Alguns dos melhores filmes dirigidos por Antônio Calmon nos anos 70 (“Eu Matei Lúcio Flávio”, “Terror e Êxtase”) lembram uma coleção de idéias reacionárias, quase afrontas ao intelectualismo de militância social – por um lado – e à contracultura e suas tibiezas – por outro.
A última cena de “Eu Matei Lúcio Flávio”, quando Jece Valadão nos encara através das grades, é provavelmente a mais significativa do cinema policial brasileiro. Não só pela representação do policial-bandido, do policial no meio daqueles que deveria combater. Também por ser despudoradamente fascista – pró-repressão, pró-Estado, pró-cafajestagem. Mariel Mariscott irônico, hirto, parece confessar: “Eu fiz o que fiz e venci. Não adianta lutar contra, não adianta murro em ponta de faca. A transa é ficar ao lado do poder. Usá-lo para espancar os fracos e subir na vida.” Os bandidos eram os fracotes. E Lúcio Flávio, antagonista de Mariel, estava morto.
Notem que desse universo cínico, abjeto, Calmon retirou um destino que ninguém iria prever quando trabalhava nas picardias do Cinema Novo – “Terra em Transe”, “A Grande Cidade”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. Aluno de Gustavo Dahl no MAM, segundo lugar no concurso de 16 mm que premia Xavier de Oliveira, Calmon vai colaborando em roteiros, dá umas olhadas na fotografia, na continuidade. Estréia em “O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil” (1971), tentativa de desbunde que antecede “Paranóia (1976).
Deste ponto em diante, encontramos a coleção de pepitas, hoje nebulosas e subestimadas. O Mariscott alucinado (“Eu Matei Lúcio Flávio”), o arrivismo coca-cola (“Nos Embalos de Ipanema”), os blockbusters (“Menino do Rio”, “Garota Dourada”), o thriller subvertido (“Terror e Êxtase). Neste último, Leninha e Mil e Um no conluio absurdo que revela tanta coisa sobre a elite carioca.
Em “Paranóia”, Calmon e o roteiro de Carlos Heitor Cony flertam com Rubem Fonseca, mais especificamente o conto “Feliz Ano Novo”. “São Paulo - dezembro 1975”, eis que a equipe migra do Rio de Janeiro para a metrópole que melhor realçaria a tal neurose urbana – atitude que o próprio cinema de Calmon ajudou a descolorir no futuro: malandro na praia também vira noiado.
Bandidos invadem uma casa, destroem, humilham, as referências de Rubem são misturadas a outras por Cony – sobretudo a inclusão de Sílvia (Norma Bengell), a histérica narcisóide.
Insatisfeita com o marido (Marcelo, Anselmo Duarte), Sílvia é um dado puro, personagem que poderia ter sido melhor destrinchada para explicar o que havia nas internas com ela, marido e filhos. Esta é a real origem da trama. O conluio neurótico entre quatro paredes e que sente a futucada do elemento externo: o bando do lalau refinado (João, Paulo Villaça) e dos três quadrúpedes (Capenga, Eduardo Nogueira; Naval, Rubens Araújo; Pimenta, Nuno Leal Maia).
João domina o discurso – espécie de William Professor, o arquiteto do Comando Vermelho. Os intuitivos – Capenga, Naval, Pimenta – arrombam cozinha, atacam a geladeira, estropeiam. Bruno (Bruno Barroso) e Lúcia (Lucélia Santos bebê, pouco antes da escravinha Isaura), filhos de Marcelo e Sílvia, permanecem na sombra, de passagem no enredo. Lúcia, pelo menos, conversa com a mãe um nanossegundo, Sílvia passa da tirania para o Summerhill absoluto. A garota mostra uma bondade obcecada pelos pais e um jogo estranho com o irmão, aspectos que poderiam bombardear ainda mais a desestrutura mental da história.
Na linha Belair, brincando com o escracho, Calmon coloca Lúcia para pular uma musiqueta fifties; um assaltante lê Tarzan em quadrinhos; o psicanalista (Calmon, mudo, apenas o vulto) atura Sílvia enquanto a mulher se maquia, deitada no divã. Cinema dentro e fora da tela, vê-se um cartaz de “Perfume de Mulher”, prêmio de melhor ator em Cannes, festival em que o intérprete de Marcelo contabilizou a conquista mais problemática de seu currículo.
Interessam, rapidamente, as personagens gays de Naval, Capenga e Pimenta – fancho dúbio, que deve ter engatado uma sodomia ou outra, mas não assume. A inclusão deles atualiza o rumo dos filmes policiais. Até mesmo pelo estupro de Capenga na empregada Lurdes (Ana Maria Magalhães), momento em que a orientação sexual é inteligentemente esquecida. Reforça a animalidade do margina e quebra o tatibitati de gays apenas copularem com pessoas do mesmo sexo.
Lurdes, o protótipo de boazuda, paquerada por Bruno, se rebela, consegue torturar Capenga. Um clima de Joe D'Amato envergonhado, os braços e as mãos se movimentando calmos demais, para não machucarem o ator – erro que a montagem de Silvio Renoldi pena para driblar. Tempos depois, o olhar frio, ausente, Lurdes oferece um pano para que ele seque o rosto. À moda de Maria Madalena, mostrando o sudário para a câmera; Capenga, o Cristo algemado. Novo acerto lírico do filme, que iria patinar um pouco na velocidade assustadora com que a punição aparece para os criminosos.
Os empregados fogem, encontram os policiais dando sopa, desfilando no exato momento pelo quarteirão. Naval é encaçapado a bala por um coadjuvante tímido. Pimenta larga o canivete, Lúcia o esfaqueia.
Estilização da violência, Marcelo queima João (Paulo Villaça) pelas costas, psicopata, cravando uns balaços. Acompanhamento trance de um ponto de macumba durante a morte de Naval – mudança brusca, que tira a vinheta do rock progressivo de Cláudio Savietto e Dino Vicente. Sílvia assassina Marcelo, acaba com a tentação de final feliz. A piscina empapada de sangue, pesadelo que a acompanha desde o início, já havia aparecido habilmente ao ser violentada – dopada de tranqüilizantes – por João.
Em tudo, perversidade que a família manipulava por osmose e que aumenta ao ser cuspida de volta. Jaula muito mais terrível do que qualquer petardo sociologizante, cheio de gritos fáceis, que costumam bater na ordem do cinema denúncia, do marxismo chinfrim de quem nunca leu Marx. Calmon, ao contrário, implodia o elemento burguês por dentro, provando que suas imagens não eram apenas cínicas, reacionárias. Sabiam dar meia volta e colocar uma bomba na luta de classes, vista sob o ponto de vista do dominador.
E não se espantem, leitores, se um dia acordarmos com as boas novas de que mimos como este existem – junto com “Ódio”, “República dos Assassinos”, “Rainha Diaba”, inúmeros. Só não se esqueçam de que avisei por aqui em primeiríssima mão, como a pastorinha louca da Avenida Ipiranga, fitas vhs em punho, uniformizada de branco em frente ao Marabá.
A última cena de “Eu Matei Lúcio Flávio”, quando Jece Valadão nos encara através das grades, é provavelmente a mais significativa do cinema policial brasileiro. Não só pela representação do policial-bandido, do policial no meio daqueles que deveria combater. Também por ser despudoradamente fascista – pró-repressão, pró-Estado, pró-cafajestagem. Mariel Mariscott irônico, hirto, parece confessar: “Eu fiz o que fiz e venci. Não adianta lutar contra, não adianta murro em ponta de faca. A transa é ficar ao lado do poder. Usá-lo para espancar os fracos e subir na vida.” Os bandidos eram os fracotes. E Lúcio Flávio, antagonista de Mariel, estava morto.
Notem que desse universo cínico, abjeto, Calmon retirou um destino que ninguém iria prever quando trabalhava nas picardias do Cinema Novo – “Terra em Transe”, “A Grande Cidade”, “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. Aluno de Gustavo Dahl no MAM, segundo lugar no concurso de 16 mm que premia Xavier de Oliveira, Calmon vai colaborando em roteiros, dá umas olhadas na fotografia, na continuidade. Estréia em “O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil” (1971), tentativa de desbunde que antecede “Paranóia (1976).
Deste ponto em diante, encontramos a coleção de pepitas, hoje nebulosas e subestimadas. O Mariscott alucinado (“Eu Matei Lúcio Flávio”), o arrivismo coca-cola (“Nos Embalos de Ipanema”), os blockbusters (“Menino do Rio”, “Garota Dourada”), o thriller subvertido (“Terror e Êxtase). Neste último, Leninha e Mil e Um no conluio absurdo que revela tanta coisa sobre a elite carioca.
Em “Paranóia”, Calmon e o roteiro de Carlos Heitor Cony flertam com Rubem Fonseca, mais especificamente o conto “Feliz Ano Novo”. “São Paulo - dezembro 1975”, eis que a equipe migra do Rio de Janeiro para a metrópole que melhor realçaria a tal neurose urbana – atitude que o próprio cinema de Calmon ajudou a descolorir no futuro: malandro na praia também vira noiado.
Bandidos invadem uma casa, destroem, humilham, as referências de Rubem são misturadas a outras por Cony – sobretudo a inclusão de Sílvia (Norma Bengell), a histérica narcisóide.
Insatisfeita com o marido (Marcelo, Anselmo Duarte), Sílvia é um dado puro, personagem que poderia ter sido melhor destrinchada para explicar o que havia nas internas com ela, marido e filhos. Esta é a real origem da trama. O conluio neurótico entre quatro paredes e que sente a futucada do elemento externo: o bando do lalau refinado (João, Paulo Villaça) e dos três quadrúpedes (Capenga, Eduardo Nogueira; Naval, Rubens Araújo; Pimenta, Nuno Leal Maia).
João domina o discurso – espécie de William Professor, o arquiteto do Comando Vermelho. Os intuitivos – Capenga, Naval, Pimenta – arrombam cozinha, atacam a geladeira, estropeiam. Bruno (Bruno Barroso) e Lúcia (Lucélia Santos bebê, pouco antes da escravinha Isaura), filhos de Marcelo e Sílvia, permanecem na sombra, de passagem no enredo. Lúcia, pelo menos, conversa com a mãe um nanossegundo, Sílvia passa da tirania para o Summerhill absoluto. A garota mostra uma bondade obcecada pelos pais e um jogo estranho com o irmão, aspectos que poderiam bombardear ainda mais a desestrutura mental da história.
Na linha Belair, brincando com o escracho, Calmon coloca Lúcia para pular uma musiqueta fifties; um assaltante lê Tarzan em quadrinhos; o psicanalista (Calmon, mudo, apenas o vulto) atura Sílvia enquanto a mulher se maquia, deitada no divã. Cinema dentro e fora da tela, vê-se um cartaz de “Perfume de Mulher”, prêmio de melhor ator em Cannes, festival em que o intérprete de Marcelo contabilizou a conquista mais problemática de seu currículo.
Interessam, rapidamente, as personagens gays de Naval, Capenga e Pimenta – fancho dúbio, que deve ter engatado uma sodomia ou outra, mas não assume. A inclusão deles atualiza o rumo dos filmes policiais. Até mesmo pelo estupro de Capenga na empregada Lurdes (Ana Maria Magalhães), momento em que a orientação sexual é inteligentemente esquecida. Reforça a animalidade do margina e quebra o tatibitati de gays apenas copularem com pessoas do mesmo sexo.
Lurdes, o protótipo de boazuda, paquerada por Bruno, se rebela, consegue torturar Capenga. Um clima de Joe D'Amato envergonhado, os braços e as mãos se movimentando calmos demais, para não machucarem o ator – erro que a montagem de Silvio Renoldi pena para driblar. Tempos depois, o olhar frio, ausente, Lurdes oferece um pano para que ele seque o rosto. À moda de Maria Madalena, mostrando o sudário para a câmera; Capenga, o Cristo algemado. Novo acerto lírico do filme, que iria patinar um pouco na velocidade assustadora com que a punição aparece para os criminosos.
Os empregados fogem, encontram os policiais dando sopa, desfilando no exato momento pelo quarteirão. Naval é encaçapado a bala por um coadjuvante tímido. Pimenta larga o canivete, Lúcia o esfaqueia.
Estilização da violência, Marcelo queima João (Paulo Villaça) pelas costas, psicopata, cravando uns balaços. Acompanhamento trance de um ponto de macumba durante a morte de Naval – mudança brusca, que tira a vinheta do rock progressivo de Cláudio Savietto e Dino Vicente. Sílvia assassina Marcelo, acaba com a tentação de final feliz. A piscina empapada de sangue, pesadelo que a acompanha desde o início, já havia aparecido habilmente ao ser violentada – dopada de tranqüilizantes – por João.
Em tudo, perversidade que a família manipulava por osmose e que aumenta ao ser cuspida de volta. Jaula muito mais terrível do que qualquer petardo sociologizante, cheio de gritos fáceis, que costumam bater na ordem do cinema denúncia, do marxismo chinfrim de quem nunca leu Marx. Calmon, ao contrário, implodia o elemento burguês por dentro, provando que suas imagens não eram apenas cínicas, reacionárias. Sabiam dar meia volta e colocar uma bomba na luta de classes, vista sob o ponto de vista do dominador.
E não se espantem, leitores, se um dia acordarmos com as boas novas de que mimos como este existem – junto com “Ódio”, “República dos Assassinos”, “Rainha Diaba”, inúmeros. Só não se esqueçam de que avisei por aqui em primeiríssima mão, como a pastorinha louca da Avenida Ipiranga, fitas vhs em punho, uniformizada de branco em frente ao Marabá.
4 comentários:
Lembro deste filme. O elenco é muito interessante. Mas prefiro o Calmon de "Terror e Extase".
Abraços
www.ofalcaomaltes.blogspot.com
Entre "Paranóia" e "Terror e Êxtase" sem dúvida o segundo leva vantagem. Mas quando puder, tente rever o "Eu Matei Lúcio Flávio". É um caso à parte, o carro-chefe. Abraços
Onde posso encontrar esse filme.Obrigado
Estou vendo o filme hoje.Obrigado pela resenha.
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