terça-feira, dezembro 27, 2011

Fofão - A Nave Sem Rumo


Os olhinhos amendoados e as bochechas imensas colocaram Fofão como um dos mártires da Nova República. Mesmo sem ter chorado nas “Diretas Já” ou comparecido ao enterro de Tancredo Neves, a presença do alienígena cristalizou uma era.

Fofão não acabou com a ciranda financeira, nem interrompeu o “overnight”. Não sacudiu os fiscais do presidente José Sarney, que lacravam supermercados, julgando-se o máximo da cidadania. Tampouco acusou o fato de os açougues esconderem carne para venderem no câmbio negro. Mas nesta surrealidade, nesta euforia histérica, havia uma única verdade: lá estava ele, o nosso ogro. O ogro bom.

De macacão, camisa listrada. Fofão balançava os cabelos em desalinho, que culminavam em um risco no topo da cabeça e dividia a carapinha ao meio. Anjo decaído da Fofolândia, ele havia abandonado o planeta de origem durante um almoço que a mãe lhe preparava. Percebam: Fofão é uma criança. Mais alta e de aspecto esquisito. Porém, criança.

Como o tempo dos fofos é diferente dos tempos dos humanos, passou muitas luas conosco, seus amigos da Terra. Acordávamos cedo, corríamos ao televisor e sapecávamos o botão de “liga/desliga”, rodando o seletor à procura do canal. Absoluta inexistência de controle remoto.

A vinheta do programa estalava no centro da tela. O plano se abria. “A Turma do Balão Mágico” pulava no palco. Simony, Tob, Jairzinho (o filho de Jair, do “Fino da Bossa”), Mike Biggs (o filho de Ronald, amigo íntimo de Her Royal Majesty). Entre desenhos e canetas de hidrocor, Fofão conversava com todos.

Revendo de longe as “apatralhadas” – como ele próprio gostava de dizer –, as brincadeiras aconteciam em pé de igualdade. Reside aí umas das respostas para o caráter nobre de Fofão. Era doce, meigo. Não impunha um clima de superioridade, fosse pela beleza ou por uma idéia qualquer de potência.

Acabou descambando para a venda de produtos, estrelou programa na Tv Bandeirantes, mas manteve o estilo ingênuo, criado por Orival Pessini. A máscara de látex não deixava aparecer o rosto de Pessini, que serviu de cavalo para o bicho ruivo. Além de Fofão, interpretou o macaco Sócrates de “Planeta do Homens” e o Patropi da “Escolinha do Professor Raimundo”.

No outono das críticas e das acusações de satanismo, Orival Pessini/Fofão dava entrevistas. Vejam que (obviamente) sempre há um demônio rondando a infância alheia, diria Anna Freud. Crueldade de alguns invejosos: diziam que os bonecos do Fofão escondiam navalhas e que matariam as crianças à noite. Além disso, se pareceria com Chucky, o boneco assassino, e talvez com algum outro recalque lembrado de madrugadas macabras, em que se exibia “Alice, Sweet Alice” (1976) ou o clássico absoluto do terrorismo notívago, “Gargoyles” (1972).

Por sua vez, as entrevistas chorosas de Pessini/Fofão eram um assombro behaviorista. Enquanto usava a dicção de ET – que parecia quase sempre estar babando –, o ator/personagem também aproveitava para cometer declarações sérias. Estranhíssimo.

Noves fora, Orival Pessini acabou tendo um espetacular encontro com Adriano Stuart. Sim, o fígado de maior pH reativo da Boca do Lixo. Fez-se a luz. Nasceu “Fofão - A Nave Sem Rumo” (1989), patrocínio dos antigos chocolates Dizioli. A logomarca aparece nos primeiros segundos, qual o leão da Metro. Pena não terem sido as cigarrilhas de chocolate Pan, cuja imagem de um molecote fumando é um deleite politicamente incorreto.

Como diretor, Adriano Stuart tenta imprimir a mesma correria dos filmes dos Trapalhões, que já havia dirigido. Especialmente “Os Trapalhões na Guerra dos Planetas” (1978). Este e “Fofão - A Nave Sem Rumo” devem muito aos sabres e aos vapores futuristas de “Star Wars”. E isto apesar de a trilogia de George Lucas não representar novidades em 1989.

É certo que o insuportável C3PO bateria os pés, recitaria algum adjetivo de quatro sílabas para a tal “Nave sem Rumo”. Independente do ataque, Fofão cumpriu o seu chanchadesco objetivo. Usou efeitos especiais saídos dos consoles de Atari e o ruminar silencioso da aura que conquistou na TV.

O imaginário de Adriano Stuart apela para “Poltergeist” (1982). A velha máxima da babá eletrônica surtada, mas aqui pegando leve, de relance. Idem “Super Homem” (1978), o primeiro da série. Ao invés de Marlon Brando umbandista, vestindo camisa branca, temos a honra de conhecer o pai e a mãe de Fofão. Ele, recém-nascido em uma manjedoura. Ou seja: a aurora da dinastia.

Espectadores mais atentos verão ecos de “Kung Fu contra as Bonecas” (1975), o cult com o próprio Stuart, Helena Ramos e o inacreditável Maurício do Valle. No entanto, não esperem cartilha cor de rosa, ou Fofão se engraçando em uma vaga homoerótica. Caminham por vales, andam a dar com o pau. Depois um garotinho manipula nunchakus, rodando ao léu.

Sinceramente, não posso imaginar outro sonho de consumo para o menino. Emendar um Bruce Lee, catar de sopapo os vilões que no fim do expediente engoliam rabos-de-galo poderosos no bar Soberano. Adriano Stuart soube tratar da autoestima da criançada, torná-las protagonistas junto com Fofão no mesmo grau de imaturidade, na mesma vontade de ajudar.

Entram de repente os grugrugrus de Fofolo, grande parceiro da Fofolândia, um ser de poucos centímetros e coberto de pelos. Sabe-se lá quem deu vida ao querido animal. Talvez um anão, talvez uma criança. Eles dançam com a trilha sonora de Terry Winter e Neil Bernard, a dupla de brasileiros, autores de “Summer Holiday”, hit wonder de 1972. Como a realidade aparece unicamente para distorcer os sentidos, ainda se pode esperar que Fofão pule umas cambalhotas até o fim do LP, demore para retornar ao almoço cozinhado pela mãe e proteja com as patas vermelhas o que resta de nossa melancólica idade adulta.


PS - Esse post encerra nossa série sobre o cinema infantil e também o ano de 2011. Um feliz 2012 a todos os leitores! O blog volta em meados de janeiro.

domingo, dezembro 11, 2011

Super Xuxa Contra Baixo Astral


Quando o SBT atendia pela alcunha de TVS e exibia comerciais milagrosos, como o das Piscinas Tone e da Bola Porco do Mato, Xuxa Meneghel era uma tosca promessa, no meio de tantas. Reza a lenda que até Sílvio Santos, no alvorecer dos 80, a jogou para escanteio, preferindo contratar Sérgio Mallandro.

Vida que segue, Xuxa e Mallandro depois formariam dupla em “Lua de Cristal” (1990). Mas aí já haviam passado para uma nova década, gloriosa, que apenas consolidou o corso de crianças, velhos e criaturas alucinadas, fãs de Meneghel. Capa da revista Status, namorada de Pelé, coadjuvante escolhida por Walter Hugo Khouri em “Amor Estranho Amor” (1982) – o “proibidão” do cinema brasileiro –, a suposta adoradora de Lúcifer experimentou em dez anos uma intensa virada profissional.

Desabrochou, floresceu. Encontrou Marlene Mattos, empresária maranhense que tosou-lhe algumas liberdades, ensinou-lhe outras, torneou o corpo exuberante e formatou-a como uma boneca, objeto de consumo. Poucos poderiam compreender como a jovem estrela de “Fuscão Preto” (1983) – ao lado do cantor Almir Rogério – se consagraria em arquétipo da moralidade ecologicamente correta dos anos 80 e 90. Mulher (suburbana, como ela reitera), de beleza européia e incrivelmente infantilizada para a idade.

A chegada das vassalas Paquitas (que renderam histórias hilárias de maus-tratos às crianças) juntou uma outra camada ao mito. Afinal, se não podíamos ser Xuxa, que tal pelo menos Paquita? O fato é que Maria da Graça Meneghel desbancou a Turma do Balão Mágico, colocou um speed mercadológico na água do universo infanto-juvenil e cruzou fronteiras. Encantou Adolpho Bloch na Tv Manchete, migrou para a Globo, envolveu-se com Ayrton Senna e, num tour pela América Latina, exerceu o colorido para Carlos Menem e Marcelo Tinelli (o galã da Telefe argentina).

No "Xou da Xuxa" a apresentadora saía toda manhã de uma nave espacial rosa e ia ter com dois bichos, animadores de auditório: Dengue e Praga. Curiosamente, quando decide recomeçar sua trajetória no cinema brasileiro, abandona os colegas de palco. Vejam que o caso é grave, praticamente uma profissão de fé. Como se, imitando Zé Bonitinho, dissesse “câmeras, close”, foco em mim. Apenas em mim.

E é sozinha que ela aparece em “Super Xuxa Contra Baixo Astral” (1988). Centro e estrela de tudo, reiniciando do zero, aproveitando o banho de loja que sofreu ao chegar à televisão. Vestida, ma non troppo. As belas pernocas saltavam longilíneas do shortinho branco. Pelas conversas dos tempos de escola (e que me divertem até hoje, com amigos ora barbados), posso colocar a mão sobre o Guia 1989 de Vídeos e jurar: nem todos os meninos a viam como uma santa intocável. Digamos que ela foi um “rito de passagem”, para muitos.

Nesta nova fase cinematográfica, o enredo de “Super Xuxa Contra Baixo Astral” não poderia ser melhor. Um sururu ambientalista, com a colaboração de Antonio Calmon (completando metamorfose que o abduziu do cínico policial brasileiro para o pop deslavado de “Menino do Rio” e "Armação Ilimitada”). Traz ainda um aspecto “musical”, que deve bastante a Lael Rodrigues, o homem que, qual Busby Berkeley, dirigiu “Bete Balanço” (1984) entre ruidosas coreografias, cheias de mullets e ombreiras. Paulo Massadas e Michael Sullivan ficam por trás das canções que reforçam a “tese” da história.

Em resumo, o seguinte: a moça é pureza, a moça é amor. Xuxa conta uma fábula que se enrola toda. Jabás explícitos de grandes marcas – os conglomerados macro econômicos da geopolítica ocidental –, o capitalismo que ela própria critica (“Tudo é dinheiro! Muito lucro!”) enquanto espeta uma bonequinha com a mesma roupa e cara da apresentadora, algo para lá de esquizofrênico. O discurso desafia a prática, que desalmada.

Caminhando pelo bosque onírico, a guria encarna uma seguidora de Freud. A tradução perfeita de “A Interpretação dos Sonhos”, livro polêmico que chocou gerações: “O que eu não sei, lá vou saber./ Vem sonho, vem/ vem me responder”. Pena que não encontre o "Homem do Ratos" ou "Anna O." dando sopa, para aterrorizá-la numa interminável psicanálise.

A esta altura, o cãozinho Xuxo apareceu em versão pelúcia, com voz estranha e afeminada. É a gota d'água para os estudiosos do tema, que geralmente o associam ao ocultismo, colocando-o como peça-chave na trajetória de riqueza e sucesso de Meneghel. Sem adentrar nessas altíssimas especulações filosóficas, a Xuxa do filme combate a burocracia, o alvo número 1 de babyboomers como Calmon, que nasceram inconformistas e se acalmaram com o tempo. Também luta pela natureza com os brinquedos “Lango Langos” (sabe-se lá por quê) e associa pichações à violência (o grafitismo ainda não era moda).

O vilão Baixo Astral (Guilherme Karan) habita o mais escuro esgoto. Com lágrimas nos olhos, a emoção toma conta e lembramos que por lá andava o jacaré “Alligator”, a mais querida mutação nuclear que já se teve notícia e que celebrizou os domingos, após o "Show de Calouros" do canal de Sílvio Santos. Apesar de não encontrar o amigo selvagem, Baixo Astral faz de tudo para achincalhar a alegria da loira que (é claro) atende pelo “alto astral” da humanidade. Rafa (Jonas Torres) até que ajuda, meio sem querer, pois é rebelde, do tipo que desobedece os pais. Muito baixo astral.

Karan faria sucesso na "Tv Pirata", Jonas Torres era do clube da "Armação Ilimitada". Xuxa usou esses ganchos e ainda embarcou em outros, como "Os Trapalhões" (vide, por exemplo, “A Princesa Xuxa e Os Trapalhões”, 1989). Nos idos de 2001, envolvida com a filha Sasha e dando um slow motion nos pulos pelo palco, Xuxa assistiria à nave rosa arder em chamas. A destruição do papel crepom, do celofane, as paredes caindo no estúdio, a fumaça quase matando as crianças que estavam por perto. Choque de realidade. Não deixa de ser a concretização de um pesadelo dos meninos e meninas, a fantasia da mãe boa que se evanesce num sopro e os coloca, súbito, no inferno.