segunda-feira, março 01, 2010

Tragam-me a Cabeça de Anselmo Duarte


Agora que é morto, podemos abrir o verbo e dizer tranqüilamente que a grande tragédia na carreira de Anselmo Duarte foi ter recebido, em maio de 1962, uma Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A glória francesa transformou o cineasta em muso de assédios mórbidos, iconoclastias revanchistas e toda sorte de doenças que envenenam a cultura brasileira. No meio tempo, embora realizasse filmes excepcionais -- como “Vereda da Salvação” (1964) e “O Descarte” (1973) -- parecia somente réu preferencial do mais hediondo dos crimes: vencer por seu próprio mérito.

Na fase áurea da pornochanchada, figurante de 59 anos, sotaque impoluto da Vera Cruz, personagem de marido corno dissertando sobre wife swap -- enquanto seus detratores torravam milhões da Embrafilme --
Anselmo já era prova triste de uma desconstrução bem sucedida. E expurgo da guerra cultural vencida pelos invejosos.

Digamos invejosos com ênfase psicanalítica, pois grande parte dos “gênios" do Cinema Novo que lhe jogaram pedras, representavam, sem tirar nem pôr, exatamente aquilo que lhes causava repulsa: uma elite fria e provinciana, distante da emoção popular.

E, na hipocrisia cinemanovista, Anselmo lembrava verdade incômoda: o brasileiro comum sempre preferiu -- ainda prefere -- “O Pagador de Promessas” (1962) e identifica-se mais com o drama de Zé do Burro, do que com centenas de alegorias ideológicas obscuras.

Daí para acusações de alienado, reacionário, quadrado, foi um pulo. Teriam dito qualquer outra coisa -- que nadava nu em Peruibe ou que vestia terno Ducal. O que importava somente era descontar a frustração, desopilar o fígado, em uma época de paixões infantis e radicalizadas.

Mas toda essa injustiça pode ser revertida com um simples ato generoso: revermos Anselmo Duarte nas telas, seja como ator em mais de 40 filmes; seja como diretor, roteirista, produtor.

Galã da ponte-aérea -- na Atlântida e Cinédia, do Rio, e na Vera Cruz, de São Paulo -- contava que só aprendeu a representar levando um tapa da diretora Gilda Abreu, durante as filmagens de “Pinguinho de Gente” (1947). Como seu sonho de infância era tornar-se diretor, em 1956 aproveitou “Arara Vermelha”, de Tom Payne, para editar um mini-documentário, quase making of da produção, intitulado “Fazendo Cinema”.

Dirigiria no ano seguinte seu primeiro longa, “Absolutamente Certo” (1957), que o perseguiu como fantasma. A razão é que os futuros detratores adoravam dizer que aquele teria sido seu melhor trabalho. Dessa forma, sugeriam indiferença à coleção de êxitos e esforços de Anselmo -- como se, para ele, estivesse reservado apenas um destaque nas chanchadas.

Ao adaptar a peça de Dias Gomes em “O Pagador de Promessas”, era óbvio que desejava aproximação com os movimentos de vanguarda -- social e cinematográfica -- que pipocavam pelo mundo. Fez isso da maneira mais inteligente possível, iluminando a fé em oposição à Igreja. O que ele não sabia era que, a partir de então, não bastava somente filmar. Era preciso pertencer aos grupos certos, submeter-se aos caprichos coletivos, aceitar lideranças em nome de projetos duvidosos.

Em resumo: “O Pagador de Promessas” já nascia politicamente velho, ultrapassado. Teve sorte do júri de Cannes acolhê-lo em um ano de títulos absurdamente bons -- “O Anjo Exterminador”, de Luís Buñuel, e “O Eclipse”, de Antonioni, estavam entre os concorrentes -- o que fez o êxito parecer irrefutável. Tão irrefutável que seus detratores -- novamente e sempre eles -- sofismariam que, na presença de obras brilhantes, os jurados haviam escolhido o medíocre brasileiro para não se comprometerem.

Recebendo outros prêmios, nos Estados Unidos, no México e na Grã Bretanha, ao voltar para o Brasil -- trazendo os canecos embaixo do braço -- Anselmo Duarte devia estar julgando-se acima do bem e do mal. Mas obteve recepção gélida, principalmente no Rio de Janeiro, onde os garotos com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” vislumbraram no ex-galã de 42 anos, caipira e laureado, o melhor alvo para demarcarem onde terminava o velho e começavam eles -- os novos.

Por outro lado, Anselmo foi utópico e auto-destrutivo o suficiente para brigar com meio mundo, indispôr-se até nos círculos paulistas -- vide polêmicas envolvendo Rubem Biáfora e Alfredo Sternheim -- e investir fortuna em adaptar uma história dificílima de Jorge Andrade, autor teatral desconhecido do público e da crítica -- que esperavam novo “Pagador”. “Vereda da Salvação” (1964), marginalizado no Festival de Berlim, selaria definitivamente um paradigma: realizar trabalhos populares ou impecáveis, mas que sempre davam a impressão de que o “ganhador da Palma” afundava, decaía.

Ao correr dos anos somou-se idéia de que Anselmo reagia aos altos e baixos com pedantismo e arrogância. Talvez seja verdade. Mas Lima Barreto e Glauber Rocha não eram exatamente flores de modéstia, e ninguém os expulsou do Olimpo a pontapés. Artistas não precisam ser humildes e cordatos, precisam é criar grande arte.

Revisão isenta de “Quelé do Pajeú” (1969), “Um Certo Capitão Rodrigo (1971), “O Descarte” (1973), “O Crime do Zé Bigorna” (1977), além de sua odienta performance em “O Caso dos Irmãos Naves” (1967), de Luiz Sérgio Person, matam qualquer dúvida sobre o talento de Anselmo Duarte para o cinema. E sua real empatia com as coisas brasileiras, seu amor visceral pelo país, nos fazem querer justamente o embate que os cinemanovistas tanto buscaram: quem realizou, de fato, uma arte de vanguarda com os pés fincados nas raízes nacionais? Quem aludiu ao novo revigorando as tradições, dialogando sinceramente com o autêntico imaginário do povo?

Não se espantem, leitores, que as respostas provem que foi Anselmo Duarte, servindo de inspiração e sparring, o maior impulso criador para o cinema brasileiro dos anos 60. E que o “trágico” prêmio de Cannes, antes de ofensa, injúria, era dilúvio de generosidade, cheque em branco para um país periférico e esquecido, mas com potencial imenso de expressão. Calhou de Anselmo Duarte ser a vítima de tantas esperanças, cercado de derrota por todos os lados.

(in Zingu #38, março de 2010)


* Nunca pensem os leitores que não gosto do Cinema Novo, nem que descarto sua contribuição para a filmografia nacional. Apesar de algumas idiossincrasias irritantes e certas premissas espúrias, acredito que aquela geração produziu grandes obras, e as admiro. Mas diferente do que se vendeu durante muitos anos, os frutos e desdobramentos do Cinema Novo não representam a ÙNICA realização relevante para o cinema brasileiro de 1960 até a chamada Retomada. Neste contexto, polemizar sobre a importância e influência de cineastas como Anselmo Duarte é também contar uma história diferente da que conhecemos, o que desde sempre foi meu objetivo enquanto crítica e pesquisadora. Querendo saber mais, leiam este ensaio. Mais ainda, leiam este.

14 comentários:

Anônimo disse...

Andrea, parabéns mais uma vez. Neste último final de semana tive a oportunidade de rever "O Caso dos Irmãos Naves", lançado recentemente em DVD e a performance de Anselmo Duarte como o tenente torturador figura entre as melhores interpretações em nosso cinema. Penso que este tenente, por ele interpretado, é um papel até mesmo emblemático: um carrasco perseguidor, criador de factóides para justificar suas "verdades". Pode até ser que eu esteja forçando a barra, mas cabe a analogia com a carreira de Duarte - só que, no caso de sua carreira, ele foi a vítima e os carrascos foram outros.

Márcio/MG

André Setaro disse...

Texto necessário para dar ao cineasta Anselmo Duarte o seu devido lugar de honra na História do Cinema Brasileiro. Maltratado e criticado quando ganhou a Palma de Ouro, Duarte sofreu restrições de toda espécie, chegando a ter 'Veredas da salvação' impedido de ir a Berlim pela chamada 'inteligentzia' do cinema brasileiro. Na sua bigrafia, publicada pela Aplauso, porém, escrita por Luis Carlos Merten, e ditada pelo próprio realizador, o responsável pela recusa de 'Veredas da salvação' foi Ely Azeredo, que não fazia parte das hostes cinemanovistas.

Também, como você, não sou contra o Cinema Novo. Considero alguns de seus filmes obras-primas do cinema brasileiro, a exemplo de 'Deus e do diabo na terra do sol', 'Terra em transe', ambos de Glauber Rocha, 'Os fuzis', de Ruy Guerra. Mas tenho certas restrições, inclusive a certos filmes cujas "alegorias ideológicas e obscuras" de nada acrescentam a arte do filme, a exemplo dos mastodantes 'A idade da terra', 'O leão de sete cabeças', entre outras 'glauberidades'.

Adilson Marcelino disse...

Andrea, querida
Estava com saudades...
Bjs

Eduardo Aguilar disse...

Texto brilhante e necessário!

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Márcio. Lembro que da primeira vez em que vi "O Caso dos Irmãos Naves" fiquei impactada pela trama e pela atuação de todos. Passado o tempo, com o distanciamento crítico necessário, alguns filmes vez por outra acabando servindo de metáfora para o cinema em si. Este é um exemplo de filme que reflete muito da covardia humana, dentro e fora das telas.

Obrigada, Setaro. Anselmo ainda é um personagem polêmico, apesar de soterrado pelas hostes que conhecemos tão bem. Não se pode supor que ele tenha sido santo, mas tb não foi o erro em pessoa. Acredito que o mesmo vale para o Cinema Novo, que precisa ser reavaliado aos poucos sem a mitificação que sempre carrega.

Adilson querido: baby, I'm back. Bjs

Obrigada, Edu!

Matheus Trunk disse...

Belíssimo texto Andrea, escrito com o talento de sempre. A homenagem da Zingu ao Anselmo ficou bem legal. O livro "Adeus Cinema" escrito pelo Oséas Singh Júnior é genial e merece ser lido pra quem quer conhecer mais sobre a vida e a obra deste grande nome da nossa cinematografia.

Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com

Sergio Andrade disse...

Disse tudo, Andrea!

Andrea Ormond disse...

Matheus, a Zingu está cada vez melhor, estão todos de parabéns. Seu blog tb está ótimo, recomendo ele a todo mundo. Adoro entrevistas, vc sabe, e essa com o Antonio Marcos Soldera ficou ótima :)

Obrigada, Sergio!

Valter Noronha disse...

Andrea, vou mostrar seu texto para os estudantes de cinema da minha faculdade, muitos deles alimentados pela "intelligentsia" acadêmica e que ficam venerando Glauber como se fosse um Deus. Acho que hoje está mudando um pouco isso, mas fora das universidades e principalmente, na internet. Nas faculdades ainda impera a mesma história de que tal grupo somente deve ser estudado. Cheguei a ler um artigo do Ismael Xavier carregado de preconceitos que me desanimou profundamente. Acho que o caminho do cinema se distancia cada vez mais das faculdades, que basicamente ensinam em como tirar dinheiro do governo pra fazer filmes. Personagens como Anselmo, se ganhassem a Palma de Ouro hoje nas condições em que ele realizou (sem An cine ou fomento)seria marginalizado do mesmo jeito. Uma triste realidade, infelizmente!

Alfredo Sternheim disse...

Bárbaro o teu texto sobre o Anselmo (e também sobre o documentário Borbobletas e Devassas).
Realmente, o Anselmo foi uma das grandes vitimas da guerra midiática criada pelos cinemanovistas e
(posteriormente, muitos deles) filhos da Embra. E você soube muto bem colocar essa situação, deu a justa revelevância à Anselmo, assimo como você foi brilhante no documentário e, agora , no texto sobre o filme.
Quanto a Anselmo, ele também colaborou para seu isolamento.
Sempre respeitei e admirei Anselmo, gostava de ouví-lo contar suas histórias, frequentei a sua residência. Porem, ele tinha um temperamento dificil e em dado momento de sua vida, cismou comigo, dizendo que eu tinha escrito no Estadão uma crítica contra O Pagador de Promessas. E me desqualificava publicamente em TV, etc. Por duas vezes, lhe expliquei que nunca tinha escrito uma linha a favor ou contra O Pagador e que no documentário A Batalha dos Sete Anos até louvo a vitória em Cannes com música grandiosa de Schumann. Quem escreveu no Estadão em 1962 foi o falecido Fernando Seplinski que assinava FS. Eu assinava AS. Na terceira ocasião que ele provocou num jantar, perdi a calma e ai
a briga ficou feia. Mas em 2004 conversamos bastante como se nada tivesse acontecido. E em maio de 2009, no aniversário de 80 anos do John Herbert, ele foi amável, mas já estava bem debilitado.
Como você disse, "calhou de Anselmo Duarte ser a vítima de tantas esperanças, cercado de derrota por todos os lados." O dia da vitória do Pagador foi inesquecível, um clima legitimo de esperança e orgulho na Boca.

Luiz com Z disse...

Andréa, a atuação dele em "O Caso dos Irmãos Naves" foi um alívio pra mim. Quando vi, bateu aquela lufada de esperança, encarando a prova irrefutável de que, por mais que te forcem a ser um galã canastrão, com competência e talento e força de vontade tudo pode ser revertido. Ou invertido. E o galã mais engomado pode se converter no maior dos personagens pervertidos.

Tive a oportunidade de ovacionar Anselmo de pé em agosto de 2008, no cinema do Shopping Villa Lobos, numa salva de palmas histórica comandada pelo Mojica, na pré de "Encarnação do Demônio". A truculência dos seguranças me impediu de registrar o momento com a minha câmera. Mas a obra do Anselmo, já transferida pra trocentos tipos de mídia, nenhum segurança cinemanovista consegue mais apagar.

José Rodolfo disse...

Valter Noronha,

Assisti ao seu documentário. Parabéns pelo trabalho.
Queria saber a que artigo do Ismael Xavier você se referiu, e se está disponível na internet.

Obrigado,
José Rodolfo Chufan

Andrea Ormond disse...

Valter, enquanto só "existir" o Glauber, Deus-pai-todo-poderoso, num elogio cego e cheio de rancor sobre tudo o que seja diferente, a situação não vai mudar. Pena e tiro no pé, porque é assim que se perdem parcelas substanciosas da produção nacional. Só com um discurso libertário as engrenagem vão se movendo, mudando de lugar.

Alfredo, comentário devidamente respondido no post de cima. Um beijo.

Luiz, quem nos dera fosse assim. O fato é que o acesso a maioria dos filmes do Anselmo continua a ser raríssimo. Os seguranças cinemanovistas estão fazendo um bom trabalho rsrs

José Rodolfo, tb gostaria de conferir in loco o artigo.

Anônimo disse...

Vou nem contar para ninguém que aqui:

http://cinemacultura.com/?p=9742

há um torrent ativo (20-jan-2014) para Vereda da Salvação que estou a baixar. Parece-me que o rip foi feito a partir da tv , logo não me responsabilizo pela qualidade do áudio e vídeo.
Não obstante por tratar-se de uma raride , o que vier é lucro.

xiiii ,contei!!!
Boa diversão.

ps.: por favor confirmar a informação que o filme QUELÉ DO PAJEÚ , está de fato perdido.
Nâo sobreviveu nenhuma cópia ?