Cláudio Assis -- ao lado de Beto Brant, Karim Ainouz e alguns poucos outros em atividade, que se contam nos dedos -- não faz cinema para fracos. O aparente compromisso autoral que mantém -- e sua estudada postura gauche -- significam busca de uma verdade particular, que à semelhança da maioria dos autores é revelada em pílulas, construída em um mosaico de filmes, para um dia significarem o todo.
Analisados em pleno vôo os pedaços de idéias podem nos trair, provocar sensações e impressões errôneas de um quebra-cabeças a ser montado. Assim tão somente é possível falarmos sobre como o cinema brasileiro dialoga com os autores em curso; difícil afirmarmos qual exato papel vão ocupar na história do cinema brasileiro.
No caso de Cláudio Assis me parece claro que desde "Amarelo Manga" (2002) ele já atraía para si uma espécie de "consciência paralela", do Nordeste avesso aos estereótipos, da realidade nordestina (pernambucana) vista do âmago da coisa. Da mesma forma como é impossível aos tolos perceberem que existem mil Rios e mil São Paulos contidos atrás das simplificações, o que Cláudio Assis parecia estar dizendo era que também existem mil Pernambucos -- inclusive aqueles que, cruelmente, ele nos expõe sem disfarces.
O Recife de "Amarelo Manga" tem um sentido universal: as periferias de qualquer lugar do mundo estão cheias de pensões baratas, onde desgastam-se histórias sem esperança, conflitos se acumulam e as pessoas vivem e morrem anonimamente. Não é sobre fato; é obra atmosférica, que tenta emular um espírito -- no caso, a barbárie claustrofóbica de quem tem muito pouco a ganhar e quase nada a perder. Marcam passo na vida, o que não deixa de ser metáfora superior de um país que deixou de ser aquele do futuro, sem ter qualquer orgulho de passado e presente.
Dunga (Matheus Nachtergaele) é o homossexual faz-tudo do Texas Hotel, apaixonado por Wellington (Chico Diaz), funcionário de um matadouro e marido de Kika (Dira Paes). Lígia (Leona Cavalli) é a entediada dona de bar, que se confronta com Isaac (Jonas Bloch), misantropo necrófilo e morador do hotel-pensão onde Dunga trabalha. Montando essa ciranda a história avança preguiçosa, concentrando-se em exemplificar didaticamente o rumo -- e a desgraça -- de existências inúteis, paradigmas na opressão social e moral brasileira.
Sem conceder um milímetro em seus propósitos, o que às vezes parece "incômodo" no cinema de Cláudio Assis é o afirmar repetitivo da morbidez das personagens. O espectador que olhe superficialmente tanto "Amarelo Manga" quanto o recente "Baixio das Bestas" acaba por tomar o diretor como um obcecado.
Na verdade sua linguagem é igualmente literária e cinematográfica, evocando o estilo de realismo fantasmagórico de um Cornélio Pena ou mesmo de um Lúcio Cardoso. Que essa engenharia sofisticada seja traduzida para cinema de resistência, em um microcosmo miserável do século XXI, e com fotografia esplêndida -- de Walter Carvalho --, só demonstra liberdade criativa e multidisciplinar, no rastro daquilo que o Cinema Novo ensinou de melhor.
Efeito colateral previsível, as críticas e mitificações negativas parecem partir sempre dos subterrâneos mais simplórios, preconceituosos e provincianos de quem (ainda) consome cinema no Brasil. Embora esse tipo de ataque só engrandeça a longo prazo aqueles que realmente têm algo a dizer, o falso mal-estar que a estética agressiva e os gritos de Cláudio contra Hector Babenco provocaram, são símbolos da mediocridade bem-comportada, infértil e impotente que assola a cultura brasileira nos últimos anos.
Desafinando o coro dos patetas e sério candidato a representar um ideal fílmico para gerações futuras, Claudio Assis deve passar a caravana enquanto os cães ladram. Afinal, sabe o que quer e está só começando.
Analisados em pleno vôo os pedaços de idéias podem nos trair, provocar sensações e impressões errôneas de um quebra-cabeças a ser montado. Assim tão somente é possível falarmos sobre como o cinema brasileiro dialoga com os autores em curso; difícil afirmarmos qual exato papel vão ocupar na história do cinema brasileiro.
No caso de Cláudio Assis me parece claro que desde "Amarelo Manga" (2002) ele já atraía para si uma espécie de "consciência paralela", do Nordeste avesso aos estereótipos, da realidade nordestina (pernambucana) vista do âmago da coisa. Da mesma forma como é impossível aos tolos perceberem que existem mil Rios e mil São Paulos contidos atrás das simplificações, o que Cláudio Assis parecia estar dizendo era que também existem mil Pernambucos -- inclusive aqueles que, cruelmente, ele nos expõe sem disfarces.
O Recife de "Amarelo Manga" tem um sentido universal: as periferias de qualquer lugar do mundo estão cheias de pensões baratas, onde desgastam-se histórias sem esperança, conflitos se acumulam e as pessoas vivem e morrem anonimamente. Não é sobre fato; é obra atmosférica, que tenta emular um espírito -- no caso, a barbárie claustrofóbica de quem tem muito pouco a ganhar e quase nada a perder. Marcam passo na vida, o que não deixa de ser metáfora superior de um país que deixou de ser aquele do futuro, sem ter qualquer orgulho de passado e presente.
Dunga (Matheus Nachtergaele) é o homossexual faz-tudo do Texas Hotel, apaixonado por Wellington (Chico Diaz), funcionário de um matadouro e marido de Kika (Dira Paes). Lígia (Leona Cavalli) é a entediada dona de bar, que se confronta com Isaac (Jonas Bloch), misantropo necrófilo e morador do hotel-pensão onde Dunga trabalha. Montando essa ciranda a história avança preguiçosa, concentrando-se em exemplificar didaticamente o rumo -- e a desgraça -- de existências inúteis, paradigmas na opressão social e moral brasileira.
Sem conceder um milímetro em seus propósitos, o que às vezes parece "incômodo" no cinema de Cláudio Assis é o afirmar repetitivo da morbidez das personagens. O espectador que olhe superficialmente tanto "Amarelo Manga" quanto o recente "Baixio das Bestas" acaba por tomar o diretor como um obcecado.
Na verdade sua linguagem é igualmente literária e cinematográfica, evocando o estilo de realismo fantasmagórico de um Cornélio Pena ou mesmo de um Lúcio Cardoso. Que essa engenharia sofisticada seja traduzida para cinema de resistência, em um microcosmo miserável do século XXI, e com fotografia esplêndida -- de Walter Carvalho --, só demonstra liberdade criativa e multidisciplinar, no rastro daquilo que o Cinema Novo ensinou de melhor.
Efeito colateral previsível, as críticas e mitificações negativas parecem partir sempre dos subterrâneos mais simplórios, preconceituosos e provincianos de quem (ainda) consome cinema no Brasil. Embora esse tipo de ataque só engrandeça a longo prazo aqueles que realmente têm algo a dizer, o falso mal-estar que a estética agressiva e os gritos de Cláudio contra Hector Babenco provocaram, são símbolos da mediocridade bem-comportada, infértil e impotente que assola a cultura brasileira nos últimos anos.
Desafinando o coro dos patetas e sério candidato a representar um ideal fílmico para gerações futuras, Claudio Assis deve passar a caravana enquanto os cães ladram. Afinal, sabe o que quer e está só começando.
6 comentários:
Olá Andréa, a propósito de AMARELO MANGA digo que este filme foi uma grande surpresa para mim. Me identifiquei muito com tua visão quando você aponta a apresentação de Recife, pelo diretor Cláudio Assis, como tendo um sentido universal. É isto que, de fato, talvez possa incomodar mais os espectadores - ou pelo menos aguçar a curiosidade dos mesmos já que levando em conta o estilo do filme a bilheteria pode ser considerada como de grande sucesso. Neste sentido a Recife "universal" é a mosca da sopa porque a vemos como algo onipresente - está em quase todos os cantos. Minha visão inicial sobre o filme foi ambivalente: confesso que me incomodou, mas ao mesmo tempo o considerei um filme necessário. Gerou polêmicas, reações adversas do nível "ame-o ou deixe-o" e depois o revi várias vezes. Passado o susto só digo que valeu e já marcou história. Agora surpresa maior para mim foi o silêncio sobre este teu post.O que será que aconteceu?
Oi, Márcio. Realmente, usar esse sentimento de universalidade quando ninguém espera é o trunfo, colocado muito bem pelo Cláudio Assis. O público se choca em muitos sentidos, não só pela força, mas por esse aspecto "inusitado" do filme. Quanto aos comentários sobre o post, é natural. A maioria dos leitores prefere conferir os textos, buscar informações, sem papear sobre o que acharam :)
Andrea, eu discordo do seu ponto de vista, acho “Amarelo Manga” um filme sem criatividade e previsível, embora em comparação com o que vem se produzindo em cinema no Brasil, possa até ser considerado um filme ousado.O seu ponto de vista é válido(e bem escrito como sempre) mas só existe porque os termos de comparação, isto é, o baixo nível da maioria dos filmes produzidos no Brasil, possibilita isso. Enquanto as leis de incentivo só permitirem filmes “chapa branca”, filmes que tem o perfil da empresa, o cinema de qualidade vai ter seu espectro reduzido. É claro que a discussão é ampla e de vez em quando vemos filmes que como esse ou “O Invasor”(que é bem melhor, diga-se de passagem) conseguem furar o bloqueio, embora eu não considere nenhum desses 2 filmes radicais. Abraço e parabéns pelo Blog!
O trabalho de resgate valioso que você vem fazendo no seu Blog e que têm feito pessoas como eu, buscarem conhecer ou rever os filmes comentados mostra perfeitamente como o cinema nacional era rico antes do Collor e da instituição dessas leis de incentivo. Nesse panorama atual, até um filme pouco significativo(no meu ponto de vista) como esse ganha destaque.
Assisti há alguns anos e gostei.
É um bom filme. Me relembrou um
pouco do cinema "underground" ou
"udigrudi" dos anos 60/70.
É isso aí Andréa,o fato de algumas resenhas não ser comentada não quer deizer que foi pouco lida,eu mesmo leio todas e só comento raríssimas vezes,pois eu nem conheço a maioria dos filmes,e sem contar a preguiça mental de redigir texto,não é qualquer um que tem a sua facilidade com a escrita.
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