quinta-feira, março 05, 2009

Dedé Mamata


Vendido em sua época como um retrato dos jovens da geração 70, filhos dos perseguidos da ditadura militar, Dedé Mamata (1988) pode ser melhor assistido hoje como a transição de um Brasil reprimido e politizado para outro, permissivo e alienado.

Único longa-metragem dirigido por Rodolfo Brandão, última participação de Paulo Porto no cinema, auge da carreira do quase-púbere Guilherme Fontes, é mais coerente entendê-lo do fim para o começo. À cena derradeira ("Eles só aplaudem quem chega") com discurso de Miguel Arraes e entrevista emocionada de Fernando Gabeira, soma-se uma fuga nervosa de Dedé (Fontes), indo embora do país por conta do envolvimento com tráfico de cocaína.

Filho e neto de militantes políticos -- o avô (Paulo Porto) anarquista, o pai (Paulo Betti) comunista -- Dedé milita no clandestino Partidão meio a contragosto, preferindo a companhia dos amigos Alpino (Marcos Palmeira), Lena (Malu Mader) e Ritinha (Iara Jamra). O relacionamento fraterno entre Dedé e Alpino, a princípio, é motivado pelo vício no pó, comprado das mãos do traficante Cumpade (Luis Fernando Guimarães), janota e picareta, que sempre cheira metade daquilo que vende para os rapazes.

Cumpade mora em um quarto-sala no Super Shopping Center Cidade Copacabana -- espécie de Edifício Copan carioca -- e logo envolve Dedé no tráfico. Paralelo às atividades de comércio ilegal -- meio ao estilo do recente "Meu Nome Não é Johnny" -- Dedé arruma um tempinho para o comunismo, transar com Ritinha e cuidar do avô, mudo e preso a uma cadeira de rodas.

Deslize bobo, em momento algum a direção de atores lembrou que os personagens -- cheirando todas -- precisavam parecer ligados, eufóricos. Chega a ser risível Dedé, mais voraz que aspirador, no segundo seguinte abandonando-se com uma expressão de desânimo e melancolia no rosto.

Iluminando alguns flashbacks, a narrativa acontece entre 1974 e 79. Por conta do avô doente e meio apaixonado por Lena, aos poucos Dedé aceita que os amigos mudem para sua casa. Lena cuida do velho e Alpino auxilia Dedé nas vendas. Em certo momento encontraremos os dois no Baixo Leblon, com cara de anos 80, faturando um bocado. A fantasia de que estamos em 74, não em 88, solicita capacidade de abstração do espectador.

Muito além do quadro narcogregário, o que importa em "Dedé Mamata" é a percepção inteligente das transformações ideológicas de uma família. Em 1930, avô e avó do protagonista oscilavam entre anarquismo e comunismo. Nos anos 60, o pai era um militante socialista desaparecido. Nos 70, o neto acharia a Revolução um fardo inútil, preferindo o dinheiro e a felicidade aditivados.

Forjando uma interpretação bastante otimista sobre os anos de chumbo, "Dedé Mamata" trai essa idéia pueril. Ode à amizade, à felicidade em qualquer circuntância, esconde o recado de que o fim da luta -- do sonho -- representava um pesadelo manso, doce, que inventaria um país perplexo e sem chão. Se Dedé ainda folheava a biblioteca herdada, se ainda questionava valores estabelecidos, seus filhos um dia trocariam "O Capital" como papel velho, mudariam de Botafogo para a Barra da Tijuca e manteriam de pé somente a indústria da droga.

No caso dessa indústria, aqueles tempos remotos, algo glamourosos -- de quando vapores eram tratados de dealers -- poderiam ter sido melhor revistos e minimamente reconstituídos. O completo despojamento artesanal soa tão estranho quanto uma produção de 2009 ambientada em um 1990 onde ninguém usasse pochetes e ombreiras. De setentistas, salvam-se apenas os cabelos: o de Paulo Porto, preso em uma trança; e o de Guilherme Fontes, que cresce selvagemente à medida que ele sobe na hierarquia criminosa.

"Dedé Mamata" foi baseado em romance homônimo escrito por Vinícius Vianna -- filho do ator e dramaturgo Vianinha -- e realizado sem participação da Embrafilme, através da Lei Sarney, fato muito comemorado na ocasião. Mais de trinta empresas compraram cotas do projeto, e essa independência deu ao lançamento um tom inovador, como se representasse caminhos alternativos a serem seguidos pelo cinema brasileiro.

Roteiro do próprio diretor em parceria com Antônio Calmon, está pontuado por belas tiradas, no estilo calmoniano, como a de Cumpade explicando sua filosofia de vida: "Prefiro morrer rico, com uma roupa legal e carrinho do ano, do que chegar aos 80 anos com dinheiro pingadinho (...)", e outras constrangedoras, como o discurso de Alpino no enterro do avô de Dedé, ao som do hino nacional -- único momento em que o pó transparece fazer efeito.

Música-tema grudenta de Caetano Veloso, abrindo e encerrando os créditos, "Dedé Mamata" envelheceu frágil. Uma refilmagem garantiria sobrevida à história e à discussão franca do que fazemos com as cinzas de sonhos que, segundo a letra da canção, desabam sobre nós. Sem que aprendamos a utilizá-las para construir um sonho coletivo novo e liberto dos fantasmas e erros de outras gerações, Dedé remete a uma espécie de elo perdido, finalmente documentado.

12 comentários:

Adilson Marcelino disse...

Nossa Andréa querida, eu que já ando nos 45 para os 46, você não sabe a importância que esse filme teve para mim, junto ao Feliz Ano Velho, do Gervitz, nos meus vinte e cinco aninhos.
O cineasta Francisco César Filho, o Chiquinho, inclusive na homenagem que faz à Malu Mader no Mulheres, fala sobre isso, sobre a importância que ela teve para a geração 80 nesses filmes citados.
Você é o meu Repouso do Guerreiro não busca de um entendimento e de um olhar real para o cinema brasileiro.
Um beijão.

Adilson Marcelino disse...

Nossa Andréa querida, eu que já ando nos 45 para os 46, você não sabe a importância que esse filme teve para mim, junto ao Feliz Ano Velho, do Gervitz, nos meus vinte e cinco aninhos.
O cineasta Francisco César Filho, o Chiquinho, inclusive na homenagem que faz à Malu Mader no Mulheres, fala sobre isso, sobre a importância que ela teve para a geração 80 nesses filmes citados.
Você é o meu Repouso do Guerreiro não busca de um entendimento e de um olhar real para o cinema brasileiro.
Um beijão.

Adilson Marcelino disse...

Andréa,
Já que esta valendo pedir (hehe), adoraria ler sua crítica sobre As Intimidades de Analu e Fernanda.
Bjs
Adilson

Anônimo disse...

Suas obras são fascinantes, Longa Carta para Milla é inspirador, e senti isso em muito poucos livros que li, e apesar de sua temática, vale citar um livro que li recentemente, na qual o filme assim como no papel é de um poder imaginavél e de um profunda valorização do ser(mulher) então como filme e livro PERFUME a historia de um assassino, seria uma boa pedida para todos aqueles que buscam entender o íntimo do ser, e a busca de sí, assim como o significado da MULHER E DO AMOR.

http//contodoespelho.blogspot.com

Anônimo disse...

Tem uma homenagem ao seu blog lá no Alcalóide Literário; gosto muito do seu blog!
As regras estão lá, para serem seguidas ou subvertidas.

Um abraço!

Andrea Ormond disse...

Adilson querido, alguns filmes se fixam de um jeito tal que acabam virando mesmo a trilha sonora (e visual) de um período da vida. O "Dedé Mamata" tem escorregadas, mas é a cara dos 80. Já que vc tb entrou na onda dos pedidos rsrs ele tb está atendidíssimo :) Beijo grande

Conto do Espelho, obrigada. O Longa Carta Para Mila tem esse ímpeto de tocar em tabus de forma direta, com decisão e ternura. Inserir, debater, desmistificar, sem culpas. Fico sempre muito feliz quando vejo que o livro vem cumprindo com esse objetivo. Abraços

Obrigada, Palhastro! Um forte abraço!

Anônimo disse...

Gosto muito da trilha deste filme, na época até comprei o LP.

sitedecinema disse...

Acho essa produção de Cacá Diegues injustamente esquecida...a vi quando lançada no Festival de cinema de Gramado e me recordo bem da engraçadíssima ponta de Antonio Pitanga, como um policial e do hoje cineasta Rudi Lagmann numa pequena particiapação. Se não me engano, foi o último papel do lendário Gerlado Del Rey nas telonas.
Já falei q adoro passar por aqui?

Anônimo disse...

OLA BOM DIA.

FANTÁSTICO. ESSE FILME RETRATA UM TEMPO DE ESPERANÇAS PARA MINHA GERAÇÃO. PERGUNTA VC TEM O LP OU OUTRA MIDIA COM A TRILHA? GOSTARIA DE SABER ONDE VC COMPROU. VC PODERIA ME CEDER? É DIFÍCIL DE SE ACHAR ? OBRIGADO

Anônimo disse...

FICA DIFICIL SE FOR PARA ANONIMO RSRSRS EMAIL JESUSCRISTOVANN@GMAIL.COM AGORA SIM. ESPERO RESPOSTA. OBRIGADO

Joice Berth disse...

Amei o blog que acabo de conhecer, pesquisando esse filme pela internet(graças à "música grudenta do Caetano Veloso que me remete a mais tenra infância) me deparo com uma crítica muitíssimi bem escrita.
Parabéns!

Anônimo disse...

O diretor aparece aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=k8iy3eehwa8#t=85

DECADENTE kkkkkkkkkkk