terça-feira, agosto 07, 2007

Sábado

Quando a crítica e o público o ignoraram, o passar dos anos provou que muitos estavam errados e Ugo Giorgetti absolutamente certo. Está aí "O Príncipe", cada dia mais urgente e polêmico. Sábado (1995) também sobrevive ao teste: doze anos ficaram para trás e parece que foi filmado ontem, mesmo que as mulheres em 2007 não usem bermudas acima do umbigo e os portentosos walkmans tenham sido substituídos pelos minúsculos mp3-players. Ileso do estranhamento estético, o dia de cão da equipe de publicitários, gravando um comercial em um prédio decadente no Centro de São Paulo, é a fina flor dos tempos atuais. Moderninhos e bem-nascidos em minoria de um lado; o lúmpen urbano -- numeroso, onipotente -- do outro. Na cena inicial, a chegada da elegante produtora Magda Blum (Maria Padilha) ao Edifício das Américas é narrada didaticamente, e os que são de fora de São Paulo podem entender o espírito do velho Centrão: tão querido quanto temido, tão admirado quanto evitado. Magda é a anti-heroína da trama, ainda que não seja, nem de longe, personagem principal. Este mérito ficará com o povo, moradores e curiosos, que vão chegando e se amontoando à medida que as filmagens avançam. Escolhido por ter um lindo e imponente elevador, o Edifício das Américas, "fundado pelo Comendador Giuseppe Argentile", guarda em seus labirintos vidas absurdas, andares mal iluminados e um terraço panorâmico convertido em campo de futebol, roda de samba e praça de churrasco. Quando os profissionais da fictícia "Blimp Filmes" iniciam os preparativos de gravação, Magda pega o elevador que -- surpresa? -- pifa entre um solavanco e outro. Não custa e descobre que está muito bem acompanhada: dois funcionários do IML (Otávio Augusto e Tom Zé), transportando um inevitável "presunto" (Gianni Ratto); além de um oligofrênico (André Abujamra), convidado do churrasco. O único morador apto a resgatá-los é um velho misantropo, conhecido por Homem de Alcatraz (Décio Pignatari), que vive com a mãe em um apartamento repleto de pássaros voando livres pela sala. Indiferentes ao "drama" de Magda, os outros "inocentes dos Jardins" procuram gravar o filme. Mas a realidade logo substitui o verniz de pragmatismo: enquanto amaldiçoam o país e comentam as últimas novidades da numerologia, não percebem a massa barulhenta, que ocupa o entorno por necessidade ou curiosidade. Maravilhados com a mesa de frios e sucos bem fornida e o inefável "glamour" das câmeras, ficarão ali, disputando as migalhas e sobras. Naquele restrito aparato cênico -- não tão restrito quanto o de "Festa", mas resumido praticamente ao saguão, ao terraço e ao elevador de Magda -- Giorgetti faz metáfora das relações sociais brasileiras: a convivência forçada entre interesses diversos, principalmente nas metrópoles, resulta em uma constante e não-declarada luta pelo ínfimo disponível. Ao mesmo tempo, eclodem as variações do ideário auto-indulgente dos paulistanos de classe-média/alta para quem "brasileiros são os outros". Os "outros" provocam horror, não possuem telefone ("No aperto a primeira coisa que vende-se é o telefone" -- explica o personagem de Décio Pignatari) e agem em um tempo diferente dos bem-nascidos ("O tempo do lúmpen é diferente!" -- Pignatari, sempre improvisando brilhantes "cacos" no roteiro). Mas também é o "lúmpen" que faz o serviço "sujo", dando meia dúzia de tapas no maquinário do elevador, tirando Magda da barbárie claustofóbica e devolvendo-a à civilização. Com sorte, alguns assistem à fumaça de gelo seco, ilustrando a arrogância do diretor e a beleza da mocinha, enquanto outros lêem jornais sensacionalistas ("Deu a bunda para salvar a vida", reclama uma manchete, digna do Notícias Populares). Um cachorrinho yorkshire desaparece, uma candidata a cantora empolga a multidão e finalmente o comercial é filmado. Em tempo recorde, a equipe da "Blimp" será colocada em um ônibus para voltar ao lado certo da urbe -- enquanto isso, o povo espalha-se. Todos estão salvos. Verdade que deixam no prédio, morando no último andar, um incrível Jô Soares assistindo à tv -- ligada direto no painel de força -- ; e a veteraníssima Madalena Nicol, mãe do Homem de Alcatraz, não-creditada por ter se desagradado da personagem. Além deles, Jesse James Costa -- "técnico de elevador" -- e Adriano Stuart, eventual transeunte, nas calçadas onde a maioria dos bem-nascidos jurou nunca mais pisar. "Sábado" não é o melhor filme de Giorgetti -- o mérito vai para "O Príncipe", de 2002 -- mas, com certeza, é sua obra mais ácida e engraçada. Amadurecendo o tema da dicotomia social -- presente em "Jogo Duro" e "Festa" -- Giorgetti concluiu com "Sábado" uma trilogia, talvez involuntária, montada no rastro de suas observações e questionamentos. Vista em ordem cronológica, serve de introdução plena para a obra deste gênio, cujo olhar crítico não esconde a paixão pela cidade e seus habitantes.

6 comentários:

Anônimo disse...

Vi quando foi lançado e me decepcionei um pouco. talvez esteja na hora de rever.
Beijo!

Anônimo disse...

saiu em dvd ou vhs esses filmes do giorgetti? eu e minha companheira gostamos dos filmes dele.

Anônimo disse...

Oi Andrea, excelentes resenhas e excelente volta. Espero ver as suas longas (e extraordinárias) entrevistas de volta ao blog também. Meus parabéns.

Andrea Ormond disse...

Sergio, acho que ao rever vc vai gostar um pouco mais do Sábado, principalmente colocando ele em perspectiva com outros filmes do Giorgetti. Beijo!

Anônimo, em dvd acho que só saiu o "Jogo Duro", "O Príncipe" e os 2 "Boleiros".

Oi, Matheus, obrigada. No final do mês sai a entrevista com o Mauro Alice. E outras surpresas estão a caminho :)

Anônimo disse...



Engraçadíssimo..!!

Lucio Vargas disse...

Olha, eu achei mais ou menos o filme na época, mas vou revê-lo.