Para Adilson Marcelino
Qual chave interpretativa abre portas em “As Filhas do Fogo” (1978), décimo sétimo filme de Walter Hugo Khouri? A resposta é múltipla, chega ao ponto de unir cinema fantástico, homossexualidade feminina, élan gótico, maternança, animismo e solidão.
Aqui são retomados os elementos sombrios de “Anjo da Noite” (1974) – um dos marcos da cinematografia de horror do país –, fusionando-os de maneira ainda mais intensa com os espaços amplos, com os sets ao ar livre. Sem fazer qualquer referência ao local onde a história se passa, “As Filhas do Fogo” utiliza a ambientação de Gramado e Canela, cidades do Rio Grande do Sul, para emular aquela espécie de sentido universal, anti-provinciano, que o diretor tanto apreciava.
Referências germânicas são explícitas nas falas das personagens – seja o avô alemão da protagonista; o pai, aficcionado pela 1a. Guerra; os nomes dos empregados, que refletem a colonização européia.
Tendo por mote esta vereda gelada – chega a nevar -- pseudo-estrangeira, quase solene, foi que Khouri mergulhou pelos caminhos da parapsicologia. O assunto esteve bastante em moda naquele final dos anos 70, pouco antes da onda do “Rá!” de Baby Consuelo no “Rock in Rio”, de Thomas Green Morton entortando utensílios de cozinha e dos programas de televisão sobre ectoplamas e materializações de espíritos.
Diana (Paola Morra), órfã de mãe (Sílvia, Selma Egrei), abandonada pelo pai, volta depois de muitos anos à propriedade de campo da família.
Espera pela namorada – sim, queridos, Khouri não era engagée de causa alguma, mas colocou a temática GLS no centro de vários roteiros. Ana (Rosina Malbouisson) finalmente chega, e vão se embrenhando pelas paragens.
A governanta, Mariana (Maria Rosa), tem um quê de finesse que se contrapõe à figura do viajante (Serafim Gonzalez) – arquétipo do livre, pedinte pelas estradas, sem dinheiro, faminto, mas digno – que bate à porta da mansão.
Após belíssimo duelo verbal com Diana, o andarilho teria destino idêntico ao da Ofélia de Shakespeare. Num lago, coberto de flores. Alijado da condução do caos, padecendo com o jogo sádico da menina, o estilo khouriano de encantamento e predileção pelo feminino deixa traço indelével. Por sinal, o pai de Diana não aparece. Sabe-se que existe. Visualmente, apenas as mãos; essencialmente, apenas a pequenez – “é um vagabundo!” – diante da imagem idealizada de mãe.
Em outra ponta da história, o tête-à-tête entre moçoilas também dá o ar das graças na antiga relação entre Sílvia e a vizinha, Dagmar (Karim Rodrigues) – estudiosa de registros de vozes de pessoas falecidas, captados em fitas cassete.
A construção deste espelhamento entre mãe e filha – cada uma com seu par, cada uma em um plano metafísico: mãe morta, filha viva – chegará além do suportável para Diana.
Não à toa, no clímax, após finalmente enxergar a mãe, trajada com a mesma roupa de quando ainda estava grávida da menina, o surto se instala. O fantástico impera como solução, quem sabe, para uma explicação freudiana.
Encalacrada numa casa espectral, com o vestido costurado por uma morta – a tia de Dagmar (personagem de Maria Hussemann, esposa de Serafim Gonzalez) –, as heras impedindo que saia, a redenção parece inexistir para a garota. O útero a aprisiona, como a casa primeira que ela sempre quis habitar mas nunca pôde de fato: afinal, Sílvia morrera há tantos e tantos anos.
“As Filhas do Fogo” discrepa, portanto, de simplificações sobre o “fenômeno da paranormalidade”. Trabalha com alternâncias de espaço/tempo e referências icônicas – caduceus, chás, objetos de arqueologia, vodu –, nisto ressaltando inclusive uma filosofia animista, como dissemos acima.
Citem-se os furos no tronco de uma árvore, feitos por tiros de revólver, que sangram seiva vermelha. Do objeto inanimado surge tensão dramática; parecem olhos que observam a dupla Diana-Ana. Nomes que, aliás, remetem a uma eufonia que se completa com o de Mariana, trazendo esta sombra claustrofóbica que permeia o filme.
A dublagem de Paola Morra e Rosina Malbouisson deve ser relevada, mesmo porque é no silêncio que surge a maior interpretação destes quase 100 minutos. Selma Egrei, dizendo sequer palavra, aura de ente desencarnado, olhar de brutalidade sensível, rouba todas as cenas e deixa o aviso aos espectadores de que sua beleza assombrosa guarda talento.
Interessante notarmos que a fotografia – Geraldo Gabriel – e a produção – César Memolo, o mesmo de “Ato de Violência” (1980), de Eduardo Escorel – foram algo anômalas em “As Filhas do Fogo”. WHK não havia trabalhado e nem voltaria a trabalhar com esses profissionais. Entretanto, Rogério Duprat mais uma vez firme e forte na trilha musical, e o conhecido tripé argumento-roteiro-direção a cargo de Khouri.
Não é exagero dizermos que em uma filmografia tão notável, este, que tinha tudo para dar errado, é um dos cinco melhores trabalhos do diretor. Sem qualquer concessão a “brasilidades” e ao erotismo comercial, temos uma obra-prima com ecos de Edgar Alan Poe e E. T. A. Hoffmann – assinada pelo gênio de tantos estilos e formas.
Aqui são retomados os elementos sombrios de “Anjo da Noite” (1974) – um dos marcos da cinematografia de horror do país –, fusionando-os de maneira ainda mais intensa com os espaços amplos, com os sets ao ar livre. Sem fazer qualquer referência ao local onde a história se passa, “As Filhas do Fogo” utiliza a ambientação de Gramado e Canela, cidades do Rio Grande do Sul, para emular aquela espécie de sentido universal, anti-provinciano, que o diretor tanto apreciava.
Referências germânicas são explícitas nas falas das personagens – seja o avô alemão da protagonista; o pai, aficcionado pela 1a. Guerra; os nomes dos empregados, que refletem a colonização européia.
Tendo por mote esta vereda gelada – chega a nevar -- pseudo-estrangeira, quase solene, foi que Khouri mergulhou pelos caminhos da parapsicologia. O assunto esteve bastante em moda naquele final dos anos 70, pouco antes da onda do “Rá!” de Baby Consuelo no “Rock in Rio”, de Thomas Green Morton entortando utensílios de cozinha e dos programas de televisão sobre ectoplamas e materializações de espíritos.
Diana (Paola Morra), órfã de mãe (Sílvia, Selma Egrei), abandonada pelo pai, volta depois de muitos anos à propriedade de campo da família.
Espera pela namorada – sim, queridos, Khouri não era engagée de causa alguma, mas colocou a temática GLS no centro de vários roteiros. Ana (Rosina Malbouisson) finalmente chega, e vão se embrenhando pelas paragens.
A governanta, Mariana (Maria Rosa), tem um quê de finesse que se contrapõe à figura do viajante (Serafim Gonzalez) – arquétipo do livre, pedinte pelas estradas, sem dinheiro, faminto, mas digno – que bate à porta da mansão.
Após belíssimo duelo verbal com Diana, o andarilho teria destino idêntico ao da Ofélia de Shakespeare. Num lago, coberto de flores. Alijado da condução do caos, padecendo com o jogo sádico da menina, o estilo khouriano de encantamento e predileção pelo feminino deixa traço indelével. Por sinal, o pai de Diana não aparece. Sabe-se que existe. Visualmente, apenas as mãos; essencialmente, apenas a pequenez – “é um vagabundo!” – diante da imagem idealizada de mãe.
Em outra ponta da história, o tête-à-tête entre moçoilas também dá o ar das graças na antiga relação entre Sílvia e a vizinha, Dagmar (Karim Rodrigues) – estudiosa de registros de vozes de pessoas falecidas, captados em fitas cassete.
A construção deste espelhamento entre mãe e filha – cada uma com seu par, cada uma em um plano metafísico: mãe morta, filha viva – chegará além do suportável para Diana.
Não à toa, no clímax, após finalmente enxergar a mãe, trajada com a mesma roupa de quando ainda estava grávida da menina, o surto se instala. O fantástico impera como solução, quem sabe, para uma explicação freudiana.
Encalacrada numa casa espectral, com o vestido costurado por uma morta – a tia de Dagmar (personagem de Maria Hussemann, esposa de Serafim Gonzalez) –, as heras impedindo que saia, a redenção parece inexistir para a garota. O útero a aprisiona, como a casa primeira que ela sempre quis habitar mas nunca pôde de fato: afinal, Sílvia morrera há tantos e tantos anos.
“As Filhas do Fogo” discrepa, portanto, de simplificações sobre o “fenômeno da paranormalidade”. Trabalha com alternâncias de espaço/tempo e referências icônicas – caduceus, chás, objetos de arqueologia, vodu –, nisto ressaltando inclusive uma filosofia animista, como dissemos acima.
Citem-se os furos no tronco de uma árvore, feitos por tiros de revólver, que sangram seiva vermelha. Do objeto inanimado surge tensão dramática; parecem olhos que observam a dupla Diana-Ana. Nomes que, aliás, remetem a uma eufonia que se completa com o de Mariana, trazendo esta sombra claustrofóbica que permeia o filme.
A dublagem de Paola Morra e Rosina Malbouisson deve ser relevada, mesmo porque é no silêncio que surge a maior interpretação destes quase 100 minutos. Selma Egrei, dizendo sequer palavra, aura de ente desencarnado, olhar de brutalidade sensível, rouba todas as cenas e deixa o aviso aos espectadores de que sua beleza assombrosa guarda talento.
Interessante notarmos que a fotografia – Geraldo Gabriel – e a produção – César Memolo, o mesmo de “Ato de Violência” (1980), de Eduardo Escorel – foram algo anômalas em “As Filhas do Fogo”. WHK não havia trabalhado e nem voltaria a trabalhar com esses profissionais. Entretanto, Rogério Duprat mais uma vez firme e forte na trilha musical, e o conhecido tripé argumento-roteiro-direção a cargo de Khouri.
Não é exagero dizermos que em uma filmografia tão notável, este, que tinha tudo para dar errado, é um dos cinco melhores trabalhos do diretor. Sem qualquer concessão a “brasilidades” e ao erotismo comercial, temos uma obra-prima com ecos de Edgar Alan Poe e E. T. A. Hoffmann – assinada pelo gênio de tantos estilos e formas.
9 comentários:
Querida Andrea,
Muito obrigado por me dedicar essa bela análise desse ótimo filme do nosso amado Khouri.
Senti-me lisonjeado.
Bjs
Os filmes do Khouri são difíceis de achar. Além do mais, o Canal Brasil não tem exibido com frequência seus filmes. O jeito é aguardar lançamentos na linha da caixa com Noite Vazia, Corpo Ardente e outro.
Valeu o elogio à Selma Egrei, grande atriz que não foi reconhecida devidamente.
Merecidíssimo, Adilson. "As Filhas do Fogo" tem um quê seu, liga-se muito com seu belo trabalho no "Mulheres do cinema brasileiro". Beijo grande
Daniel P, as caixas com os filmes do Khouri é um dos projetos mais necessários ao cinema brasileiro. Torço profundamente para que não pare na primeira, já lançada. Egrei no "As Filhas do Fogo" é algo hipnótico.
Andrea, como você conseguiu uma cópia desse filme?
Ailton, um amigo meu gravou da Tv Bandeirantes nos anos 90 e me conseguiu a cópia.
Oi,
coisa incrível...assisti este filme há uns 10 anos atrás, adorei! comentei com muitas pessoas, ninguém conhecia; neste finde, falando com algumas amigas, falei dele, de novo...desconhecido, então resolvi apelar para o "Dr. Google", e para meu encantamento encontrei tua belíssima análise . Parabéns, lerei teus outros textos,
Um beijo!
http://wagnerebeethoven.wordpress.com/2008/09/29/die-walkure/
Maria Rosa era belíssima nos anos setenta e foi uma das mais lindas beldades famosas do Brasil naquela época.
Boa noite, Andrea.
Seria possível alguma maneira de eu adquirir com você uma cópia desta exibição do filme gravado da Band? Aguardo. Obrigado
https://youtu.be/o-BYQ2z9lTU
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