O Brasil, este país esquisito, que maltrata seus gênios e aplaude seus algozes, nunca compreendeu Nelson Rodrigues.
Dizer nunca inclui as últimas décadas em que Nelson vem desfrutando de uma unanimidade insuportável, revisto até em peças de teatro infantil e citado por patricinhas e mauricinhos no Orkut. Assim como Nietzsche, um polemista da sua estirpe, um escritor da sua qualidade, não merece tamanha cooptação. Gênios são feitos para incomodarem. "Domesticar" Nelson, trazê-lo para a sala de visitas, foi somente tratar sua obra pelas bordas superficiais, e, em última instância, uma nova forma de ignorá-lo.
Logo, existem dois Nelsons: o real, que viveu entre 1912 e 1980, condicionado pelas piores tragédias, sentado na máquina de escrever dissecando a miséria da alma humana com uma criatividade quase demente; e outro, inventado depois de morto, que virou quadro no Fantástico, ou vendido em meio a livros de auto-ajuda que certamente lhe causariam urticárias.
Nos anos 1960 e 70, quando a crítica não atingira o estágio tatibitati mercenário de hoje, muita gente já apontava que os subprodutos rodrigueanos -- os filmes principalmente -- padeciam desta incapacidade de emulá-lo com a mesma ferocidade do original. Claro, não sabiam a que ponto a diluição chegaria, pois gente como Braz Chediak, Arnaldo Jabor e Neville de Almeida compreendiam o autor perfeitamente bem. E se não conseguiam atingi-lo era porque trata-se de um osso duro de roer, uma armadilha para aqueles que, com a melhor das intenções, busquem uma transposição criativa do universo literário para o cinematográfico.
Tão filmado quanto entrevistado nos anos 70, a verdade é que Nelson abençoou quase todas as adaptações que recebeu em vida. Em uma conjunção de fatores, o cinema setentista foi a cara de suas obsessões. Assim, Jabor fez uma obra-prima com "Toda Nudez Será Castigada" (1973) e um grande espetáculo em "O Casamento" (1975). Conta a lenda que o jovem diretor, após o sucesso de "Toda Nudez", recebia do ídolo olhares de sincera admiração, que muito lhe preenchiam o ego. Podemos dizer, no entanto, que "O Casamento" nos cinemas nem chega aos pés do romance de 1966, banido em todo o território nacional pelo governo militar -- e uma das melhores coisas já escritas na língua portuguesa em todos os tempos.
Braz Chediak, vindo das adaptações de Plínio Marcos, se atracaria a Nelson percebendo ali um tesouro inesgotável, porém obtendo resultados desiguais. Em "Bonitinha Mas Ordinária" (1981), a famigerada, politicamente incorreta (e divertidíssima) cena do estupro da personagem de Lucélia Santos, eclipsa um dos melhores olhares às farsas rodrigueanas. "Perdoa-me por me traíres" (1983), alucinação de Nelson sobre as adúlteras da sua infância, também satisfaz. Já "Album de Família" (1981) peca por extrair de uma peça monocórdia tom igualmente desinteressante.
No mesmo período que Chediak, Neville de Almeida criava alegorias consistentes sobre um texto de "A Vida Como Ela É" -- "A Dama do Lotação" (1978) -- e uma das melhores peças rodrigueanas -- "Os Sete Gatinhos" (1980). Campeões absolutos de bilheteria, devorados pelo público no período áureo do cinema popular brasileiro -- e injustamente, hoje, revistos como pornochanchadas -- os filmes de Neville devem ter enchido Nelson de orgulho, pois são ferozes, satíricos e abjetos, diálogo alucinado entre dois artistas nobres.
Inferiores são "Beijo No Asfalto" -- de Bruno Barreto -- e "Engraçadinha" -- de Haroldo Marinho Barbosa -- ambos de 1981. Iniciou-se, então, um crescente ostracismo a Nelson, que acabaria ressucitado pela biografia de Ruy Castro, em 1992, e pelo consequente relançamento de sua obra pela Companhia das Letras.
Infelizmente as produções oriundas deste fenômeno, a partir dos anos 90 -- com exceção de "Vestido de Noiva" (2006) -- dirigido por seu filho, Joffre Rodrigues -- alcançaram estágios inacreditáveis de ruindade. São parte infeliz do referido massacre vulgarizante contemporâneo, a que gênios -- vivos ou mortos -- estão submetidos por suas próprias qualidades.
É bom lembrarmos que Nelson foi também razoavelmente adaptado para o cinema nos anos 60, mas a censura e o moralismo engessaram grande parte das tentativas. "Boca de Ouro" (1962), de Nelson Pereira dos Santos e a primeira versão de "Bonitinha Mas Ordinária"(1963), trouxeram Jece Valadão -- casado com a irmã de Nelson, Dulce -- em grande forma. "A Falecida" (1966) -- de Leon Hirszman -- apesar da interpretação de Fernanda Montenegro, padeceu do fato de que o diretor e seus cacoetes cinemanovistas se levaram mais a sério que o autor.
Recomendo a quem deseje "assistir" a Nelson na tela grande, que se prenda à trilogia de realizadores -- Jabor, Chediak, Neville -- pois deram sorte de lidarem com material rodrigueano na época mais propícia ao seu reconhecimento. Hoje, em um mundo onde estetas de sentido complexo -- Clarice Lispector, Adélia Prado -- renascem entre agendas púberes, o verdadeiro e essencial Nelson Rodrigues fica cada vez mais démodé. Tanto quanto o belo, possesso e imperfeito cinema que motivou um dia.
Dizer nunca inclui as últimas décadas em que Nelson vem desfrutando de uma unanimidade insuportável, revisto até em peças de teatro infantil e citado por patricinhas e mauricinhos no Orkut. Assim como Nietzsche, um polemista da sua estirpe, um escritor da sua qualidade, não merece tamanha cooptação. Gênios são feitos para incomodarem. "Domesticar" Nelson, trazê-lo para a sala de visitas, foi somente tratar sua obra pelas bordas superficiais, e, em última instância, uma nova forma de ignorá-lo.
Logo, existem dois Nelsons: o real, que viveu entre 1912 e 1980, condicionado pelas piores tragédias, sentado na máquina de escrever dissecando a miséria da alma humana com uma criatividade quase demente; e outro, inventado depois de morto, que virou quadro no Fantástico, ou vendido em meio a livros de auto-ajuda que certamente lhe causariam urticárias.
Nos anos 1960 e 70, quando a crítica não atingira o estágio tatibitati mercenário de hoje, muita gente já apontava que os subprodutos rodrigueanos -- os filmes principalmente -- padeciam desta incapacidade de emulá-lo com a mesma ferocidade do original. Claro, não sabiam a que ponto a diluição chegaria, pois gente como Braz Chediak, Arnaldo Jabor e Neville de Almeida compreendiam o autor perfeitamente bem. E se não conseguiam atingi-lo era porque trata-se de um osso duro de roer, uma armadilha para aqueles que, com a melhor das intenções, busquem uma transposição criativa do universo literário para o cinematográfico.
Tão filmado quanto entrevistado nos anos 70, a verdade é que Nelson abençoou quase todas as adaptações que recebeu em vida. Em uma conjunção de fatores, o cinema setentista foi a cara de suas obsessões. Assim, Jabor fez uma obra-prima com "Toda Nudez Será Castigada" (1973) e um grande espetáculo em "O Casamento" (1975). Conta a lenda que o jovem diretor, após o sucesso de "Toda Nudez", recebia do ídolo olhares de sincera admiração, que muito lhe preenchiam o ego. Podemos dizer, no entanto, que "O Casamento" nos cinemas nem chega aos pés do romance de 1966, banido em todo o território nacional pelo governo militar -- e uma das melhores coisas já escritas na língua portuguesa em todos os tempos.
Braz Chediak, vindo das adaptações de Plínio Marcos, se atracaria a Nelson percebendo ali um tesouro inesgotável, porém obtendo resultados desiguais. Em "Bonitinha Mas Ordinária" (1981), a famigerada, politicamente incorreta (e divertidíssima) cena do estupro da personagem de Lucélia Santos, eclipsa um dos melhores olhares às farsas rodrigueanas. "Perdoa-me por me traíres" (1983), alucinação de Nelson sobre as adúlteras da sua infância, também satisfaz. Já "Album de Família" (1981) peca por extrair de uma peça monocórdia tom igualmente desinteressante.
No mesmo período que Chediak, Neville de Almeida criava alegorias consistentes sobre um texto de "A Vida Como Ela É" -- "A Dama do Lotação" (1978) -- e uma das melhores peças rodrigueanas -- "Os Sete Gatinhos" (1980). Campeões absolutos de bilheteria, devorados pelo público no período áureo do cinema popular brasileiro -- e injustamente, hoje, revistos como pornochanchadas -- os filmes de Neville devem ter enchido Nelson de orgulho, pois são ferozes, satíricos e abjetos, diálogo alucinado entre dois artistas nobres.
Inferiores são "Beijo No Asfalto" -- de Bruno Barreto -- e "Engraçadinha" -- de Haroldo Marinho Barbosa -- ambos de 1981. Iniciou-se, então, um crescente ostracismo a Nelson, que acabaria ressucitado pela biografia de Ruy Castro, em 1992, e pelo consequente relançamento de sua obra pela Companhia das Letras.
Infelizmente as produções oriundas deste fenômeno, a partir dos anos 90 -- com exceção de "Vestido de Noiva" (2006) -- dirigido por seu filho, Joffre Rodrigues -- alcançaram estágios inacreditáveis de ruindade. São parte infeliz do referido massacre vulgarizante contemporâneo, a que gênios -- vivos ou mortos -- estão submetidos por suas próprias qualidades.
É bom lembrarmos que Nelson foi também razoavelmente adaptado para o cinema nos anos 60, mas a censura e o moralismo engessaram grande parte das tentativas. "Boca de Ouro" (1962), de Nelson Pereira dos Santos e a primeira versão de "Bonitinha Mas Ordinária"(1963), trouxeram Jece Valadão -- casado com a irmã de Nelson, Dulce -- em grande forma. "A Falecida" (1966) -- de Leon Hirszman -- apesar da interpretação de Fernanda Montenegro, padeceu do fato de que o diretor e seus cacoetes cinemanovistas se levaram mais a sério que o autor.
Recomendo a quem deseje "assistir" a Nelson na tela grande, que se prenda à trilogia de realizadores -- Jabor, Chediak, Neville -- pois deram sorte de lidarem com material rodrigueano na época mais propícia ao seu reconhecimento. Hoje, em um mundo onde estetas de sentido complexo -- Clarice Lispector, Adélia Prado -- renascem entre agendas púberes, o verdadeiro e essencial Nelson Rodrigues fica cada vez mais démodé. Tanto quanto o belo, possesso e imperfeito cinema que motivou um dia.
(in Zingu! #34, agosto de 2009)
*Adendo curioso a esse texto que escrevi pra Zingu! é a lembrança de que, no ano de sua morte -- 1980 -- e pouco antes dela, Nelson viveu uma espécie de ultraexposição parecida com a que tivemos a partir da década de 90. Doente, habitante de um apartamento na praia do Leme, Nelson recebia jovens cineastas como Afrânio Vital, para quem cedeu os direitos de filmar sua primeira peça, "A Mulher Sem Pecado", projeto nunca concluído. Além disso, o diretor Alberto Magno, filho de Jece Valadão e sobrinho de Nelson, filmou entre 1980-82 uma adaptação de "A Serpente", última peça do dramaturgo. Proibido pela censura, o filme nunca foi lançado em circuito comercial.
11 comentários:
Querida Andrea,
Fiquei muito feliz em vê-la na Zingu!, pois ando com saudades de você por aqui.
Para variar, adorei seu artigo sobre o Nelson.
Bjs
Andrea
o que ocorreu pra que a interpretação das obras de Nelson ficasse, digamos, menos pesada? A levaram por qual caminho? Como chegou nisso que temos hj? Pergunto por que já vi oporem ele a becket como se fizesse algum sentido. vc consegue entender isso? Seria uma rejeição ao “dizer” dando vantagem ao não- dizer, como se isso tivesse um valor intrínseco?)
Excelente exegese de Nelson no cinema.
Valeska, são os nossos tempos. Essa tendência a pasteurizar tudo para caber em um gosto "médio" e auto-indulgente. Nada pode chocar, nada pode assustar, nada pode incomodar. Triste.
Nelson nunca foi "médio" ou facilmente palatável, e isso vale para suas virtudes muitas) e seus defeitos (alguns).
Belo texto, para variar, Andréa.
Adilson querido, sempre bom ler vc tb. Falta marcamos sua vinda para Sp e combinar de nos vermos. Beijo e obrigada!
valeska, acho que um mote para entendermos o "fenômeno Nelson" está no vício de diluição que a cultura contemporânea abraçou. Nada se cria de novo, tudo é relido, reciclado -- e de forma cada vez mais simples, estereotipada. Diluída a essência, do sentido da experiência original fica somente uma pálida lembrança. Assim realiza-se uma "imitação de arte", com elementos formais aproveitados sem a força do conteúdo original.
Obrigada, Setaro. O texto foi escrito com esse propósito de colocar luz nos vários Nelsons do cinema.
Fofão, é isso que vc bem ilustrou, essa "pasteurização" traz a adequação simplista de referências culturais "incômodas" ao gosto médio contemporâneo. Em um tempo ridículo de patrulhas e "politicamente correto", e especialmente em um país feito o Brasil, creio que o fenômeno atingiu proporções de psicose coletiva. Se o indivíduo tutelado não pode sequer fumar um cigarro em paz, como vamos ensiná-lo a aproveitar Nelson Rodrigues ou Nietzsche no esplendor de suas fúrias? Como fazer alguém cada vez mais tolhido em sua liberdade individual aceitar a liberdade criativa alheia? Só com o xarope da diluição, ou da mediação idiotizante.
Querido(a) novo(a) amigo(a),estou precisando muito da ajuda de todos os amigos. estou montando uma minibiblioteca comunitária pra crianças e adolescentes na minha comunidade carente aqui no Rio de Janeiro,se voce puder me ajudar estou fazendo uma campanha de doações. pode doar qualquer quantia no Banco do Brasil agencia 3082-1 conta 9.799-3, ou pode doar livros ,ou pode doar máquina de costura, ou pode doar retalhos, ou pode doar computador usado. se quizer fazer aguma doação entre em contato com meu email: asilvareis10@gmail.com ,eu darei o endereço de remessa. se voce não puder me ajudar com doações pode divulgar minha campanha, tenho 2 blogs no google gostaria da sua visita: Eulucinha.blogspot.com ,obrigado pela sua atenção
Descobri seu blog por meio de pesquisas no Google. Li sua crítica sobre 'O Meu Pé de Laranja Lima' e achei sensacional. Agora estou passenaod por todo o site apreciando seus posts e deixo aqui meu singelo pedido. Crie uma conta no twitter (http://twitter.com)! Eu, como sua mais nova leitora, apreciaria acompanhar cada nova postagem e, tenho certeza, o twitter como ferramenta de divulgação e atualização a você e a todos nós que acompanhamos seu blog, seria de imensa ajuda!
Um grande abraço.
Beleza de post sobre o Nelson. Por coincidência, disponibilizei na internet a entrevista histórica do Nelson feita pelo Otto Lara Resende.
Deixo-lhe o link:
http://aroundvenus.blogspot.com/2007/02/tesouros-do-youtube-quando-nelson.html
faltou ''a falecida''...primeiro longa de leon hirszman...escrito por nelson
Ela citou ''A Falecida''.
Mais uma jóa-textual sobre a arte maior de Nelson Rodrigues.Parabéns por escrever tão bem.
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