezada Andrea, vou ser breve no meu comentario para alimentar o debate. Vejo você como uma pioneira de mudar a idéia do cinema brasileiro como machista. Logo se você diz que ESTE filme é do tipo machista, deve ter alguma razão.
Uma inversão de papeis pois Adilson fala como voce falaria ao defender o filme. A analise do Adilson é também muito boa, tão bem realizada quanto você realizaria se não detestasse essa obra.
Agora: acho que você se limita muito escrevendo apenas sobre cinema brasileiro. É a melhor observadora de cinema que já li. Os textos de Estranho encontro serão eternos,,alguns já são.
Abraços sinceros de um fã.

Anônimo disse...

Adilson, lembrei tb, vendo um documentário sobre sexualidade no GNT, do filme Vestida para Matar (ainda na era pré-Aids), que contém mensagem similar, embora bem mais explícita que em Analu. Lembrem-se da cena que a Angie Dickinson, após uma gostosa aventura, descobre que seu parceiro eventual tinha sífilis. PArece-me, então, que o cinema da Boca já estava a anos-luz do retrato da sociedade sob o prisma hollywodiano.

Adilson Marcelino disse...

Daniel
Mas o que Andrea diz sobre as produções Hollywoodianas procede.
No caso do Vestida para Matar - que adoro! - o interesse do Brian de Palma - que também adoro - é outro. Interessa a ele muito mais a mis´en cene. No caso do Miziara e seu ´"Intimidades", ainda que ele utilize recursos do cinema noir - mesmo que seu filme seja em cores - e que dá todo o clima ao filme, parece-me que o interesse maior dele esteja na própria história.
Abs

Andrea Ormond disse...

Daniel, sabe que eu sempre penso que a voz da Helena Ramos poderia ter sido melhor aproveitada? É tão absurda a voz infantil, baixinha, se contrapondo ao papel base de mulherão. A propósito, o dublador do Mossy no Giselle chama-se Carlos Marques, que aliás batia bastante ponto nas dublagens de antanho. "Intimidades" ganha realmente de "Amor Maldito", mas vc percebeu que isto não quer dizer tanto assim, infelizmente rsrs Um abraço!

Meia, obrigada. Não descarto a possibilidade de escrever sobre o cinema de outros países. Mas o que me chama atenção no brasileiro são as contradições internas, os clichês que impedem a verdadeira circulação de idéias. Um exemplo de clichê é justamente o que vc citou, a respeito da sexualidade. Trabalhar com estes fatores continua sendo apaixonante para mim, e acaba ficando em primeiro plano. Abraços

Adilson, tb acredito que o Miziara teve a intenção de primeiro fechar o argumento, centrado na relação entre as duas. Aliás, o Mozael Silveira aproveitou o gancho do título e pouco depois fez o "Intimidades de Duas Mulheres". Pelo jeito, "intimidades" era uma espécie de iso 9000 rsrs

anuar disse...

very good and power

ADEMAR AMANCIO disse...

Gente dizer que Helena ramos é uma grande atriz não é forçar a barra?só o timbre de sua voz ja à impossibilita a ser uma atriz dramática convincente.

edu vieira disse...

tb acho que a Helena Ramos só deveria ser dublada...fiquei abismado qdo vi a Márcia Maria fazer esse papel ....como é boa atriz, pena que como disse a Andrea , a leitura do roteiro é bem machista mesmo..um anti-Karina objeto do prazer, porém acho que os atores estão muito bem dirigidos no filme, até mesmo a Helena. Esse e Convite ao prazer pra mim são suas melhores interpretações.