Há exatos quarenta anos “As Cariocas” (1966) chegava aos cinemas do Brasil. Baseado no livro homônimo de Sérgio Porto – o popular Stanislaw Ponte Preta – e dividido em três episódios, o filme buscava imitar no espírito da obra literária a crônica urbana da cidade-síntese do país e mais especificamente das mulheres – ou de tipos femininos – que povoavam a cidade.
“As Cariocas” utiliza três histórias do livro, que possui originalmente seis. Uma quarta história, “A Donzela da Televisão”, viraria em 1970 “Em Busca do Susexo”, restando “A Desquitada da Tijuca” e "A Currada de Madureira", inéditas em adaptações para o cinema.
Aqui coube a Fernando de Barros recriar “A Grã-Fina de Copacabana”; a Walter Hugo Khouri, no ano de “Corpo Ardente”, materializar “A Noiva do Catete”; e a Roberto Santos, uma livre interpretação de “A Desinibida do Grajaú”.
Como o leitor pode perceber, é necessário conhecimento profundo da geografia sentimental e social do Rio de Janeiro (então o estado da Guanabara) para se iluminar melhor as nuances de "As Cariocas". A cidade mudou muito desde então, mas sobrevivem algumas contradições já presentes naquela metade da década de 60: zona norte e zona sul, litoral e subúrbios, ricos e pobres.
E se o livro trazia nestas contradições uma unidade, no estilo irônico e ágil de Sérgio Porto, o filme peca pela desigualdade e desinteresse em alguns momentos. Mesmo que a abertura – com imagens do cotidiano nativo, voice-off do próprio escritor, e a música de Damiano Cozzela e Rogério Duprat – prometa uma viagem ao paraíso cosmopolita.
O primeiro episódio, de Fernando de Barros, pouco acrescenta além da montagem dos fatos narrados no conto “A Grã-Fina de Copacabana”. Quase nada recria, sendo, coincidentemente, também o texto mais fraco do livro: Paula (Norma Bengell), uma dondoca da zona sul, faz acordo com um escroque, Cid (John Herbert), para conseguir o automóvel importado que deseja.
No quesito curiosidade, temos a atriz e ex-apresentadora de filmes (ao lado do gato Zé Roberto), Célia Biar (falecida em 1999), fazendo uma ponta; Copacabana antes dos aterros, com uma pista única de carros; e, ao fundo, no extremo do Posto 6, onde hoje é o Sofitel Rio Palace, a velha Tv Rio (sim, o Rio era uma cidade tão extraordinária que tinha uma emissora de tv sediada na praia!).
Já o episódio de Khouri (grafado como Khoury) destaca-se mais pela investigação estética do tema proposto do que propriamente pela força narrativa. Se a “noiva do Catete” de Sérgio Porto transborda uma espécie de doçura perversa, o olhar de Khouri faz Martinha (Jacqueline Myrna) flanar pela vida sem entender bem por que, administrando situações sexuais com vários amantes, sem os quais sua existência não faria muito sentido.
Como de costume, Khouri estava inspirado, e a movimentação quase silenciosa de Martinha ganha ricos contornos na sua visita a um antiquário (e a abordagem sugestiva por outra garota atraente), e no adágio com o amante mais velho (Sérgio Hingst), dentro do apartamento conjugado onde mora.
Percebida de forma melancólica, a moça do diretor inspira uma pena diferente da concebida pelo autor, que no livro chama-se Luci. Em comum, as duas utilizam-se do recurso de uma tia imaginária para espantar os amantes mais curiosos; além de um certo desprezo recalcado pelo poder fálico dos homens que trafegam (sempre provisoriamente) por sua cama.
O terceiro e último episódio, dirigido por Roberto Santos, é sem dúvida o melhor. Adaptando o texto “A Desinibida do Grajaú”, Roberto reformula a personagem, deslocando Marlene (Íris Bruzzi) para a Penha e inventando um programa inquisidor de tv (já na Tv Globo, recém-inaugurada), no qual Marlene espia seus pecados de garota da zona norte que, ao virar “celebridade”, adquire os hábitos avançados da zona sul, causando conflitos no conservador bairro de origem.
Interessante que, no livro, a personagem faça movimento migratório exatamente contrário: moradora do Leme, se muda para o Grajaú e causa um rebuliço por seu comportamento pra frentex. Quarenta anos passados, com a uniformização cultural generalizada pelos meios de comunicação, talvez essa distância conceitual entre bairros não seja mais tão dramática, tornando o episódio um oportunista sensacionalismo sociológico.
E, prestando-se bastante atenção, a prova mais pitoresca de que quarenta anos são uma vida pode ser encontrada muito além das variações comportamentais da urbe: nos créditos inicias de “As Cariocas”, o produtor da Boca do Lixo paulistana, Antonio Polo Galante, ainda aparece como maquinista, dois anos antes de fundar com Alfredo Palácios a Servicine e realizar quase seis dezenas de filmes.
Sérgio Porto, por outro lado, foi embora desse mundo cedo demais, em setembro de 68 aos 45 anos de idade, e, apesar dos pesares, deve ter ficado satisfeito com o esforço cinematográfico para suas histórias. Começando então a trafegar da crônica para o conto, se tivesse sobrevivido com certeza escreveria mais e melhor ficção, propiciando mais e melhores filmes brasileiros de qualidade com a assinatura do sobrinho da sábia Zulmira, o inesquecível Stanislaw Ponte Preta.
“As Cariocas” utiliza três histórias do livro, que possui originalmente seis. Uma quarta história, “A Donzela da Televisão”, viraria em 1970 “Em Busca do Susexo”, restando “A Desquitada da Tijuca” e "A Currada de Madureira", inéditas em adaptações para o cinema.
Aqui coube a Fernando de Barros recriar “A Grã-Fina de Copacabana”; a Walter Hugo Khouri, no ano de “Corpo Ardente”, materializar “A Noiva do Catete”; e a Roberto Santos, uma livre interpretação de “A Desinibida do Grajaú”.
Como o leitor pode perceber, é necessário conhecimento profundo da geografia sentimental e social do Rio de Janeiro (então o estado da Guanabara) para se iluminar melhor as nuances de "As Cariocas". A cidade mudou muito desde então, mas sobrevivem algumas contradições já presentes naquela metade da década de 60: zona norte e zona sul, litoral e subúrbios, ricos e pobres.
E se o livro trazia nestas contradições uma unidade, no estilo irônico e ágil de Sérgio Porto, o filme peca pela desigualdade e desinteresse em alguns momentos. Mesmo que a abertura – com imagens do cotidiano nativo, voice-off do próprio escritor, e a música de Damiano Cozzela e Rogério Duprat – prometa uma viagem ao paraíso cosmopolita.
O primeiro episódio, de Fernando de Barros, pouco acrescenta além da montagem dos fatos narrados no conto “A Grã-Fina de Copacabana”. Quase nada recria, sendo, coincidentemente, também o texto mais fraco do livro: Paula (Norma Bengell), uma dondoca da zona sul, faz acordo com um escroque, Cid (John Herbert), para conseguir o automóvel importado que deseja.
No quesito curiosidade, temos a atriz e ex-apresentadora de filmes (ao lado do gato Zé Roberto), Célia Biar (falecida em 1999), fazendo uma ponta; Copacabana antes dos aterros, com uma pista única de carros; e, ao fundo, no extremo do Posto 6, onde hoje é o Sofitel Rio Palace, a velha Tv Rio (sim, o Rio era uma cidade tão extraordinária que tinha uma emissora de tv sediada na praia!).
Já o episódio de Khouri (grafado como Khoury) destaca-se mais pela investigação estética do tema proposto do que propriamente pela força narrativa. Se a “noiva do Catete” de Sérgio Porto transborda uma espécie de doçura perversa, o olhar de Khouri faz Martinha (Jacqueline Myrna) flanar pela vida sem entender bem por que, administrando situações sexuais com vários amantes, sem os quais sua existência não faria muito sentido.
Como de costume, Khouri estava inspirado, e a movimentação quase silenciosa de Martinha ganha ricos contornos na sua visita a um antiquário (e a abordagem sugestiva por outra garota atraente), e no adágio com o amante mais velho (Sérgio Hingst), dentro do apartamento conjugado onde mora.
Percebida de forma melancólica, a moça do diretor inspira uma pena diferente da concebida pelo autor, que no livro chama-se Luci. Em comum, as duas utilizam-se do recurso de uma tia imaginária para espantar os amantes mais curiosos; além de um certo desprezo recalcado pelo poder fálico dos homens que trafegam (sempre provisoriamente) por sua cama.
O terceiro e último episódio, dirigido por Roberto Santos, é sem dúvida o melhor. Adaptando o texto “A Desinibida do Grajaú”, Roberto reformula a personagem, deslocando Marlene (Íris Bruzzi) para a Penha e inventando um programa inquisidor de tv (já na Tv Globo, recém-inaugurada), no qual Marlene espia seus pecados de garota da zona norte que, ao virar “celebridade”, adquire os hábitos avançados da zona sul, causando conflitos no conservador bairro de origem.
Interessante que, no livro, a personagem faça movimento migratório exatamente contrário: moradora do Leme, se muda para o Grajaú e causa um rebuliço por seu comportamento pra frentex. Quarenta anos passados, com a uniformização cultural generalizada pelos meios de comunicação, talvez essa distância conceitual entre bairros não seja mais tão dramática, tornando o episódio um oportunista sensacionalismo sociológico.
E, prestando-se bastante atenção, a prova mais pitoresca de que quarenta anos são uma vida pode ser encontrada muito além das variações comportamentais da urbe: nos créditos inicias de “As Cariocas”, o produtor da Boca do Lixo paulistana, Antonio Polo Galante, ainda aparece como maquinista, dois anos antes de fundar com Alfredo Palácios a Servicine e realizar quase seis dezenas de filmes.
Sérgio Porto, por outro lado, foi embora desse mundo cedo demais, em setembro de 68 aos 45 anos de idade, e, apesar dos pesares, deve ter ficado satisfeito com o esforço cinematográfico para suas histórias. Começando então a trafegar da crônica para o conto, se tivesse sobrevivido com certeza escreveria mais e melhor ficção, propiciando mais e melhores filmes brasileiros de qualidade com a assinatura do sobrinho da sábia Zulmira, o inesquecível Stanislaw Ponte Preta.
6 comentários:
Andréa, vou procurar esse filme. Sou fã do trabalho narrativo de Stanislaw Ponte Preta (recentemente comprei a nova edição de Febeapá). Seu post me deixou profundamente interessado. Sempre que passo aqui acabo encontrando coisas boas do cinema nacional. Coisas que normalmente os outros blogs não comentam. Abraços do crítico da caverna.
Roberto, pena o "As Cariocas" não ter saído em dvd, fica mais difícil de encontrar. Stanislaw Ponte Preta é ídolo mesmo, o "Febeapá", "Tia Zulmira e Eu", "Primo Altamirando e elas" são os tipos de livro que a gente lê de cabo a rabo, sorrindo. Abraços.
Andréa,
No livro 'As Cariocas' são 6 contos. Você esqueceu-se do texto, ''A Currada de Madureira', que pra mim é o mais fraco do livro.
Quanto à adaptação de 'As Cariocas', só gosto porque sou apaixonado pelo Sérgio Porto, e sentir a presença (mesmo que indireta) dele em qualquer forma de arte, é no mínimo reconfortante.
O livro é fenomenal, o melhor texto é o 'A Donzela da Televisão', em que imaginei a Íris Bruzzi fazendo o papel principal.
Aliás, 'As Cariocas' do Sérgio, é um livro extremamente cinematográfico. Às vezes parece que estou lendo o roteiro de um filme.
Isso me abre novos horizontes pra minha imaginação criar a minha própria adaptação do livro com personagens de carne e osso.
Não seria um filme, mas sim uma minissérie de 1 semana, (Seg. à Sábado). Tantas histórias não caberiam num rolo de filme com no máximo 1h20.
Essa minissérie imaginária seria feita nos anos 60, e com os atores da época, obviamente.
Permita-me sonhar.
Manteria o elenco de 'A Grã-fina de Copacabana', pois apesar de ser mediano é o mais fiel ao original.
'A Noiva do Catete' seria a ex-vedete Lilian Fernandes, com suas madeixas acobreadas e longas. Os seus amantes seriam os mesmos atores do filme.
'A Donzela da Televisão' seria a loira Íris Bruzzi, sua mãe a senhora Suzy Arruda, o diretor da Tv, o experiente Sérgio de Oliveira, seu ajudante o Hamilton Ferreira. E o Grande Otelo, em mais uma grande pequena aparição como o garçom da lanchonete, donde ocorre a primeira 'cena'.
'A Currada de Madureira', um texto mais violento, seria protagonizado por Leila Diniz, musa do cinema marginal, e seguida dos célebres atores dessa época sujinha do cinema nacional. Antônio Pitanga, Jece Valadão, e Geraldo Del Rey.
'A Desquitada da Tijuca' seria a comportada Odete Lara. Herval Rossano, o amigo-que-vira-namorado, e os demais admiradores, por notáveis coadjuvantes.
'A Desinibida do Grajaú', o segundo melhor texto e mal adaptado pelo Roberto, é, na verdade fortemente influênciado pelas chanchadas da década passada, e por alguns textos do teatro de revista. Sérgio exalta, como em nenhum outro texto, a beleza da mulher e as consequências causadas em outros homens. Repleto de estereótipos como o recém-casado, a vizinha gostosa, a mulher jararaca, etc... Anilza Leoni seria a boazuda, a esposa carrasca seria a Violeta Ferraz, e seu marido mulherengo o Zé Trindade.
Pronto, sonhei!
Abraços!
Oi Daniel, havia esquecido de citar "A Currada de Madureira", quarto conto do livro. Valeu pelo toque! Abraços!
O Daniel Filho adptou para a tv esses livro , naos ei quasis os contos iaao ao ara ams ja virou uma mini serie independente que deve ir o ar an tv globo. Como ele "é daquele tempo" e foi amigo do Sergio Porto vdeve vir coisa boa por ai
Santo André, 07h40min do dia 04 de fevereiro de 2013, chovendo sem parar, tenho um Estranho Encontro e meio que de repente "assisto" As Cariocas. Sem aprofundar o que já foi dito, por mais irregularidades que esse filme possa ter e por mais datado que seja, é INFINITAMENTE superior ao que foi feito recentemente pelo Daniel Filho (que sempre foi ótimo) para a Globo. Conseguiu estragar Stanislaw com episódios risíveis e narração cheia de péssimas tiradas, piegas e tolas. Para mim, só o episódio com a Adriana Esteves teve qualidade artística com algum destaque. Mas, deixa prá lá, pode ser apenas efeito do dia chuvoso e do meu mau humor decorrente. Abraços.
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