segunda-feira, outubro 25, 2010

O Padre e a Moça


Filho crismado em linhagem mineira, os traços aquilinos, tão aristocráticos quanto conseguem ser os de nascidos em colônia de El Rey, Joaquim Pedro de Andrade cresceu rodeado por memórias do Brasil, desaguassem elas em fonte quatrocentona – família Melo Franco de Andrade, por parte de pai; Prates e Sá, por parte de mãe – ou na urbanidade mais século XX, impossível – a do Cinema Novo.

Em exercício metafísico pode-se vê-lo ajeitando os monóculos – nunca os teve –, sacando do bolso as moedas do Império e, inconfidente, digerindo-as para ser parte do movimento que vociferou o mito da “consciência-social-popular”. Os olhos pequeninos, o porte magro, austero de Joaquim Pedro galvanizou as pontas soltas do grupo em um primeiro momento e improvisadamente ou não, lustrou o verniz, as estratégias de atuação da blitzkrieg cinemanovista.

Antes do apogeu, nos idos de 1957, a residência dos Andrade em Ipanema era célula mater – à moda dos laboratórios Líder em Botafogo, quando as produções de 1960/70 já iam a todo vapor. Deu corpo ao que os rapazotes modernistas de quarenta anos antes – entre eles, Manuel Bandeira, padrinho de pia de Joaquim – chamavam de “saraus”. Na terminologia pré-sessentista, atualizem-se os nomes: ao invés de saraus, “reunião de cineclubistas”, regadas à urgência extremíssima do debate. Como se a vida se concretizasse no grito, no fervilhão de idéias, o “ser” mesclado à tela em uma representatividade que absolutamente se perdeu. Espécie de engrenagem travada, autofágica, a rotina de produzir ou de assistir aos filmes tirou a ascese, tirou o abismo, deixou o prato feito de arroz com feijão.

Muito dessa anima inicial de Joaquim foi instigada nos tempos da Faculdade Nacional de Filosofia, quando cursava física, grumete de Plinio Sussekind Rocha – um dos ideólogos de “O Fan”, marco da investigação crítica nacional. Sabe-se que na FNFi houve a antológica exibição de “Limite” (1930), direção de Mário Peixoto, película de até então difícil acesso. Sabe-se que ao se ver tomado pelo cinema, apesar de recém-formado, Joaquim foi a Minas, a mando do pai – criador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) –, tendo participado da restauração de “Os Passos da Paixão” de Aleijadinho – protagonista de um curta encomendado pela Embrafilme em 1978.

Sabe-se que enveredou pelo jornalismo. Sabe-se que colheu frutos; que após o emblemático “Couro de Gato” – episódio de “Cinco Vezes Favela” (1962) –, estagiou na Cinemateca de Henri Langlois, estudou com ícones do “cinema verdade”, rodou “Garrincha, Alegria do Povo” (1962), ancorou, enfim, neste “O Padre e a Moça” (1966), momento em que estréia no longa-metragem.

E bem assim, o épico de Joaquim Pedro daria início a alguns outros, como o dos garotos do cineclubismo das Gerais – Carlos Alberto Prates participa na continuidade de “O Padre e a Moça”, a convite do diretor, que visita a sobreloja do edifício cine Art-Palácio na capital mineira. Continua a parceria com Luiz Carlos Barreto – a exemplo de “Garrincha” –, após sair da Saga Filmes, na qual rodara curtas iniciais. Exemplar da Difilm, distribuidora do Cinema Novo até 1968, quando Barreto compra as cotas dos demais sócios – Glauber Rocha, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Walter Lima Jr., Paulo César Saraceni, Zelito Viana, Roberto Faria, Rivanides Faria, Marcos Faria. Posteriormente ao impacto de “O Padre e a Moça”, Joaquim montaria sua própria Filmes do Serro – nome originário das locações, em São Gonçalo do Rio das Pedras e Diamantina, região do Serro mineiro.

Curioso perceber que a equipe de filmagem foi artificie de uma típica experiência capitalista. Em meio ao bócio – aparecem figurantes in natura –, ao breu, à total ausência de recursos, eis que os jovens instalam os primeiros vasos sanitários, e inclusive uma ponte, em São Gonçalo do Rio das Pedras. Não bastasse a presença do falso padre, esse outro aspecto redentor angariou imediata simpatia do povoado. A despeito da pequena conquista tecnológica, deve-se dizer que o processo de realização foi doloroso, o esquema contrasta com qualquer pretensão hollywoodesca. Primou por um rito de passagem ao diretor e demais participantes, que esqueceram grande parte do que havia sido traçado antes da viagem e construíram algo belo, faiscante, em conjunto.

“Sugerido pelo poema 'O padre, a moça', de Carlos Drummond de Andrade” – informação direta dos créditos –, “O Padre e a Moça” deu caminho para outras adaptações de Joaquim Pedro, na breve trajetória de cinco longas. Afirmava não ter sido arrebatado completamente por um roteiro que lhe chegasse do zero – apesar de preferir que, na prática, isso houvesse ocorrido. Partia de idéias, se aproximava do suporte literário e assim prosseguia. Construiu “Macunaíma” (1969) utilizando o livro homônimo de Mário de Andrade. Em “Os Inconfidentes” (1972), os Autos da Devassa, os cantos de Tomás Antônio Gonzaga e Cecília Meireles. Em “A Guerra Conjugal” (1974), Dalton Trevisan; em “O Homem do Pau-Brasil” (1981), Oswald de Andrade.

Quanto ao poema, padre e moça de Drummond não se restringem ao interior de uma cidade inóspita, barroca, mineira. “O padre, a moça” se realizado ipsis litteris estaria bem mais para um road movie lisérgico. A batina grassando pelo país inteiro (Piauí, Goiás, “Quem sabe se em Pernambuco?/ Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas/em pé no caminho da BR 15 com seu rosário”), a garota sem nome, indo ao encontro do religioso acuado pelo exército (“Forças volantes atacam o padre, quem disse/ que exércitos vencem o padre? Patrulhas/ rendem-se/ O helicóptero/ desenha no ar o triângulo santíssimo”), perseguido pela imprensa (“O Correio, Globo, Estado/ Manchete, France-Presse, telef/otografando o invisível?”), usufruindo da pior das interdições (“O senhor bispo, chamado/ com voz rouca de implorar,/ trancou-se na sua Roma/ de rocha, castelo de ar.”).

Para o filme, Joaquim atribuiu um passado à moça, designada Mariana (Helena Ignez), abandonada quando criança pelo pai garimpeiro num local fraturado, seco. Entregue a Honorato (Mário Lago) que mantém com ela relações incestuosas, provavelmente dividindo-a com Padre Antonio – falecido, a quem o Padre novo (Paulo José) vem substituir. Única vestal entre o coro de beatas – a líder, Rosa Sandrini, atriz da Atlântida – e de homens da cidade, Mariana se engraça com Vitorino (Fauzi Arap), o besta-fera, que tenta contrapor alguma verdade no conformismo que asfixia a todos.

Ciente do que ocorre com Mariana, mortificado pelo desejo escuro, o Padre a leva para longe, caminham sem direção, retornam, correm de novo. Sem o domínio, atormentado, ouve a imprecação: “Padre, por que o senhor não olha para mim? Tem medo?”. Definida a confusão de sentidos, as frases ressoam até uma das mais espetaculares seqüências de amor do cinema brasileiro, cultivada pelo silêncio, sem se dizer palavra – ao gosto do mistério de Sussekind da Rocha, avesso às películas sonoras.

As ações do roteiro não se encontram, portanto, totalmente no poema – que não menciona garimpo, abusos sofridos pela menina, compartilhamento da ação com outros coadjuvantes de peso. Drummond enfoca “um negro amor de rendas brancas”, fugitivo, perseguido, condição existencial, xeque perante Deus (“quando o homem é apenas homem/ por si mesmo limitado,/ em si mesmo refletido;/ e flutua/ vazio de julgamento/ no espaço sem raízes”). Esta humanidade é mantida no filme. Verve central, que no desenho de Joaquim Pedro – plasmado na fotografia de Mario Carneiro – passa bem mais pela contenção do que pelo extravasamento.

Joaquim trata da incomunicabilidade, a moça clara, etérea; o vulto negro do Padre caminhando pelo serro. Mesmo símbolo que Stendhal colocara nas costas do personagem Julien Sorel, e que também encerrou morte. Julien, a cabeça decapitada, nas mãos de Mathilde; Padre e moça, encalacrados numa gruta, “o úmido medo”, lá fora os incendiários, “crepitar da lenha pura”, “eis que perseguidores se persignam.”

“Diário de um Padre” (1951), dirigido por Robert Bresson – professor de Joaquim, no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, em Paris –, lida com o choque entre fiéis e padre, este no lado mais frágil da corda, solitário. Baseado no livro “Diário de Um Cura de Aldeia”, de George Bernanos, em Bresson enxerga-se um tipo diferente de crueldade, o provincianismo contrário ao idealismo do cura, fato que sequer consegue existir na obra de Joaquim Pedro, face à total indigência do povoado brasileiro.

Por outro lado, a nesga de extroversão de “Diário de um Padre” – lembrar, por exemplo, que em 1951 a trilha sonora tendia para o excesso – não aparece no mutismo propositado de “O Padre e a Moça”. Aqui brilha a partitura de Carlos Lyra, direção musical do maestro Guerra Peixe, executada pelo Quinteto Villa Lobos. Somada ao gravurismo do cenógrafo, câmera e fotógrafo Mário Carneiro – presente naquela exibição espectral de “Limite”–, tem-se um resultado único, particular de cinema.

A despeito do casamento profissional, a notória tensão entre Carneiro e o Joaquim Pedro foi vencida apenas anos depois – Joaquim produziu o único longa-metragem dirigido por Mário, o feérico “Gordos e Magros” (1976), tongue-in-cheek filosófico estrelado por Carlos Kroeber. “O Mundo de um Filme” (2007), de Camila Maroja, Clara Linhart e Daniel Caetano toca de maneira saborosa a controvérsia, contada pelo sobrevivente. Mário Carneiro e Mário Lago, entrevistados, ainda caminhavam sobre a Terra, bem como a casa de Joaquim – cuja destruição, mostrada no documentário, revolta a quem compreende o símbolo que existia ali.

Em meio aos inúmeros incidentes com a Censura federal – liberação para 18 anos com cortes; posterior exibição para 21 anos, ao inteiro –, revertérios marcariam a trajetória de “O Padre e a Moça”. Se Paulo José foi escolhido às pressas, em substituição a Luís Jasmim – caiu doente de hepatite, a dois dias do início das filmagens –, a finalização do filme sofreu com a prisão do próprio Joaquim Pedro, envolvido no episódio dos “Oito da Glória”. Vestidos de terno, protestando em frente ao Hotel Glória durante convescote de representantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), de lá saíram de camburão, para a rua Barão de Mesquista, os senhores Joaquim, Mário Cardoso, Glauber Rocha, Flávio Rangel, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves e Jaime Rodrigues. Glauber, por sinal, rascunhou de dentro da cela algumas passagens de “Terra em Transe” (1967).

Selado o destino bélico daquele período, quando a razão sofria bailes de uma emoção tingida a fogo, “O Padre e a Moça” sofreu uma das dimensões possíveis do amor. O que a princípio era “alienação”, drama comezinho sem “envergadura política” – todas as aspas possíveis, ressaltando a burrice do pensamento dicotômico, sem nuances –, enganou o vespeiro e encontrou o lirismo nosso de cada dia. Derrubou as cartilhas engajadas, peitou a repressão, priorizou o encantamento. Lição de iniciante, ponto a ser celebrado nas origens do Cinema Novo, que no futuro se embrenharia por outras vertentes.

5 comentários:

MÁRCIO FERREIRA DE SOUZA disse...

Andrea, Belíssimo texto. O Padre e a Moça, inaugura a curta, mas emblemática, filmografia de JPA. Penso que foi o cineasta que a despeito de beber em fontes alheias, suas adaptações – Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan, Cecília Meirelles, dentre outros - possuem uma marca muito particular. Uma característica que o torna um "autor" de cinema.

mauricio.jx disse...

eu moooorrooooo de vontade de achar um filme chamado: O Quinto Poder, com a eva wilma. é fantástico tudo que eu já li sobre ele. e ele tem q estar em algum lugar!

Roberto Pepino disse...

Cheguei a seu blog apenas hoje. Parabéns pelo trabalho de riquíssima garimpagem, com resgate de filmes e personagens. Se me permite, estou colocando seu belo espaço entre meus favoritos. Um abraço!

ANTONIO NAHUD disse...

Parceiro, belo trabalho! Bravo!
Como parceiro do cinema, convido-o a navegar no blog O Falcão Maltês. Com ele, procuro o deleite cinematográfico.
Abraços,
Antonio Nahud Júnior

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Márcio, obrigada também pelos dvds do Joaquim Pedro, todos de extrema importância para eu que possa rever os filmes com calma. O Joaquim tem realmente uma trajetória interessante dentro do grupo. Lidou com a carga hereditária e manteve uma sensibilidade à flor da pele nas adaptações dos textos.

mauricio.jx, está aí um filme raríssimo. Se vc encontrar, agarre-o!

É um prazer, Roberto. Agradeço os elogios, o trabalho é árduo mas sempre gratificante. Essa é a razão de tudo. Abraços!

Sorte com o blog, Falcão.