sábado, abril 28, 2007

Amor Maldito


"Amor Maldito" (1984), que outro dia o Canal Brasil nos fez o favor de exibir, se define pelo título: é uma investigação sobre o amor homossexual, quando o assunto no país ou constava das sonolentas enciclopédias em fascículos, ou era restrito ao gueto -- posto ao sabor da histeria e do recalque coletivo toda vez que debatido longe da esfera privada. Assim o filme deve ter sofrido tantas pressões que seu aspecto de anotação de costumes perde-se em oceano de considerações moralistas, tendenciosas, até irônicas; mas reveladoras de punitiva vigilância social.

Graças ao roteiro do escritor José Louzeiro, a diretora Adélia Sampaio emprestou à história um tom de crônica policial, narrando o caso entre a jovem executiva Fernanda Maia (Monique Lafond) e a ex-miss Suely Oliveira (Wilma Dias). Caso este que -- bem ao gosto da paranóia fatalista -- será coberto de traição e redundará, sem meio-termos, em rocambolesca tragédia.

Antes do fim, percebemos que as duas mulheres se conhecem naquele momento crucial da vida, aos vinte e poucos anos, na encruzilhada entre vencer ou sucumbir à rotina. Cortejada pela postura independente de Fernanda, Suely se entrega, e passa a viver com a namorada. Depois, o que teremos é um filme de tribunal: em cena absolutamente ridícula, Suely (quase gritando "Aiô, Silver!") pula pela janela e se suicida. Por conta da intempérie, Fernanda estará no banco dos réus, acusada de homicídio.

Acusada, porém, é um termo leve. Muito bem exposto pelo olhar teatral da diretora, a jovem mulher empreendedora é massacrada por um rococó moralista, com quase todo o elenco de apoio do cinema brasileiro dando um pulinho no tribunal e espezinhando a pobre moça. Para piorar, os dois advogados -- defesa e acusação -- também cumprem sua missão de paternalismo inquisidor, solapando a dignidade das partes em um julgamento que deve ter entrado na história da comarca.

No desfile daquelas sinistras "testemunhas" compartilhamos em flashback a vida do casal, que permeia sua relação de pequenas traições, sendo a mais notória com um jornalista (Mário Petraglia), pivô da tragédia. O que dá ao filme certo tom ainda mais absurdo é a diferença de caráter entre o imbecil personagem de Petraglia e a altivez da apaixonada Fernanda: difícil supôr que Suely -- por mais auto-destrutiva que fosse -- trocasse uma pelo outro. E, novamente, o que o ex-presidente Jânio Quadros chamaria de "forças ocultas" vêm à tona na peleja, para tentar comprovar a tese sensacionalista de que "mulher com mulher dá jacaré".

Dando ou não jacaré, o júri será conduzido em tom insano, com ares de Ratinho, até que Fernanda acabe absolvida. No subtexto a mensagem derradeira é o resultado do julgamento, com Fernanda escrevendo a lápis no túmulo de Suely um "só eu te amei" e os créditos encerrando.

Posta a idéia de o filme ser ruim, simplista, a favor de "Amor Maldito" muitas coisas merecem releitura, além da evidência de ter sido precariamente realizado em um Brasil ainda mais paroquial do que hoje, naquele início dos anos 1980. Salva-se, por exemplo, que a história foi baseada em fatos reais, acontecidos no bairro de Jacarépagua, no Rio; e que a película ganhou o título de pioneira por cercar o tema.

Curiosamente a atriz que faz a protagonista suicida, Wilma Dias, teria de fato morte trágica, sofrendo enfarte aos 37 anos. Mais conhecida pela participação na abertura do humorístico "Planeta dos Homens", destacam-se sua coragem e a de Monique Lafond, na pele de personagens tão frontalmente polêmicas e tão facilmente atacáveis pelos trouxas oportunistas.

Outro aspecto notável é que, nessas duas décadas, mudou a inserção de mulheres lésbicas e bissexuais na vida cotidiana, mas o cinema brasileiro não acompanha a evolução sobre o assunto. Por mais "modernos" que somos, a questão gay na nossa cinematografia é sempre vista de forma incidental ou transversa: uma personagem lésbica aqui, um beijo de meninos acolá. "Amor Maldito", ao seu modo, supera tudo isso.

Só não supera "Giselle", da Vidya Produções, ou o cinema da Boca -- que, anos antes, já abordava melhor a homossexualidade feminina em filmes como "Karina, Objeto do Prazer", "Ariella" e "Mulher Objeto". Nestes o moralismo que sufoca "Amor Maldito" é transviado por uma série de subversões divertidas, e o resultado permanece atual e inteligente.

Percebam que atingir uma universalidade ao falar daquilo que não é natural para alguns e soa tão natural para outros, implicará sempre em grande dose de visão progressista e libertária. Se queremos ser e não permitem que sejamos, precisamos vencer, a troco de desgaste. Mais angustiante que a experiência da angústia é nunca sentir angústia, colocou Heidegger. Enquanto a sociedade vigia, o indivíduo cria.

17 comentários:

Anônimo disse...

Oi Andrea. Não conheço esse filme, somente após a sua interessante crítica. Realmente há diversas produções da mesma época que dialogam com essa. Você já viu TESSA, A GATA do John Herbert ? Estou atrás desse filme há muito tempo e dialoga também. E a tal Adélia Sampaio, onde anda ? Seria interessante entrevistá-la, ela trabalhou com o Lulu de Barros.

Andrea Ormond disse...

Oi Matheus, passou naquela sessão Brasil Cult, do Canal Brasil. Engraçado é que muitos filmes que ele passam ali, não reprisam mais. Esse "Tessa, a gata" não é baseado em história da Cassandra Rios? Acho que o John Herbert fez esse e o "Ariella" naquele periodo, ambos baseados em histórias da Cassandra. É dificil de encontrar, acho que nem em vhs saiu na época. A Adélia Sampaio voltou para o teatro, segundo me disse o José Louzeiro, mas tem vontade de fazer outros filmes sobre a temática GLS.

André Setaro disse...

Você está a resgatar a memória do cinema brasileiro, inclusive porque a crítica, na época, foi totalmente omissa em relação à maioria dos filmes comentados aqui neste blog. A crítica seguia os ditames da consagração de determinados diretores que se 'carimbavam' como bons. Poucos os que podiam ser vistos, como o genial Candeias, 'aprovado' pela 'intelligentzia'. Mas qual o crítico que teria coragem de elogiar um filme de Jean Garrett, um filme de Ody Fraga, entre tantos outros?
Lembro-me que, com uma coluna diária em jornal local, elogiei 'O estrangulador de mulheres', filme de estréia de Juan Bajon, porque o achei insólito, bizarro, e me causou uma grande estranheza (o velório, por exemplo, das baratinhas). Algumas pessoas da 'intelligentzia' local chegaram a dizer que estava a elogiar filmes pornográficos e de baixa qualidade. O fato é que a crítica não viu Ody Fraga, nem Jean Garrett, nem outros tantos heróis do cinema brasileiro. A omissão, grave no meu entender, está sendo corrigida neste blog essencial e imprescindível.

Andrea Ormond disse...

Oi André, fico grata pelos elogios e pela força para continuar esse trabalho de revisão. Por outro lado, também gostaria de parabenizá-lo, pois vc foi uma das poucas pessoas a escrever um texto sobre o grande crítico de cinema Paulo Perdigão, que faleceu no último dia de 2006. Quem estiver interessado em saber mais sobre Perdigão, visitem http://setarosblog.blogspot.com/
(post de 13/jan/07) Faço minhas as palavras do André, pois sou também grande admiradora do crítico, seja pelos textos na Filme Cultura, seja por ter sido o responsável pelo bom gosto das sessões de filmes da Tv Globo nos anos 80 e 90. O texto é melancólico, mas ao mesmo tempo, saboroso :)

André Setaro disse...

Obrigado Andréa. Leio Paulo Perdigão desde jovem, quando escrevia no 'Correio da Manhã'. Acompanhei a sua fascinação/obsessão por 'Os brutos também amam'/'Shane', de George Stevens, quando realizou o seu sonho de ir aos Estados Unidos, na segunda metade dos anos 60, entrevistar Stevens, que a princípio relutante na entrevista, entusiasmou-se do meio para o fim com a erudição do crítico, e chegou a lhe dizer que conhecia melhor 'Shane' do que ele.
Perdigão era um homem muito culto, raro, que entendia profundamente de Sartre, de filosofia, e que também, além do texto analítico sobre cinema, fez a radiografia de
uma derrota em 'Anatomia...', esqueci agora o título do livro sobre a derrota do Brasil em 1950.

Andrea Ormond disse...

André, achei tb muito interessante vc contextualizá-lo como discípulo de Moniz Vianna. Mesmo porque vejo muita gente tentando minimizar a importância de Moniz Vianna, de quem a leitura foi sem dúvida a mais importante na minha formação, e que no meu ponto de vista foi o maior crítico brasileiro entre todos. Ele, Perdigão e uns poucos outros eram, como vc bem disse, homens de uma cultura e formação fabulosas. Não à toa, estão aí até hoje, influenciando gente que nem era nascida quando eles se aposentaram :)

Demonarch disse...

Monique Lafond! Por onde anda Monique Lafond!?

André Setaro disse...

Comecei a apreciar a arte do filme lendo no quarto caderno do Correio da Manhã as críticas copiosas de Moniz Viana. Jovem, ficava impressionado com a sua erudição cinematográfica. No 'julgamento' de Moniz Viana, há a questão ideológica. Muita gente o menospreza porque Moniz não era de esquerda e gostava de criticar Godard, que era um 'grão-duque'. Mas não resta a menor dúvida que Moniz Viana exerceu enorme influência sobre toda uma geração (Perdigão, Sérgio Augusto, Valério Andrade, Ruy Castro, tantos!), como, aliás, registra a extinta revista Filme/Cultura num número dedicado à crítica cinematográfica, que tem várias páginas dedicadas ao grande crítico carioca. Glauber Rocha, por exemplo, tinha respeito por Moniz e ficou meio constrangido quando exibiu especialmente para ele 'Deus e o diabo na terra do sol'. Mas a crítica de Moniz a 'Terra em transe' fez com que Glauber ficasse apopléxico. Adolescente, quando me perguntavam o que queria ser quando crescer, respondia: "Antonio Moniz Viana".

Zombisagem disse...

otimo blog

Anônimo disse...

Vi essa semana no Canal Brasil o filme Escola Penal de Meninas Violentadas do Antonio Meliande e achei o final do filme forçadamente feito para desmerecer as relações lésbicas que existiam nele. No filme, o delegado afirma que a mulher que se faz passar por freira tem problemas mentas por ser lésbica. No final uma das "meninas" que consegue fugir e pedir socorro termina com o policial que investigava o caso. Só que ela tinha uma relação com outra “menina” da escola penal. Ela se despede dessa “menina” dizendo que o que ocorreu entre elas foi apenas carência afetiva. Achei meio forçado. Um abraço.

Andrea Ormond disse...

demonarch, tem a entrevista da Monique aqui nos arquivos, dê uma olhada :)

oi André, infelizmente não tive como vc o privilégio de ler o Moniz Vianna fresquinho da gráfica, apenas em arquivos empoeirados. E mais recentemente, naquela coletânea selecionada pelo Ruy Castro. Tem uma entrevista muito interessante dele no site Críticos.com.br, gostei muito de vê-lo dando opinião sobre filmes recentes: http://www.criticos.com.br/
new/artigos/critica_interna.asp?artigo=1097 Acho que quem é leitor de Moniz Vianna, acaba marcado por seu olhar para o resto da vida, mesmo que às vezes discorde de suas opiniões :)

Olá Ivon, obrigada :)

André Luiz, o cinema da Boca era muito diverso, e alguns filmes realmente tinham conteúdo homofóbico e machista, mas não era uma regra. No caso do "Escola Penal", que tb assisti, principalmente a última cena traz essa mensagem anti-lesbianismo, que como vc colocou, parecendo forçada e ridícula. Mas veja o cinema de Jean Garret, por exemplo, que vc vai ver filmes da Boca com conteúdo claramente libertário e pró-bissexual. Esses são um must :)

Anônimo disse...

Oi Andrea. Muitos legais os textos do professor Setaro sobre o Perdigão. O livro que ele se refere é "Anatomia de Uma Derrota", que trata da derrota do Brasil na copa de 50. Não sei se todo mundo sabe, mas Perdigão foi também editor da revista Ele & Ela da editora Bloch, na melhor fase da publicação nos anos 70 em que escreviam lá pessoas como Carlos Heitor Cony, Paulo Mendes Campos e mesmo Nelson Motta. Andrea, eu sabia da sua admiração pelo Moniz Viana, mas não sabia que era tamanha. Outro que daria uma excelente entrevista, bem como o Ely Azeredo. Inclusive na Zingu!, faremos dossiês sobre grandes críticos brasileiros. A do Jairo Ferreira será em junho.

Marcelo V. disse...

Por uma coincidência, acabei de publicar em meu blog um texto do Carlo Mossy em que ele cita a Monique Lafond; convido a todos para a leitura.

Andrea Ormond disse...

Oi Matheus, o Moniz Vianna realmente é uma grande influência para mim. Apesar de o Paulo Perdigão ter trabalhado na Ele & Ela, etc a maioria das pessoas costuma associá-lo apenas à obssessão por Shane e à programação de filmes da Globo, esquecendo que era, de fato, um jornalista :)

Oi Marcelo, muito sensível esse texto do Mossy, típico do autor :)

Anônimo disse...

Vi o fil me ontem, 14/03/2009, e tenho que te dar razão Andrea, porque talvez a única qualdiade do filme seja o enfoque direto na homossexualidade. Não acredito que dê pra salvar mais nada. Além disso o filme é bem chato nas sessões do tribunal do juri -que aliás omitiriam a presença de um promotor, substituindo por um advogado de acusação. Ah, não sei se cochilei, mas quem era o cara dormindo com a Monique Lafond na cena em que a campainha toca avisando do suicidio da Wilma Dias?

Michael Carvalho Silva disse...

Como era bonita e sensual a finada Wilma Dias, sem dúvida ela foi a pantera brasileira mais sensual e deslumbrante dos anos setenta. Descanse em paz, delícia.

Anônimo disse...

Esse filme (Amor Maldito) está inteirinho no Youtube, para quem deseja assistí-lo...