terça-feira, setembro 18, 2007

Padre Pedro e a Revolta das Crianças


Sem exagero algum, a morte de Pedro de Lara parece significar o encerramento de alguma coisa na vida das pessoas -- como eu -- que foram crianças nos anos 80 e adolescentes na década de 90.

Quem foi ao seu concorridíssimo velório na Câmara Municipal do Rio afirma que, mesmo morto, guardou a indefectível expressão carrancuda e divertida de sempre, emoldurada pelos cafonas lírios brancos. Vivo, quem o notasse pela cidade, carregando volumes de Freud e Schopenhauer, talvez se surpreendesse ao descobrir que era leitor voraz de qualquer coisa que lhe caísse às mãos. Indagado certa vez porque lia Freud, Pedro respondeu que era para entender a psicologia do povo.

Pernambucano, muito visto na Guanabara, Pedro de Lara foi na verdade um ídolo paulistano -- ou melhor dizendo, exportado a partir de São Paulo para o resto do Brasil. Apesar da fama no cinema e na Rádio Tupi carioca -- onde falava de astrologia e sonhos -- a partir do final dos anos 70 até final dos 90 ajudou a construir a TVS, depois SBT -- como jurado no Show de Calouros e personagem no Programa do Bozo -- lembrado e adorado pela criançada de todo o país.

Para entendermos Pedro, portanto, é preciso entender o que significou o SBT como veículo de comunicação de massa. Em uma nação dominada pela estética global -- limpinha, da Zona Sul carioca -- a tv de Silvio Santos -- ex-camelô na Av. Rio Branco, exilado voluntariamente em São Paulo -- comeu a audiência popular pelas beiradas, tornando-se uma pedra no sapato da maior emissora do país, a partir dos anos 80.

Intuitivo, Silvio usava de recursos simples: consciente de que a Globo era resistente a mudanças, contratou um time de personalidades que nunca teriam vez na líder. Por outro lado, exibia sem vergonha filmes B -- "A Gangue dos Dobermans", "O Último Americano Virgem", "Alligator ". E a chave de ouro: aprimorou ao longo dos anos um padrão informativo sensacionalista, com fortes influências radiofônicas, que culminaria no distoante "Aqui, Agora" -- assistido por dez entre dez pessoas que estivessem com a tv ligada entre 1991/94, fase áurea do programa.

Esta pequena revolução na tv brasileira chamada SBT foi também responsável por outro fenômeno típico dos anos 80/90: a paulistização do gosto médio brasileiro, antes dominado pela órbita de influência do Rio de Janeiro. Ainda que o peso cultural da ex-capital do país venha se desgastando por razões diversas, um marco significativo dessa expropriação esteve nas próprias crianças cariocas assistindo ao "Bozo", "Aqui, Agora", e repetindo felizes da vida os modismos que seus pais detestavam. O mérito do SBT foi justamente compreender a identificação cultural do Brasil profundo com São Paulo, e apostar todas as fichas criativas nisto.

Pedro de Lara, o mito, é fruto desse ethos neo-bandeirante-popularesco: pontificando no "Show de Calouros" -- filé-mignon do domingueiro "Programa Sílvio Santos" --, encarnava uma espécie de clown moralista e ultrapassado, anti-herói de uma emisssora gauche por excelência. Muitos lembram-se dele em parceria com a também anti-heroína Aracy de Almeida -- sambista, amiga e intérprete de Noel Rosa, que com seu tipo peculiar arranjava nos júris paulistanos uma fama que o Rio, terra natal, lhe negava há décadas.

No auge da popularidade e associado ao júri de Silvio, foi que Pedro estreou o absurdo "Padre Pedro e a Revolta das Crianças" (1984), tentativa de aproveitar sua enorme "empatia" junto ao público infantil. Como normalmente acontece ao cinema brasileiro, os produtores atiraram em passarinho e acertaram em mariposa: duas décadas depois, o filme dá medo nas (ex) crianças; e deixa chapados os adultos, fãs de cinema tosco, não-convencional.

Ambientado na fictícia Serinhaém, bem poderia chamar-se "Pedro de Lara Contra Zé do Caixão". De fato, traz José Mojica Marins vestido como Zé, interpretando um tal de Rodrigo Napu, personagem muito semelhante àquele que o consagrou: o elemento terrorista nietzscheano, que domina uma cidade com autoridade invisível e anti-cristã. Quando Padre Pedro (Pedro de Lara, nessa época a cara do cantor Zé Ramalho) chega ao lugarejo, as forças do bem e do mal digladiam, em uma mistura de denúncia social e crônica de costumes interiorana.

Dirigido por Francisco Cavalcanti -- que anos depois viraria cover de Charles Bronson, no obrigatório "Horas Fatais" -- ainda conta com participação especial do apresentador Gugu Liberato, travando diálogo absolutamente ridículo, quando Padre Pedro o convence a tornar-se celibatário. E com a presença de Wilza Carla, no eterno papel de Wilza Carla que o cinema brasileiro lhe destinou.

Apesar do show kitsch e da interpretação "naturalista", o melhor do Pedro de Lara cinematográfico já ficara eternizado em lugar melhor, nas clássicas comédias setentistas de Carlo Mossy. Rebelde, durante as filmagens Pedro fazia o que queria, incluindo-se aí plantar bananeira e correr para trás, improvisos encaixados nos créditos de "Quando as Mulheres Querem Provas" (1975).

"Padre Pedro e a Revolta das Crianças" teve o mérito de conceder ao gênio um papel de protagonista, que teria rendido cem vezes melhor em escrachada comédia. Afinal, Pedro Ferreira dos Santos, o Pedro de Lara, foi também uma figura tropicalista-pornochanchadeira por excelência. Legítimo orgulho nacional, a ser saudado como mestre, hosana no imaginário do povo brasileiro.

14 comentários:

Anônimo disse...

Linda e sincera homenagem Andréa, emocionante. Parabéns. Um super beijo.

Anônimo disse...

Excelente texto, excelente interpretação sobre o SBT dos anos 80! Muito bom!

Anônimo disse...

Prezada Andréa, venho acompanhando os artigos na "retomada" (para usar um termo afim do nosso cinema) do seu site, mas não tenho comentado porque a maioria eu não vi.

O que seria essa "estética bandeirante popularesca? Sinceramente, não entendi, por favor, elabore mais.
Adorei "Padre Pedro" pelo tom otimista/ingênuo/despretensioso, algo inimaginável nos nossos cínicos tempos "renancalheirescos". E pela presença carismática do insubstituível Pedro de Lara - um gênio.

fernando c roveri (muzzleman) disse...

Mas que homenagem incrível, Andréa. Esse texto é, sem dúvida, o MELHOR já escrito sobre este grande artista. Quando criança, também adorava Pedro de Lara. Acho que 95% das crianças o adoravam, uma vez ele veio ao meu bairro e não conseguia ir embora tamanha era a comoção. Ele me deu um bonequinho autografado dele, mas roubaram-me tal preciosidade. Parabéns MESMO por esse texto in-crí-vel. Beijo grande.

Andrea Ormond disse...

Marcelo, querido, obrigada :)

d gl ^ (será assim? rs), obrigada :)

Jorge, na verdade eu comentava sobre o ethos, não necessariamente a estética. No caso, o ethos se refere ao que introjetamos da indústria televisiva de SP da época. O símbolo máximo sendo a TVS, com programas como o Show de Calouros e outros citados no texto. Pedro de Lara era um clown maravilhoso mesmo, muito pouco provável de ser substituído.

Fernando, fica a homenagem e a releitura sobre tantos aspectos em torno da figura do Pedro de Lara. Ele já entrou pra galeria dos artistas brasileiros mais queridos, e vc sem esse bonequinho autografado. Quem seria capaz de uma imoralidade dessas? rs Beijos

Unknown disse...

Excelente texto, como de costume. Também sou fã do Pedro de Lara desde criancinha. Uma vez ele foi ao finado programa de rádio do meu ex-chefe e amigo Paulão, o "Garagem"; foram duas horas divertidíssimas _a maioria está tão acostumada a vê-lo na TV que não sabia que ele mandava muitíssimo bem no rádio.

Anônimo disse...

Infelizmente, quando Pedro de Lara morreu, pareceu que somente eu -entre alguns amigos e familiares, tinha sentido o peso da perda dele. Como vc mesmo disse, a morte de Pedro deu-se no fim de uma era, talvez esse sendo, por efeito, notório sinal que tal época (negada, subestimada, e esquecida pelo brasileiro - a Boca do Lixo) acabou-se não só virtualmente, mas materialmente. PS: assista "As aventuras de Sérgio Mallandro", pois vale a pena relembrar tal "fase de ouro" de nosso cinema e de personagens memoráveis, como Pedro de Lara, Mallandro e cia. Divertidíssimo. Vale a pena.
Abraços.

Flávio Tonnetti disse...

Muito bom o texto. Emocionante mesmo. Cheguei via blog "onde Andará Dulce Veiga" e fiquei fascinado pela sua ótica. Obrigado.

F. Tonnetti
www.ensino.blog.br
Em discussão: o caso UNIP-João Victor

Alexandre Lancaster disse...

Agora me toquei: você ainda não resenhou "horas fatais" no seu blog.

Unknown disse...

Você tem ou conhece quem tem esse filme ???

meus tios eram cranças na época e participaram do filme, foi gravado do lado do sítio do meu avô aqui em atibaia , e quero recuperam esse filme ....

por favorrrrrrrr

bjuxxxx

meu e-mail : andressa@campingriomanso.com.br

Sr. sereno disse...

legal.. o Padre Pedro foi gravado na minha cidade

hectorlima disse...

poxa, Andrea, eu "caio" no Estranho Encontro quase sempre que vejo um filme brasileiro dos anos 60, 70 ou 80.

seja porque estava procurando um cartaz do filme ou porque suas resenhas aparecem logo no topo dos resultados do Google. outras vezes entro direto aqui procurando ver seus comentários.

aconteceu agora de estar vendo uma cópia ótima deste filme no Canal Brasil e o blog aparecer de cara no google quando fiz uma busca.

e o que seria uma resenha do filme [nunca simples, porque seus insights são ótimos], acabou virando um tratado sobre o papel da TVS/SBT na formação da cultura brasileira. algo que pessoalmente sempre senti mas nunca vi muito comentado por aí.

sensacional. parabéns e obrigado.

[]s

Hector Lima
http://hectorlima.com

Anônimo disse...

Um dos mais importantes artistas populares do Brasil.

Anônimo disse...

Grande artista.