Vendido em sua época como um retrato dos jovens da geração 70, filhos dos perseguidos da ditadura militar, Dedé Mamata (1988) pode ser melhor assistido hoje como a transição de um Brasil reprimido e politizado para outro, permissivo e alienado.
Único longa-metragem dirigido por Rodolfo Brandão, última participação de Paulo Porto no cinema, auge da carreira do quase-púbere Guilherme Fontes, é mais coerente entendê-lo do fim para o começo. À cena derradeira ("Eles só aplaudem quem chega") com discurso de Miguel Arraes e entrevista emocionada de Fernando Gabeira, soma-se uma fuga nervosa de Dedé (Fontes), indo embora do país por conta do envolvimento com tráfico de cocaína.
Filho e neto de militantes políticos -- o avô (Paulo Porto) anarquista, o pai (Paulo Betti) comunista -- Dedé milita no clandestino Partidão meio a contragosto, preferindo a companhia dos amigos Alpino (Marcos Palmeira), Lena (Malu Mader) e Ritinha (Iara Jamra). O relacionamento fraterno entre Dedé e Alpino, a princípio, é motivado pelo vício no pó, comprado das mãos do traficante Cumpade (Luis Fernando Guimarães), janota e picareta, que sempre cheira metade daquilo que vende para os rapazes.
Cumpade mora em um quarto-sala no Super Shopping Center Cidade Copacabana -- espécie de Edifício Copan carioca -- e logo envolve Dedé no tráfico. Paralelo às atividades de comércio ilegal -- meio ao estilo do recente "Meu Nome Não é Johnny" -- Dedé arruma um tempinho para o comunismo, transar com Ritinha e cuidar do avô, mudo e preso a uma cadeira de rodas.
Deslize bobo, em momento algum a direção de atores lembrou que os personagens -- cheirando todas -- precisavam parecer ligados, eufóricos. Chega a ser risível Dedé, mais voraz que aspirador, no segundo seguinte abandonando-se com uma expressão de desânimo e melancolia no rosto.
Iluminando alguns flashbacks, a narrativa acontece entre 1974 e 79. Por conta do avô doente e meio apaixonado por Lena, aos poucos Dedé aceita que os amigos mudem para sua casa. Lena cuida do velho e Alpino auxilia Dedé nas vendas. Em certo momento encontraremos os dois no Baixo Leblon, com cara de anos 80, faturando um bocado. A fantasia de que estamos em 74, não em 88, solicita capacidade de abstração do espectador.
Muito além do quadro narcogregário, o que importa em "Dedé Mamata" é a percepção inteligente das transformações ideológicas de uma família. Em 1930, avô e avó do protagonista oscilavam entre anarquismo e comunismo. Nos anos 60, o pai era um militante socialista desaparecido. Nos 70, o neto acharia a Revolução um fardo inútil, preferindo o dinheiro e a felicidade aditivados.
Forjando uma interpretação bastante otimista sobre os anos de chumbo, "Dedé Mamata" trai essa idéia pueril. Ode à amizade, à felicidade em qualquer circuntância, esconde o recado de que o fim da luta -- do sonho -- representava um pesadelo manso, doce, que inventaria um país perplexo e sem chão. Se Dedé ainda folheava a biblioteca herdada, se ainda questionava valores estabelecidos, seus filhos um dia trocariam "O Capital" como papel velho, mudariam de Botafogo para a Barra da Tijuca e manteriam de pé somente a indústria da droga.
No caso dessa indústria, aqueles tempos remotos, algo glamourosos -- de quando vapores eram tratados de dealers -- poderiam ter sido melhor revistos e minimamente reconstituídos. O completo despojamento artesanal soa tão estranho quanto uma produção de 2009 ambientada em um 1990 onde ninguém usasse pochetes e ombreiras. De setentistas, salvam-se apenas os cabelos: o de Paulo Porto, preso em uma trança; e o de Guilherme Fontes, que cresce selvagemente à medida que ele sobe na hierarquia criminosa.
"Dedé Mamata" foi baseado em romance homônimo escrito por Vinícius Vianna -- filho do ator e dramaturgo Vianinha -- e realizado sem participação da Embrafilme, através da Lei Sarney, fato muito comemorado na ocasião. Mais de trinta empresas compraram cotas do projeto, e essa independência deu ao lançamento um tom inovador, como se representasse caminhos alternativos a serem seguidos pelo cinema brasileiro.
Roteiro do próprio diretor em parceria com Antônio Calmon, está pontuado por belas tiradas, no estilo calmoniano, como a de Cumpade explicando sua filosofia de vida: "Prefiro morrer rico, com uma roupa legal e carrinho do ano, do que chegar aos 80 anos com dinheiro pingadinho (...)", e outras constrangedoras, como o discurso de Alpino no enterro do avô de Dedé, ao som do hino nacional -- único momento em que o pó transparece fazer efeito.
Música-tema grudenta de Caetano Veloso, abrindo e encerrando os créditos, "Dedé Mamata" envelheceu frágil. Uma refilmagem garantiria sobrevida à história e à discussão franca do que fazemos com as cinzas de sonhos que, segundo a letra da canção, desabam sobre nós. Sem que aprendamos a utilizá-las para construir um sonho coletivo novo e liberto dos fantasmas e erros de outras gerações, Dedé remete a uma espécie de elo perdido, finalmente documentado.
Único longa-metragem dirigido por Rodolfo Brandão, última participação de Paulo Porto no cinema, auge da carreira do quase-púbere Guilherme Fontes, é mais coerente entendê-lo do fim para o começo. À cena derradeira ("Eles só aplaudem quem chega") com discurso de Miguel Arraes e entrevista emocionada de Fernando Gabeira, soma-se uma fuga nervosa de Dedé (Fontes), indo embora do país por conta do envolvimento com tráfico de cocaína.
Filho e neto de militantes políticos -- o avô (Paulo Porto) anarquista, o pai (Paulo Betti) comunista -- Dedé milita no clandestino Partidão meio a contragosto, preferindo a companhia dos amigos Alpino (Marcos Palmeira), Lena (Malu Mader) e Ritinha (Iara Jamra). O relacionamento fraterno entre Dedé e Alpino, a princípio, é motivado pelo vício no pó, comprado das mãos do traficante Cumpade (Luis Fernando Guimarães), janota e picareta, que sempre cheira metade daquilo que vende para os rapazes.
Cumpade mora em um quarto-sala no Super Shopping Center Cidade Copacabana -- espécie de Edifício Copan carioca -- e logo envolve Dedé no tráfico. Paralelo às atividades de comércio ilegal -- meio ao estilo do recente "Meu Nome Não é Johnny" -- Dedé arruma um tempinho para o comunismo, transar com Ritinha e cuidar do avô, mudo e preso a uma cadeira de rodas.
Deslize bobo, em momento algum a direção de atores lembrou que os personagens -- cheirando todas -- precisavam parecer ligados, eufóricos. Chega a ser risível Dedé, mais voraz que aspirador, no segundo seguinte abandonando-se com uma expressão de desânimo e melancolia no rosto.
Iluminando alguns flashbacks, a narrativa acontece entre 1974 e 79. Por conta do avô doente e meio apaixonado por Lena, aos poucos Dedé aceita que os amigos mudem para sua casa. Lena cuida do velho e Alpino auxilia Dedé nas vendas. Em certo momento encontraremos os dois no Baixo Leblon, com cara de anos 80, faturando um bocado. A fantasia de que estamos em 74, não em 88, solicita capacidade de abstração do espectador.
Muito além do quadro narcogregário, o que importa em "Dedé Mamata" é a percepção inteligente das transformações ideológicas de uma família. Em 1930, avô e avó do protagonista oscilavam entre anarquismo e comunismo. Nos anos 60, o pai era um militante socialista desaparecido. Nos 70, o neto acharia a Revolução um fardo inútil, preferindo o dinheiro e a felicidade aditivados.
Forjando uma interpretação bastante otimista sobre os anos de chumbo, "Dedé Mamata" trai essa idéia pueril. Ode à amizade, à felicidade em qualquer circuntância, esconde o recado de que o fim da luta -- do sonho -- representava um pesadelo manso, doce, que inventaria um país perplexo e sem chão. Se Dedé ainda folheava a biblioteca herdada, se ainda questionava valores estabelecidos, seus filhos um dia trocariam "O Capital" como papel velho, mudariam de Botafogo para a Barra da Tijuca e manteriam de pé somente a indústria da droga.
No caso dessa indústria, aqueles tempos remotos, algo glamourosos -- de quando vapores eram tratados de dealers -- poderiam ter sido melhor revistos e minimamente reconstituídos. O completo despojamento artesanal soa tão estranho quanto uma produção de 2009 ambientada em um 1990 onde ninguém usasse pochetes e ombreiras. De setentistas, salvam-se apenas os cabelos: o de Paulo Porto, preso em uma trança; e o de Guilherme Fontes, que cresce selvagemente à medida que ele sobe na hierarquia criminosa.
"Dedé Mamata" foi baseado em romance homônimo escrito por Vinícius Vianna -- filho do ator e dramaturgo Vianinha -- e realizado sem participação da Embrafilme, através da Lei Sarney, fato muito comemorado na ocasião. Mais de trinta empresas compraram cotas do projeto, e essa independência deu ao lançamento um tom inovador, como se representasse caminhos alternativos a serem seguidos pelo cinema brasileiro.
Roteiro do próprio diretor em parceria com Antônio Calmon, está pontuado por belas tiradas, no estilo calmoniano, como a de Cumpade explicando sua filosofia de vida: "Prefiro morrer rico, com uma roupa legal e carrinho do ano, do que chegar aos 80 anos com dinheiro pingadinho (...)", e outras constrangedoras, como o discurso de Alpino no enterro do avô de Dedé, ao som do hino nacional -- único momento em que o pó transparece fazer efeito.
Música-tema grudenta de Caetano Veloso, abrindo e encerrando os créditos, "Dedé Mamata" envelheceu frágil. Uma refilmagem garantiria sobrevida à história e à discussão franca do que fazemos com as cinzas de sonhos que, segundo a letra da canção, desabam sobre nós. Sem que aprendamos a utilizá-las para construir um sonho coletivo novo e liberto dos fantasmas e erros de outras gerações, Dedé remete a uma espécie de elo perdido, finalmente documentado.
12 comentários:
Nossa Andréa querida, eu que já ando nos 45 para os 46, você não sabe a importância que esse filme teve para mim, junto ao Feliz Ano Velho, do Gervitz, nos meus vinte e cinco aninhos.
O cineasta Francisco César Filho, o Chiquinho, inclusive na homenagem que faz à Malu Mader no Mulheres, fala sobre isso, sobre a importância que ela teve para a geração 80 nesses filmes citados.
Você é o meu Repouso do Guerreiro não busca de um entendimento e de um olhar real para o cinema brasileiro.
Um beijão.
Nossa Andréa querida, eu que já ando nos 45 para os 46, você não sabe a importância que esse filme teve para mim, junto ao Feliz Ano Velho, do Gervitz, nos meus vinte e cinco aninhos.
O cineasta Francisco César Filho, o Chiquinho, inclusive na homenagem que faz à Malu Mader no Mulheres, fala sobre isso, sobre a importância que ela teve para a geração 80 nesses filmes citados.
Você é o meu Repouso do Guerreiro não busca de um entendimento e de um olhar real para o cinema brasileiro.
Um beijão.
Andréa,
Já que esta valendo pedir (hehe), adoraria ler sua crítica sobre As Intimidades de Analu e Fernanda.
Bjs
Adilson
Suas obras são fascinantes, Longa Carta para Milla é inspirador, e senti isso em muito poucos livros que li, e apesar de sua temática, vale citar um livro que li recentemente, na qual o filme assim como no papel é de um poder imaginavél e de um profunda valorização do ser(mulher) então como filme e livro PERFUME a historia de um assassino, seria uma boa pedida para todos aqueles que buscam entender o íntimo do ser, e a busca de sí, assim como o significado da MULHER E DO AMOR.
http//contodoespelho.blogspot.com
Tem uma homenagem ao seu blog lá no Alcalóide Literário; gosto muito do seu blog!
As regras estão lá, para serem seguidas ou subvertidas.
Um abraço!
Adilson querido, alguns filmes se fixam de um jeito tal que acabam virando mesmo a trilha sonora (e visual) de um período da vida. O "Dedé Mamata" tem escorregadas, mas é a cara dos 80. Já que vc tb entrou na onda dos pedidos rsrs ele tb está atendidíssimo :) Beijo grande
Conto do Espelho, obrigada. O Longa Carta Para Mila tem esse ímpeto de tocar em tabus de forma direta, com decisão e ternura. Inserir, debater, desmistificar, sem culpas. Fico sempre muito feliz quando vejo que o livro vem cumprindo com esse objetivo. Abraços
Obrigada, Palhastro! Um forte abraço!
Gosto muito da trilha deste filme, na época até comprei o LP.
Acho essa produção de Cacá Diegues injustamente esquecida...a vi quando lançada no Festival de cinema de Gramado e me recordo bem da engraçadíssima ponta de Antonio Pitanga, como um policial e do hoje cineasta Rudi Lagmann numa pequena particiapação. Se não me engano, foi o último papel do lendário Gerlado Del Rey nas telonas.
Já falei q adoro passar por aqui?
OLA BOM DIA.
FANTÁSTICO. ESSE FILME RETRATA UM TEMPO DE ESPERANÇAS PARA MINHA GERAÇÃO. PERGUNTA VC TEM O LP OU OUTRA MIDIA COM A TRILHA? GOSTARIA DE SABER ONDE VC COMPROU. VC PODERIA ME CEDER? É DIFÍCIL DE SE ACHAR ? OBRIGADO
FICA DIFICIL SE FOR PARA ANONIMO RSRSRS EMAIL JESUSCRISTOVANN@GMAIL.COM AGORA SIM. ESPERO RESPOSTA. OBRIGADO
Amei o blog que acabo de conhecer, pesquisando esse filme pela internet(graças à "música grudenta do Caetano Veloso que me remete a mais tenra infância) me deparo com uma crítica muitíssimi bem escrita.
Parabéns!
O diretor aparece aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=k8iy3eehwa8#t=85
DECADENTE kkkkkkkkkkk
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