"Cinderela Baiana" (1998) é como "Limite", de Mário Peixoto: uma lenda do cinema nacional, vista por muito poucos. Fracasso de público nos cinemas, relativo sucesso em vídeo, o que atrapalha seu descobrimento pelas novas gerações é um detalhe prosaico: os vhs lançados pela PlayArte possuem proteção anti-cópia Macrovision, o que dificulta a transposição amadora do filme para dvd-r e divx.
Vencido este obstáculo -- ou finalmente legalizado em dvd -- "Cinderela Baiana" reaparecerá como peça intrigante: extremamente tosco para ser levado a sério por seu público-alvo -- as crianças -- e exageradamente ingênuo para ser, de fato, um trash movie cultuado por adultos masoquistas, o meio-termo onde se equilibra faz com que pareça ainda pior e mais despropositado.
Nada, mas nada mesmo do que o leitor sofreu até hoje em cinema brasileiro -- nem os momentos mais alegóricos de Glauber Rocha -- consegue chegar próximo ao anti-filme de Conrado Sanchez, construindo a cinebiografia da ex-dançarina do Tchan!, Carla Perez.
Ainda que os dez minutos iniciais lembrem um melodrama (a criança de pé no chão, pedinte na beira da estrada), o que vem a seguir quase mata do coração: depois que sua mãe morre, Carla sofre um amadurecimento relâmpago, e, por contingência no orçamento, a atriz-menina de nove anos desaparece para dar lugar à própria, uma mocetona de vinte e dois, enquanto sabemos que apenas "três anos se passaram..."
Simpática, bem-fornida, a heroína ganha dois amigos (um deles é Lázaro Ramos, no segundo longa de sua carreira) e começa a operar milagres dançando. Quando reclamam de fome, os três tentam roubar um tabuleiro de acarajé. A baiana, com pena, distribui aos jovens seu produto de graça. Mas, curiosamente, apenas os dois rapazes ganham a iguaria -- Carla, que era a mais fraca e faminta, começa a saltitar em frenesi. Assim consegue que a rua lote de dançarinos e a generosa senhora fature horrores.
Há também Perry Salles, terrível no papel de Pierre, um empresário italiano cafajeste (porque, em roteiros simplórios, estrangeiros são sempre inescrupulosos?) que consegue para Carla as primeiras chances na carreira. Em meio à hecatombe do histriônico oportunista e de Carla pra lá e pra cá, ao menos grande parte das bandas de axé music dos anos 90 desfilam incidentalmente, traçando útil e datado panorama do espetáculo das massas.
Fosse sobre axé, o filme ganharia nuances sociológicas e comportamentais. Rodado em Salvador, então, lograria o mérito de descortinar uma cidade cinematográfica, tão bem aproveitada em "O Pagador de Promessas" ou "J.S. Brown". Como a música, o lugar e qualquer outro elemento são acessórios, a única impressão possível é a de jocosa vinheta kitsch, apoiada em uma espécie de desconexão da realidade.
Entre a falta de eixo e os claros problemas financeiros, temos a habilidade interpretativa da atriz principal. Carla às vezes parece ter sincera vontade de rir (eu também acharia graça) quando despeja monólogos oligofrênicos em cenas absurdamente nonsense. Para piorar, surge um partner romântico, o cantor Alexandre Pires -- cujo estilo de interpretação lembra muito o do galã bíblico Victor Mature.
Alexandre humilha os capangas de Pierre, em coreografia revivida de finados telecatches. No final apoteótico, Carla volta de carro importado ao local onde antes pedia esmolas e discursa emocionada contra "campanhas demagógicas", para em seguida libertar passarinhos da gaiola e improvisar um número de dança. Tal ato gerou até uma comunidade no Orkut, com a foto de Carla em pleno êxtase magnânimo.
"Cinderela" fascina porque também remexe (ops!) forças ocultas: o derradeiro suspiro do cinema da Boca -- afinal, Conrado, o produtor Galante e o montador Éder Mazzini eram crias do longínquo quadrilátero paulistano -- inadequado ao aparato marqueteiro de videoclip que o final dos anos 90 exigia. Mas acreditar que Conrado Sanchez fez esta pérola por ser um cineasta inábil me parece falso: "A Menina e o Estuprador", com Vanessa Alves e Zózimo Bulbul, é barato, ligeiro, e cheio de momentos talentosos.
Já Antônio Polo Galante, que deixou sua marca em quase cem filmes, dispensa apresentações. Talvez o maior produtor da história do cinema brasileiro, podia ter encerrado carreira com o fabuloso "Anjos do Arrabalde", onze anos antes. Tão bisonho e claudicante, seu canto dos cisnes erra até nos créditos: o "baiana" da Cinderela, surge grafado "bahiana". Quem viu, não esquece jamais.
Vencido este obstáculo -- ou finalmente legalizado em dvd -- "Cinderela Baiana" reaparecerá como peça intrigante: extremamente tosco para ser levado a sério por seu público-alvo -- as crianças -- e exageradamente ingênuo para ser, de fato, um trash movie cultuado por adultos masoquistas, o meio-termo onde se equilibra faz com que pareça ainda pior e mais despropositado.
Nada, mas nada mesmo do que o leitor sofreu até hoje em cinema brasileiro -- nem os momentos mais alegóricos de Glauber Rocha -- consegue chegar próximo ao anti-filme de Conrado Sanchez, construindo a cinebiografia da ex-dançarina do Tchan!, Carla Perez.
Ainda que os dez minutos iniciais lembrem um melodrama (a criança de pé no chão, pedinte na beira da estrada), o que vem a seguir quase mata do coração: depois que sua mãe morre, Carla sofre um amadurecimento relâmpago, e, por contingência no orçamento, a atriz-menina de nove anos desaparece para dar lugar à própria, uma mocetona de vinte e dois, enquanto sabemos que apenas "três anos se passaram..."
Simpática, bem-fornida, a heroína ganha dois amigos (um deles é Lázaro Ramos, no segundo longa de sua carreira) e começa a operar milagres dançando. Quando reclamam de fome, os três tentam roubar um tabuleiro de acarajé. A baiana, com pena, distribui aos jovens seu produto de graça. Mas, curiosamente, apenas os dois rapazes ganham a iguaria -- Carla, que era a mais fraca e faminta, começa a saltitar em frenesi. Assim consegue que a rua lote de dançarinos e a generosa senhora fature horrores.
Há também Perry Salles, terrível no papel de Pierre, um empresário italiano cafajeste (porque, em roteiros simplórios, estrangeiros são sempre inescrupulosos?) que consegue para Carla as primeiras chances na carreira. Em meio à hecatombe do histriônico oportunista e de Carla pra lá e pra cá, ao menos grande parte das bandas de axé music dos anos 90 desfilam incidentalmente, traçando útil e datado panorama do espetáculo das massas.
Fosse sobre axé, o filme ganharia nuances sociológicas e comportamentais. Rodado em Salvador, então, lograria o mérito de descortinar uma cidade cinematográfica, tão bem aproveitada em "O Pagador de Promessas" ou "J.S. Brown". Como a música, o lugar e qualquer outro elemento são acessórios, a única impressão possível é a de jocosa vinheta kitsch, apoiada em uma espécie de desconexão da realidade.
Entre a falta de eixo e os claros problemas financeiros, temos a habilidade interpretativa da atriz principal. Carla às vezes parece ter sincera vontade de rir (eu também acharia graça) quando despeja monólogos oligofrênicos em cenas absurdamente nonsense. Para piorar, surge um partner romântico, o cantor Alexandre Pires -- cujo estilo de interpretação lembra muito o do galã bíblico Victor Mature.
Alexandre humilha os capangas de Pierre, em coreografia revivida de finados telecatches. No final apoteótico, Carla volta de carro importado ao local onde antes pedia esmolas e discursa emocionada contra "campanhas demagógicas", para em seguida libertar passarinhos da gaiola e improvisar um número de dança. Tal ato gerou até uma comunidade no Orkut, com a foto de Carla em pleno êxtase magnânimo.
"Cinderela" fascina porque também remexe (ops!) forças ocultas: o derradeiro suspiro do cinema da Boca -- afinal, Conrado, o produtor Galante e o montador Éder Mazzini eram crias do longínquo quadrilátero paulistano -- inadequado ao aparato marqueteiro de videoclip que o final dos anos 90 exigia. Mas acreditar que Conrado Sanchez fez esta pérola por ser um cineasta inábil me parece falso: "A Menina e o Estuprador", com Vanessa Alves e Zózimo Bulbul, é barato, ligeiro, e cheio de momentos talentosos.
Já Antônio Polo Galante, que deixou sua marca em quase cem filmes, dispensa apresentações. Talvez o maior produtor da história do cinema brasileiro, podia ter encerrado carreira com o fabuloso "Anjos do Arrabalde", onze anos antes. Tão bisonho e claudicante, seu canto dos cisnes erra até nos créditos: o "baiana" da Cinderela, surge grafado "bahiana". Quem viu, não esquece jamais.
13 comentários:
Gostei muito. Deveria haver um PS que escrevo agora: divulgue esta crítica e esqueça o filme.
Aguardo tua visita em um blog de literatura e jornalismo, http://urarianoms.blog.uol.com.br/
Abraço.
Olá Andréa,
Em BH, eu fui um dos poucos que assistiram esse filme quando lançado nos cinemas. Na época, ele estreou em dois shoppings - inclusive no mais popular de grande público, no centro da cidade. Só que o filme entrou na sexta com quatro sessões, e já no sábado, ele só estava com uma sessão. Fui assistir a sessão das 17h e só teve a das 15. Tive que atravessar a cidade para assistir no segundo shopping, na sessão das 19h. Antes, liguei para ter certeza que o filme ia ser exibido e daí fui para lá, fiquei na praça de alimentação fazendo hora até o horário da sessão. Esse filme é realmente inacreditável, me deu até vontade de rever.
Abs,
Adilson
Valeu, Urariano. Visitei o seu blog, gostei da seleção dos temas. Roberto Carlos pra mim, só o setentista, principalmente depois desse drama nos tribunais. Abraços
Renbauer, Cinderela Baiana teve uma zica muito grande mesmo. Mas vendo o filme a gente percebe que não foi à toa rs
Oi, Adilson. Que saga, todo mundo tem uma história pessoal para contar sobre esse filme, é impressionante! rsrs Mas pelo menos vc conseguiu ver no cinema, pode se sentir um privilegiado :) Abraços
Não bastasse o talento com as palavras, você mostrou que também é muito corajosa, menina. Encarar uma sessão à base de Carla Perez é para poucos. Bravo! :)
Em tempo... fiz um banner pra você e coloquei no meu blog - http://img111.imageshack.us/img111/162/bgestencontroye3.jpg (usei uma cena do filme homônimo).
Abraço!
Doggma, há ocasiões em que a coragem se faz necessária na vida do ser humano. Eu sobrevivi a Cinderela Baiana :) Amei o banner, obrigada! Abraços
Pau que nasce torto nunca se endireita.
Você conseguiu segurar esse tchan, já pode contar aos seus netos. XD
EU VI NO CINEMA!
EU VI ISSO NO CINEMAAAAA!!!
Foi sessão pra imprensa, mas conta como cinema...
Hahaha, o anônimo ali em cima não quis publicar seu nome uaiheuiaheuae!
Tô me dando o trabalho de baixar isso só pra rir depois.
Sim, e o pior é que eu tenho mais o que fazer.
agora eu quero ver esse filme !
adoro masoquismo no cinema por isso gostaria de encontrar esse filme.
pior que eu tbm fiquei morrendo de vontade de assistir...
vim aqui porque me contaram que a carla bundaperez tinha feito um longa com lazaro ramos e eu quase apostei que era mentira...
google me trouxe ateh aki pra ler um escracho desse em cima da carlinha... oh, tadinha.. vc imagina a dificuldade pra decorar o texto sem saber ler direito?!
hihi
num eh facil, fellow...
Eu vi o filme
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
eu ri d+
é sem dúvida o Cinema Nacional em seu pior...
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