Famosíssimo em todo o Brasil, imitado por gerações de crianças e adolescentes gaiatos, o repórter policial Gil Gomes deve muito de sua fama nacional ao programa Aqui Agora, jornalístico veiculado pelo Sbt de 1991 a 1997.
Buscando diferenciar-se do "padrão global de qualidade", a emissora de Sílvio Santos criou seu exato oposto: um noticiário caótico, pitoresco e questionador. Incômodo e criticado até dizer chega, o Aqui Agora representava uma espécie de Chacrinha do jornalismo brasileiro da época: aquele que não vindo para explicar, só servia mesmo para confundir.
Neste contexto, Gil Gomes -- o cronista de casos escabrosos, com voz roufenha e gestual de cinema mudo -- pontificava como a atração principal, ou melhor dizendo, um arauto da janela aberta para o infinito que é a rotina policial paulistana. Quando Gil aparecia na tela e narrava o caso do dia, o espectador podia esperar qualquer coisa, até mesmo que o repórter, cara a cara com os bandidos, perdesse a paciência com eles. Quem viu não esquece: em grandes momentos da tv popular brasileira, Gil Gomes mandava a frieza para o espaço e realizava seu nobre ofício com suor, emoção e lágrimas.
Mas até a estréia no Aqui Agora, este gênio da comunicação foi bastante conhecido apenas por quem ouvisse seu célebre programa de rádio, quase nos mesmos moldes da futura tour de force televisiva. É um Gil Gomes radiofônico, regional, que "O Outro Lado do Crime" (1978) documenta, em uma tentativa óbvia de se explorar a chancela do repórter policial para fazer um bom filme do gênero.
O resultado é brilhante. Baseado em argumento do próprio Gil, o diretor Clery Cunha ora apresenta o repórter como ele mesmo, ora mobiliza sua obcecada narração em off para dar vida à trama, roteirizada por Clery e ninguém menos que o lendário personagem da Boca do Lixo, Jesse James Costa.
Ao grupo, digamos assim, virtuoso, junta-se ainda José Lewgoy, no papel do sinistro Alberto, homem que planeja a morte da esposa Elizabeth (Liana Duval), na intenção de receber um seguro de vida que lhe permita viver com a amante Luciene (Marineide Vidal), décadas mais nova. Como pano de fundo o trajeto cotidiano de Alberto, "dirigindo o carro, descendo no estacionamento do metrô, apanhando o metrô, chegando na sua loja onde os empregados já o esperam do lado de fora" -- Gil Gomes repete, hipnótico, até que a sentença se torne inesquecível aos ouvidos de quem escuta.
À parte o achado de Gil, Clery Cunha foi um mestre nas narrativas populares de crime e suspense, começando com "Os Desclassificados", no final da década de 60, passando por "O Rei da Boca" e o ambicioso "Joelma 23o Andar". Tendo amplo domínio da técnica cinematográfica, Clery utiliza-se dela aqui com liberdade admirável. Se o filme começa morno, evolui para um frenesi que a montagem do veterano Maximo Barro só acentua, lembrando um filme noir -- porém ambientado em uma vila paulistana, cheia de vizinhas fofoqueiras e tragédias que só o subdesenvolvimento consegue alimentar.
Se em quase todo o cinema da Boca do Lixo a mulher ocupa um papel central -- normalmente como objeto de cobiça e suas variantes -- em uma produção tão emblemática não poderia ser diferente. Quando conhece a jovem Luciene, o cinquentão Alberto renasce, vira um novo homem. Gil Gomes, apoplético, claro, não perdoa, e grita que: "era ridículo (...) praticamente ridículo (...) realmente ridículo (...) tudo, tudo, tão ridículo!", enquanto o improvável casal é visto passeando de mãos dadas pelo parque, comendo na "Cantina Taberna do Julio" e acabando na cama do "Fontana Sky Hotel" -- os letreiros mostrados em close.
As sensações de opressão, desesperança e melancolia provocadas pela belíssima jovem de vinte e poucos anos se entregando ao homem triste, feio e arrasado, são aquele tipo de poesia torta que o cinema brasileiro desaprendeu a produzir e demonstrar com cores e sensações tão vivas. Lewgoy, um dos maiores atores brasileiros, parece satisfeito, criando na lama das ruas um Alberto que justificava a sua fama de ator de "vilões".
Com know-how bárbaro e criatividade furiosa, é uma injustiça que "O Outro Lado do Crime" seja um filme esquecido, obscuro. Lançado em vhs nos anos 80, um extenso guia de vídeos de 1989 o classificou como "dispensável" e sem uma mísera estrela -- mas o tempo se encarregou de tornar Gil Gomes um ídolo atemporal e sua singular colaboração cinematográfica, um clássico a ser redescoberto.
Buscando diferenciar-se do "padrão global de qualidade", a emissora de Sílvio Santos criou seu exato oposto: um noticiário caótico, pitoresco e questionador. Incômodo e criticado até dizer chega, o Aqui Agora representava uma espécie de Chacrinha do jornalismo brasileiro da época: aquele que não vindo para explicar, só servia mesmo para confundir.
Neste contexto, Gil Gomes -- o cronista de casos escabrosos, com voz roufenha e gestual de cinema mudo -- pontificava como a atração principal, ou melhor dizendo, um arauto da janela aberta para o infinito que é a rotina policial paulistana. Quando Gil aparecia na tela e narrava o caso do dia, o espectador podia esperar qualquer coisa, até mesmo que o repórter, cara a cara com os bandidos, perdesse a paciência com eles. Quem viu não esquece: em grandes momentos da tv popular brasileira, Gil Gomes mandava a frieza para o espaço e realizava seu nobre ofício com suor, emoção e lágrimas.
Mas até a estréia no Aqui Agora, este gênio da comunicação foi bastante conhecido apenas por quem ouvisse seu célebre programa de rádio, quase nos mesmos moldes da futura tour de force televisiva. É um Gil Gomes radiofônico, regional, que "O Outro Lado do Crime" (1978) documenta, em uma tentativa óbvia de se explorar a chancela do repórter policial para fazer um bom filme do gênero.
O resultado é brilhante. Baseado em argumento do próprio Gil, o diretor Clery Cunha ora apresenta o repórter como ele mesmo, ora mobiliza sua obcecada narração em off para dar vida à trama, roteirizada por Clery e ninguém menos que o lendário personagem da Boca do Lixo, Jesse James Costa.
Ao grupo, digamos assim, virtuoso, junta-se ainda José Lewgoy, no papel do sinistro Alberto, homem que planeja a morte da esposa Elizabeth (Liana Duval), na intenção de receber um seguro de vida que lhe permita viver com a amante Luciene (Marineide Vidal), décadas mais nova. Como pano de fundo o trajeto cotidiano de Alberto, "dirigindo o carro, descendo no estacionamento do metrô, apanhando o metrô, chegando na sua loja onde os empregados já o esperam do lado de fora" -- Gil Gomes repete, hipnótico, até que a sentença se torne inesquecível aos ouvidos de quem escuta.
À parte o achado de Gil, Clery Cunha foi um mestre nas narrativas populares de crime e suspense, começando com "Os Desclassificados", no final da década de 60, passando por "O Rei da Boca" e o ambicioso "Joelma 23o Andar". Tendo amplo domínio da técnica cinematográfica, Clery utiliza-se dela aqui com liberdade admirável. Se o filme começa morno, evolui para um frenesi que a montagem do veterano Maximo Barro só acentua, lembrando um filme noir -- porém ambientado em uma vila paulistana, cheia de vizinhas fofoqueiras e tragédias que só o subdesenvolvimento consegue alimentar.
Se em quase todo o cinema da Boca do Lixo a mulher ocupa um papel central -- normalmente como objeto de cobiça e suas variantes -- em uma produção tão emblemática não poderia ser diferente. Quando conhece a jovem Luciene, o cinquentão Alberto renasce, vira um novo homem. Gil Gomes, apoplético, claro, não perdoa, e grita que: "era ridículo (...) praticamente ridículo (...) realmente ridículo (...) tudo, tudo, tão ridículo!", enquanto o improvável casal é visto passeando de mãos dadas pelo parque, comendo na "Cantina Taberna do Julio" e acabando na cama do "Fontana Sky Hotel" -- os letreiros mostrados em close.
As sensações de opressão, desesperança e melancolia provocadas pela belíssima jovem de vinte e poucos anos se entregando ao homem triste, feio e arrasado, são aquele tipo de poesia torta que o cinema brasileiro desaprendeu a produzir e demonstrar com cores e sensações tão vivas. Lewgoy, um dos maiores atores brasileiros, parece satisfeito, criando na lama das ruas um Alberto que justificava a sua fama de ator de "vilões".
Com know-how bárbaro e criatividade furiosa, é uma injustiça que "O Outro Lado do Crime" seja um filme esquecido, obscuro. Lançado em vhs nos anos 80, um extenso guia de vídeos de 1989 o classificou como "dispensável" e sem uma mísera estrela -- mas o tempo se encarregou de tornar Gil Gomes um ídolo atemporal e sua singular colaboração cinematográfica, um clássico a ser redescoberto.
11 comentários:
Cara Andrea, assim que eu dei uma olhadinha no seu blog, tive de sair correndo pro meu para adiciona-lo nos links recomendados. Muito bom mesmo, parabéns!
Oi Andrea, mais uma vez me arrepio ao entrar no Estranho Encontro. Eu vi o primeiro filme do Clery e depois vi "Eu Faço...Elas Sentem", e dei uma brochada. Porque não é um grande filme, como o primeiro dele. Mas após ler a sua crítica e da outra, sei que mais cedo ou mais tarde faremos um dossiê dele. O texto está muito bom. Um dos seus melhores, me faz ficar com mais vontade de ver todos os filmes do Clery e entrevistar ele logo. Eu sempre venho a esse blog, e não passo muito tempo sem voltar. E quero reiterar aqui: se não fossem textos como esse do "O Outro Lado do Crime" e tudo mais eu não teria feito a Zingu!. Por isso, devemos bater palmas a você Andrea, a "mãe da Zingu!". E no mais, eu já falei pro Remier pra gente organizar uma mostra só do Clery Cunha. "O Cinema Policial e Desclassificado de Clery Cunha" que tal ?? Mas parece que ninguém leva muito a obra desse gigante a sério. Espero que com iniciativas como a tua e como o dossiê que dedicaremos a ele numa futura Zingu ! (calma não é a de janeiro não!), estaremos fazendo justiça a mais um grande nome da nossa cultura. No mais, vou parar de escrever tanto e apenas dizer: o cinema brasileiro agradece a Andrea Ormond.
Assino embaixo! E foi pela ZINGU! que te descobri.
Querida Andréa, dessa vez vc se superou! Depois de ler esse texto terei que fazer algo que nunca tinha imaginado na minha vida: ver um filme com o Gil Gomes :)
Beijos!!!
Gênio! Clery Cunha é um gênio da raça, tive certeza disso ao ver a obra-prima que é "Os Desclassificados", que passou algumas vezes no... Canal Comunitário de São Paulo, num programa que era apresentado pelo grande guerreiro ninja do cinema nacional Francisco Cavalcanti (desses que para poder rodar um filme seria capaz de escalar o Everest sem oxigênio suplementar). E nesse mesmo "Os Desclassificados" fiquei igualmente impressionado com a atuação extraordinária de Jesse James, o multitalentoso pau-pra-toda-obra do cinema brasileiro, que hoje é câmera da ESPN Brasil.
Quanto mais eu assisto aos filmes de Clery Cunha, Cláudio Cunha, Ody Fraga, Carlo Mossy, e toda essa fantástica safra de cineastas nacionais dos anos 70 e inícios dos 80, mais me convenço que não ficam nada a dever aos bambas de Hollywood, ainda mais considerando os orçamentos limitados, o cerceamento da censura e mil outros obstáculos inimagináveis na terra do Tio Sam. A diferença é que os nossos brazucas, se tivessem nascido nos EUA, estariam milionários e cobertos de prêmios e honrarias, e não esquecidos e injustiçados como são hoje. Ó terra ingrata!
Comentário legal do Jorge. Andrea, você sabe se existe cópia de um filme do Clery chamado A PEQUENA ORFÃ ??? Cópia em vhs digo. Os outros, já estou correndo atrás...Abraços, Matheus.
Oi, Matheus e a Zingu me chamaram a atenção de seu blogue. Apesar de nossas diferenças (inclusive, de ordem estética), gostei muito do que li. Pretendo republicar no Balaio o seu artigo sobre O ébrio; escrevi pro Matheus a respeito, afinal o texto saiu na Zingu. Voltarei outras vezes, claro. Um abraço.
Oi, Andrea, seu artigo sobre O ébrio já se encontra editado no Balaio. Um abraço.
Oi Osvaldo, obrigada! Tb gostei do "Vá e Veja", vou linká-lo :)
Oi Matheus, quer dizer que eu virei mãe antes do tempo? rsrs Mas, falando sério, agradeço muito a vc. Em um trabalho extenso como o do
"Estranho Encontro", é muito bom saber que rende frutos tão necessários como é a Zingu! Como estava falando pro Sergio, outro dia, acho que o acerto da linha editorial da revista é um grande trunfo: colaboradores diferentes em áreas que podem parecer distantes de início, mas que no final revelam ter uma linha base por trás, justamente a de se pensar sobre a cultura em geral. Parabéns pra vc! Apesar de não ter encontrado o "A Pequena Órfã", escrevi sobre "Os Declassificados", uma pérola do Clery Cunha, espero que goste.
Sergio, rsrs Prepare-se para o Gil Gomes, vc vai adorar esta nova incursão cinematográfica na sua vida. Beijos!!!
Oi Jorge, aproveitei o embalo e escrevi sobre "Os Desclassificados". O Clery Cunha rende discussões interessantes mesmo.
Oi Moacy, obrigada. "O Ébrio" é um filme que pertence à memória afetiva de muitos, tenho um carinho especial por ele. Um abraço.
Ola, sou um fã novo de seu blog.Tem um filme dos anos 80 com o Arrigo Barnabé e a Carla Carmurati, chamado Cidade Oculta.Sabe se existe em DVD, gostei muito desse filme.
Lucienne, em breve teremos novidades sobre o Clery, aqui no blog. Abraços
Alexandre, o "Cidade Oculta" não saiu em dvd, só em vhs nos anos 80, pela Manchete Video.
Postar um comentário