Fazer cinema autoral no Brasil é tarefa hercúlea, em parte pelas dificuldades materiais -- o país injusto, pobre, imediatista, etc. --, em parte pela má-vontade e obscurantismo gerados por essa carência óbvia.
São raros os autores brasileiros que conseguiram firmar-se por qualidades individuais -- não à sombra de movimentos, "escolas" ou subserviências. Walter Hugo Khouri foi um deles -- não há paralelo a Khouri, salvo os raríssimos discípulos e seguidores. Mas Khouri -- assim como Carlos Reichenbach, por exemplo -- fez concessões, aproximou-se de uma indústria comercial, a Boca do Lixo paulistana, e lá gerou bases sólidas para sua autoria.
Do outro lado da ponte-aérea, na complexa estrutura que movia o cinema carioca, alguns poucos nomes tentaram os mesmos passos: um deles foi Afrânio Vital, o negro que mais filmes dirigiu no país. Ao utilizar-se de certa base conquistada pelo cinema erótico -- ou como preferem dizer, a pornochanchada --, Afrânio foi autor singular, cavaleiro solitário de um ideário fílmico.
Homem de cultura vastíssima, cinéfilo fabuloso -- desses que vêem o filme uma vez e descrevem os olhares da atriz, vinte anos depois -- Afrânio misturou em três longa-metragens uma parte daquilo que constitui sua própria biografia e joie de vivre: a paixão pelo jazz, a admiração pessoal a dois nomes do cinema brasileiro, Khouri e Carlos Hugo Christensen, a condição de intelectual negro e ex-favelado em um mundo de brancos, supostamente sofisticados, e, principalmente, a análise psicanálitica, a tragédia -- esta apresentada como forma de superação, de engrandecimento moral.
Todo esse universo está organizado sinteticamente em "Longa Noite do Prazer" (1983), seu melhor e mais pessoal trabalho -- ainda que "Os Noivos", de quatro anos antes, seja mais coeso e bem acabado tecnicamente. Embalados por "Naima" -- a delicada peça que o saxofonista John Coltrane compôs em homenagem à primeira esposa, Juanita Naima Grubb -- os créditos iniciais (Um filme de Afrânio Vital) não deixam dúvidas da firmeza de propósitos.
Reflexão tensa, histérica -- ainda que melancólica -- de conflitos sociais e existenciais na amizade entre dois homens -- um negro, outro branco -- unidos pela marginalidade e separados por sua condição econômica, na verdade "Longa Noite do Prazer" é acima de tudo a história de amor platônico e admiração entre aquelas almas perdidas, insensatas. Enquanto Ricardo (Fernando Palitot) vive paixão edipiana pela mãe (Rosamaria Murtinho), no conforto de uma cobertura em Copacabana, Ivan (Haroldo de Oliveira) mira a vida do alto da favela no mesmo bairro. Ao se encontrarem, o sorriso entregue de Ivan traz o simbolismo da amizade como porto seguro, fuga e paz espiritual.
Em seguida, partem de carro pelo litoral do Rio, cheios de planos, idéias e dramas. Ricardo é aficcionado pelos poemas de Augusto dos Anjos, e saca "Eu" -- o livro do poeta -- de cinco em cinco minutos, para ler alguma estrofe. Marcam uma receptação de jóias roubadas para às nove horas da noite; armados, sentindo-se poderosos, vislumbram também um assalto à casa de duas mulheres, Jussara e Maria, que conhecem na praia da Barra.
Tórridas cenas de sexo na piscina da casa preencherão a necessidade do erotismo rotineiro, que movia as platéias naquele início da década de 80 aos cinemas. Em seguida, os assaltos, a trama das jóias roubadas e principalmente a cumplicidade e os conflitos, investigam criteriosamente a dinâmica caótica da dupla. Até um final simples, em que a morte de Ricardo é o fim e o recomeço moral de Ivan -- este, oposto à perversidade vocacional do amigo; outsider por desespero financeiro e necessidade de reconhecimento do outro.
O hiato que concentra-se na movimentação de Ivan e Ricardo rumo ao abismo, pode tirar a atenção do espectador mais disperso. No entanto, aqui se percebem influências curiosas manejadas por Afrânio: mesmo que as ambientações, o roteiro e a montagem sugiram bastante o estilo fílmico de Carlos Hugo Christensen, me parece claro que "Longa Noite do Prazer" é também obra de um apreciador do Cinema Marginal, da Belair.
Lá está o desapego calculado aos academicismos -- a cena da curra noturna, por exemplo -- e anarquia debochada, iconoclasta. Além de motivação camp, nos irônicos trechos de Pink Floyd sobrepostos -- sem qualquer sentido lógico -- na trilha-sonora.
Fácil de se perceber é que o diretor, filmando no Rio e em cenários tipicamente cariocas, extraiu de si uma curta obra bastante alinhada às proposições do cinema paulista -- o intelectual e comercial. Em uma época quando as distâncias eram maiores, circulando pelas duas cidades em cargos de assistência -- e exímio observador --, Afrânio conseguiu nesse intercâmbio um rumo novo. Não à toa, era elogiado por Rubem Biáfora em São Paulo e massacrado pelos colegas da Embrafilme, no Rio.
Quem cheirasse ameaças em Afrânio Vital, lamento dizer, estava coberto de razão. Tivesse feito mais filmes, levantaria questionamentos insuportáveis: o maior deles, a alteridade de um autor negro, de idéias articuladas e subversivas, muito além do oficialismo empurrado aos negros no cinema nacional. E paralela a isso, uma capacidade criativa de enrolar e desenrolar labirintos de acordo com suas obsessões íntimas e pessoais. Não muito diferente de Khouri -- amigo e mestre --, à mediocridade intelectual brasileira convém ignorar o mito Afrânio Vital, sob pena de, como esfinge, devorá-los.
São raros os autores brasileiros que conseguiram firmar-se por qualidades individuais -- não à sombra de movimentos, "escolas" ou subserviências. Walter Hugo Khouri foi um deles -- não há paralelo a Khouri, salvo os raríssimos discípulos e seguidores. Mas Khouri -- assim como Carlos Reichenbach, por exemplo -- fez concessões, aproximou-se de uma indústria comercial, a Boca do Lixo paulistana, e lá gerou bases sólidas para sua autoria.
Do outro lado da ponte-aérea, na complexa estrutura que movia o cinema carioca, alguns poucos nomes tentaram os mesmos passos: um deles foi Afrânio Vital, o negro que mais filmes dirigiu no país. Ao utilizar-se de certa base conquistada pelo cinema erótico -- ou como preferem dizer, a pornochanchada --, Afrânio foi autor singular, cavaleiro solitário de um ideário fílmico.
Homem de cultura vastíssima, cinéfilo fabuloso -- desses que vêem o filme uma vez e descrevem os olhares da atriz, vinte anos depois -- Afrânio misturou em três longa-metragens uma parte daquilo que constitui sua própria biografia e joie de vivre: a paixão pelo jazz, a admiração pessoal a dois nomes do cinema brasileiro, Khouri e Carlos Hugo Christensen, a condição de intelectual negro e ex-favelado em um mundo de brancos, supostamente sofisticados, e, principalmente, a análise psicanálitica, a tragédia -- esta apresentada como forma de superação, de engrandecimento moral.
Todo esse universo está organizado sinteticamente em "Longa Noite do Prazer" (1983), seu melhor e mais pessoal trabalho -- ainda que "Os Noivos", de quatro anos antes, seja mais coeso e bem acabado tecnicamente. Embalados por "Naima" -- a delicada peça que o saxofonista John Coltrane compôs em homenagem à primeira esposa, Juanita Naima Grubb -- os créditos iniciais (Um filme de Afrânio Vital) não deixam dúvidas da firmeza de propósitos.
Reflexão tensa, histérica -- ainda que melancólica -- de conflitos sociais e existenciais na amizade entre dois homens -- um negro, outro branco -- unidos pela marginalidade e separados por sua condição econômica, na verdade "Longa Noite do Prazer" é acima de tudo a história de amor platônico e admiração entre aquelas almas perdidas, insensatas. Enquanto Ricardo (Fernando Palitot) vive paixão edipiana pela mãe (Rosamaria Murtinho), no conforto de uma cobertura em Copacabana, Ivan (Haroldo de Oliveira) mira a vida do alto da favela no mesmo bairro. Ao se encontrarem, o sorriso entregue de Ivan traz o simbolismo da amizade como porto seguro, fuga e paz espiritual.
Em seguida, partem de carro pelo litoral do Rio, cheios de planos, idéias e dramas. Ricardo é aficcionado pelos poemas de Augusto dos Anjos, e saca "Eu" -- o livro do poeta -- de cinco em cinco minutos, para ler alguma estrofe. Marcam uma receptação de jóias roubadas para às nove horas da noite; armados, sentindo-se poderosos, vislumbram também um assalto à casa de duas mulheres, Jussara e Maria, que conhecem na praia da Barra.
Tórridas cenas de sexo na piscina da casa preencherão a necessidade do erotismo rotineiro, que movia as platéias naquele início da década de 80 aos cinemas. Em seguida, os assaltos, a trama das jóias roubadas e principalmente a cumplicidade e os conflitos, investigam criteriosamente a dinâmica caótica da dupla. Até um final simples, em que a morte de Ricardo é o fim e o recomeço moral de Ivan -- este, oposto à perversidade vocacional do amigo; outsider por desespero financeiro e necessidade de reconhecimento do outro.
O hiato que concentra-se na movimentação de Ivan e Ricardo rumo ao abismo, pode tirar a atenção do espectador mais disperso. No entanto, aqui se percebem influências curiosas manejadas por Afrânio: mesmo que as ambientações, o roteiro e a montagem sugiram bastante o estilo fílmico de Carlos Hugo Christensen, me parece claro que "Longa Noite do Prazer" é também obra de um apreciador do Cinema Marginal, da Belair.
Lá está o desapego calculado aos academicismos -- a cena da curra noturna, por exemplo -- e anarquia debochada, iconoclasta. Além de motivação camp, nos irônicos trechos de Pink Floyd sobrepostos -- sem qualquer sentido lógico -- na trilha-sonora.
Fácil de se perceber é que o diretor, filmando no Rio e em cenários tipicamente cariocas, extraiu de si uma curta obra bastante alinhada às proposições do cinema paulista -- o intelectual e comercial. Em uma época quando as distâncias eram maiores, circulando pelas duas cidades em cargos de assistência -- e exímio observador --, Afrânio conseguiu nesse intercâmbio um rumo novo. Não à toa, era elogiado por Rubem Biáfora em São Paulo e massacrado pelos colegas da Embrafilme, no Rio.
Quem cheirasse ameaças em Afrânio Vital, lamento dizer, estava coberto de razão. Tivesse feito mais filmes, levantaria questionamentos insuportáveis: o maior deles, a alteridade de um autor negro, de idéias articuladas e subversivas, muito além do oficialismo empurrado aos negros no cinema nacional. E paralela a isso, uma capacidade criativa de enrolar e desenrolar labirintos de acordo com suas obsessões íntimas e pessoais. Não muito diferente de Khouri -- amigo e mestre --, à mediocridade intelectual brasileira convém ignorar o mito Afrânio Vital, sob pena de, como esfinge, devorá-los.
5 comentários:
Excelente resenha, em especial o último parágrafo. Beijão!
Andréa, maravilhosa esta resenha que me motivou a reler a excelente entrevista que você fez com Afrânio Vital. Não conheço os filmes de Vital, menos pela falta de oportunidade do que por interesse. Se couber um julgamento a partir da sensata visão de mundo deste diretor, creio que seus filmes devem mesmo valer a pena. Ainda vou apreciá-los. Grande abraço para você.
Texto excepcional. Não conheço a obra de Vital (vergonha ...) mas já não passou da hora de alguém escrever um livro sobre o Khouri ?
Obrigada, Sergio, e volta logo com o Kinocrazy! Beijos
Quando encontrar um dos filmes, Marcio, não hesite: veja e reveja. O Afranio é especial, a entrevista deixa claro isto :) Abraços
Oi, Leandro, vergonha nenhuma, é dificílimo chegar nos filmes do Afranio. E concordo totalmente: por que não lançam algo sobre o Khouri? Público leitor existe.
Achei uma cópia na internet,vou assistir.A resenha como sempre muito inteligente.
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