Foi só depois de assistir ao constrangedor "Duas Vezes com Helena", de 2001 -- baseado no mesmo conto de Paulo Emílio Salles Gomes -- que percebi o quanto "Ao Sul do Meu Corpo" (1981) é um belo filme. Empostado e superficial, o segundo falha em quase todos os acertos do primeiro, e parece sintomático -- em detrimento ao cinema atual -- duas adaptações de fonte semelhante obterem resultados tão diversos.
Como costume na obra do diretor Paulo César Saraceni, "Ao Sul do Meu Corpo" teve enormes dificuldades em ser liberado pela censura. Sabe-se que os censores se desagradaram do aspecto político do filme, deixando passar incólume sua inteligente subversão de valores convencionais, e a clara sugestão de homossexualismo entre os protagonistas: mestre e discípulo, levados às últimas consequências em triângulo amoroso.
Polidoro (Nuno Leal Maia) é aluno de Alberto (Paulo César Pereio); e, para Polidoro, o homem mais velho transmite sua filosofia epicurista com grande entusiasmo. Dividem mulheres, porres, impressões sobre Paris -- tendo como pano de fundo um Brasil provinciano e afrancesado, no final dos anos 30. Em período de formação, Polidoro vai para a Europa estudar. Alberto leva seu menino até o navio, com uma lista de recomendações e locais a serem visitados.
Na França, Polidoro descobre algo além do que buscava: as idéias fascistas, o nazismo, a divisão do tal "velho mundo", que ele gostaria de abraçar por inteiro. Uma emissora de rádio transmitindo em alemão e a risada macabra do rapaz gordo e convalescente na pensão onde mora são uma espécie de prenúncio do horror. Precisa voltar ao Brasil, à província, mas parodiando "Morro Velho", de Milton Nascimento, quando volta já é outro.
No entanto, impossível esquecer do mentor. Alberto, por sua vez, se corrói de saudades, mas deixa de ser um irremediável solteirão e contrai núpcias com a bela Helena (Ana Maria Nascimento e Silva). O que Polidoro não sabe é que o professor -- impossibilitado de ter filhos -- trama com a esposa para que ela seduza o aluno e engravide dele.
A sedução e o interlúdio do adultério são a melhor parte do filme. A presença de Alberto é massacrante, ainda que ele esteja muito longe dali. Polidoro tem em relação à mulher do próximo uma espécie de desejo apavorado -- aos poucos, sente-se paranóico com a situação. E Helena oferece seu corpo a Polidoro com um pragmatismo que discute todas as noções machistas de posse, ao mesmo tempo que reafirma as mesmas (afinal, ela é teleguiada pelo marido; seu ventre, em última instância, é depositário do prazer castrado de Alberto em engravidar do aluno).
Tudo isso acontece sem que Polidoro tenha sequer noção de fazer parte de um jogo reprodutor. Crê, impossivelmente crê, que a mulher do ídolo o ama. Quando é rechaçado por Helena parte cheio de culpas. Vai rever a dupla trinta anos mais tarde, hipnotizado e mortificado pela traição ao amigo. Só então descobre a verdade.
"Ao Sul do Meu Corpo" não é de compreensão muito fácil, inclusive por seu íntimo diálogo com a literatura. Escrito por um dos maiores críticos de cinema do país, o conto que deu origem ao filme necessitava da intervenção de um homem letrado como Saraceni. Acostumado a adaptar Lúcio Cardoso, o diretor trafega com segurança pelo universo repleto de cristianismo (Othon Bastos, como padre, tem o olhar de um sacerdote da Igreja Ortodoxa Russa), e, ao mesmo tempo, pela construção psicanalítica de um triângulo revivido.
"Meu pudor não fica ofendido, ele se foi com Alberto", Helena sussurra e mostra os seios a Polidoro, como se encerrassem o segredo da vida. Ela sabe que seu gozo é auxiliar; o que importa é o gozo de Alberto. A pobre mulher aceita, passiva, a contenção do amor entre dois homens. E viverá, ainda passiva, por trinta anos, consolando o marido por esse amor que destrói sua possibilidade feminina de ser.
Paulo Emílio Salles Gomes morreu de enfarte em 1977, mesmo ano em que publicou o livro "Três mulheres de três PPPês", onde está a história de Helena. Sem dúvida teria gostado do filme. Ambos -- livro e filme -- trazem a marca da falta de medo, da afronta intelectual misturada com um enorme senso de perenidade e modéstia. Enfim, trazem o signo de dois Paulos: Emílio e Saraceni, homens da renascença, que fizeram a vida na crítica e no cinema por amor, já que podiam ter se dedicado a qualquer outra forma de arte com igual êxito.
6 comentários:
Peguei este pela metade há alguns anos; fiquei interessado, mas não deu para acompanhar... Espero ter a chance de vê-loa adequadamente algum dia. Beijos!
Extraordinário filme. Foi um dos filmes que mais me fez a cabeça pra eu cair de vez e embarcar com a cara e a cabeça no cinema brasileiro. As atuações de Pereio e Nuno Leal Maia são irretocáveis.
Oi, Marcelo, o filme pode parecer morno em uma primeira olhada, pelo menos a mim pareceu, mas ao revermos cresce bastante :)
Fala, Matheus. O Pereio realmente faz um dos melhores papéis da carreira dele, é um grande ator :)
acabei de assistir ao filme Duas vezes com helena e começei a buscar mais informações sobre o filme, descobri que esta é a segunda versão do conto e acabei esbarrando aqui no Estranho Encontro. Fiz um breve comentário do filme no meu blogue e coloquei um link lá para este comentário aqui. Em breve verei esta primeira adaptação pois fiquei curioso para compará-las.
Abraço!
Muito boa a resenha,como sempre,vou ver se assisto.Me lembro da atriz do filme falando sobre o lançamento ou relançamento nos longínquos anos oitenta.
Saudades. Cida Moreyra no Café o Bixiga, onde algumas locações foram rodadas. Belo filme.
Postar um comentário