segunda-feira, junho 11, 2012

Marilia e Marina


O poetinha Vinícius de Moraes, quando tomava suco de cevada nas estranjas, numa depressãozinha de Velho Mundo, escreveu a “Balada das Duas Mocinhas de Botafogo”. Poucos diminutivos, bem pouquinhos. E o poema é tão grandioso que ele faz parecer que seja mínimo. Talvez por isto, o leitor começa a sentir a angina dançando um foxtrot no peito. Uma dor pequena, fininha, boa de sentir.

Vinícius não fala sobre prostituição, sobre “vencer a qualquer preço na vida” ou sobre essa entidade insuportável: a mulher estereotipada, vendida como maníaca pela Internet. A criatura precisa ser independente, precisa ser histérica, precisa ser consumista, precisa ser infalível.

As garotas de Vinícius são outras. Moram em Botafogo, no velho bairro dos casarões, da mocidade que passeia antes dos prédios de dois quartos serem construídos nos anos 60. Para quem não sabe, Botafogo esconde essa dinastia trágica. De suspiros, vestidos negros, classe média no portão. Parodiando Vicente Celestino, as “campas” do cemitério local são ilustres. Era do São João Batista que a voz do além perguntava à moça: “Cadê a minha flor?”, na história de Drummond (“Flor, Moça, Telefone”). Aliás, Vinícius, Drummond e Celestino são vizinhos de túmulo, a esta hora da noite. Revertere ad locum tuum: eis o lema que se vê na porta de entrada, na rua General Polidoro, e que acabou com a ingenuidade de muita gente.

Natural que esse clima todo aparecesse em “Marilia e Marina” (1976). É a história de duas irmãs, em um continente perdido. Adaptação do poema de Vinícius, feita pelo bamba Leopoldo Serran, dirigida por Luiz Fernando Goulart. Por coincidência, quase no mesmo ano Carlos Hugo Christensen deu contornos fantásticos a “Flor, Moça, Telefone”, mas levou o conto para Ouro Preto (“Enigma Para Demônios”, 1975).

Goulart e Serran optaram pela Botafogo de origem, pincelando detalhes da zona sul do Rio: carangos na praia, brotos escaldados, uma discothèque no meio. Até o dândi Carlos Prieto (irmão de Adriana) faz a linha “machão bom de briga”. Travestido de amigo de Júlio (Stepan Nercessian), ele encarna o fantasma que quiseram dar ao roteiro: é mais um exemplo do tosco universo masculino. Dos homens que são enxergados com tédio filosofal pelas duas irmãs.

Quanto mais se assiste a “Marilia e Marina”, mais se pensa aonde Serran quis chegar. David Neves (colega de Goulart no grupo do Cinema Novo), entenderia melhor os tempos mortos, a narração que parece realista mas que não o é. Na verdade, esconde uma bomba dentro das lingeries de Marilia (Kátia D'Ângelo) e Marina (Denise Bandeira).

Mocinhas dadeiras, cada qual a seu modo, Marilia e Marina viram referência na cidade. Sem pai e com a mãe austera (no poema, é asmática), as duas ficam soltas, aparentemente sem se entenderem. Sem se importarem entre si. Marilia promete se casar. Marina promete ser bisca. A mãe enche os pacová.

A figura da mãe enrolando docinhos funciona em 1976: é a prova da decadência do trio. Antes ricas, agora pobres. Idem a abertura do “Fantástico”, cheia de hippies na TV transistorizada. É como se existisse um buraco negro de ruindade, de ócio, que cobrisse as mulheres. Em 2012, o feitiço virou contra o feiticeiro. Os cabeludos parecem embaixadores de um mundo que já foi surreal e melhor.

Apesar do embalo de quase-reportagem, “Marilia e Marina” não deve ser encarado como crônica da família perdida. O filme se dedica a mostrar o desencanto, o desespero. Algo maior, a dor individualizada pelas garotas. E que de repente, não mais que de repente, é interrompida por um corte bruto. Chegamos ao abraço final. Ao único abraço possível, do único amor indizível: incestuoso, das duas irmãs.

Neste momento, “Marilia e Marina” transcende e explica a sua razão de ser, aquele grilo que ficava roçando na cabeça quando nos perguntávamos aonde Serran queria chegar. No entanto, o filme deixa um gosto amargo. Goulart e Serran poderiam ter ido além, poderiam ter explicado melhor a relação das meninas ao invés de se fixarem tanto no mundo exterior. Marina domina, Marilia se deixar dominar. São um refúgio mútuo, que suaviza o inferno vivido pelas garotas.

Muy provavelmente, a censura atacou com mão de gato. O DCDP (Departamento de Censura e Diversões Públicas) liberou o incendiário convescote lésbico para maiores de 18 anos, mas não permitiu excessos. Tesouradas riscaram no ar, como golpes de samurai. Os mesmos que Júlio via na academia coxinha de kung-fu, inebriado entre o pop disco e a trilha sonora de Francis Hime.

Depois de muitos anos ajudando filmes-síntese como “A Grande Cidade” (1965, Cacá Diegues) ou “Todas As Mulheres do Mundo” (1967, Domingos de Oliveira), Luiz Fernando Goulart conseguiu sair dos bastidores da produção. Em “Marilia e Marina” foi hábil ao dominar um território que parece ser um conhecido de muitos anos. Extraiu dele a minúcia das pequenas coisas. Uma esquina, o colégio, a escada que leva à casa. Por todo o esforço, conseguiu uma promessa de eternidade, uma reconstituição do que não está mais aqui. Uma eternidade mórbida, porém eternidade.

4 comentários:

Luis Santos disse...

Meu Deus, como você escreve com a alma, com as entranhas, com o sexo, com o sangue, com a respiração, com o corpo todo.

Poucas vezes posso dizer que ler algo sobre um assunto é mais interessante que o assunto em si. Nunca ouvi falar do filme e me veio a instigação de vê-lo.

Andrea, você é sublime e única neste 2012...

Andrea Ormond disse...

Luis, o cinema e o texto são a razão de tudo isso. Não consigo entender alguém que escreva chapa branca e sem um pingo de paixão. Infelizmente essas distorções acontecem demais, é um terror, que acaba afastando as pessoas diante dos filmes. Obrigada pelo que você disse. Ler ou ouvir comentários desse tipo são inspiradores, muito mesmo.

Anônimo disse...

Se trata de um bom filme dentro das limitações do tema abordado,o assisti há 2 anos atrás e o considero algo Kafkiano,pois as duas irmãs protagonistas acabam se auto-destruindo na mediocridade do seu cotidiano e confirmando de forma absolutamente inequívoca o absurdo da existência humana.

Raimundo Nonato disse...

Amo o seu texto Andrea! O ano de 1976 foi quando mudei para o Rio de Janeiro com 18 anos. Foi a escola que me preparo para a vida. Eu curtia muito cinema na minha adolescência e no Rio era um lançamento at as do outro. Eu vivia na Cinelândia. Era tambet ponto de encontro gay da época e íamos para os barzinhos fofocar, encontrar amigos e tomar chopinho! Saudades dos bons filmes brasileiros daquela geração! Um grande beijo pra você!