Quem hoje assista a "Porto das Caixas" (1962), estréia em longa-metragem de Paulo César Saraceni, talvez tenha dificuldade em enxergar os méritos do filme, mesmo porque quase cinco décadas se passaram, e os detalhes e bastidores da produção venham progressivamente sumindo na memória.
Influenciado pelo neo-realismo italiano -- Rosselini é a citação mais costumeira -- o esforço do jovem Saraceni, então com 29 anos, remete também às idiossincrasias de sua própria formação. Amigo dos escritores Octavio de Faria e Lúcio Cardoso, Saraceni impregnou seu cinema da obra deste último: Cardoso assina o argumento de "Porto das Caixas" e seria revisto em outros dois filmes -- "A Casa Assassinada" e "O Viajante", formando a trilogia que representa o melhor da produção do amigo diretor.
Mas quem foi Lúcio Cardoso? Espécie de guia espiritual para Clarice Lispector, figura símbolo da Ipanema sofisticada das décadas de 50 e 60, acabou bem menos famoso do que sua pupila. Autor de uma obra densa, cada vez mais distante de ser lida, na qual o gosto pela especulação de atmosferas só não é maior que as culpas sombrias, católicas, invadindo as profundezas do discurso.
Pouco antes de "Porto das Caixas", Paulo César Saraceni trazia a experiência de "Arraial do Cabo", curta feito em parceria com o diretor de fotografia, Mário Carneiro -- e considerado obra seminal do chamado "Cinema Novo". O passo seguinte, a direção de um longa, consolidaria a adesão de Saraceni como adepto e pensador do movimento.
"Porto das Caixas" baseia-se em crime ocorrido na localidade homônima do município de Itaboraí, antigo estado do Rio. Mulher paupérrima (Irma Alvarez), maltratada por um marido ignorante e bruto (Paulo Padilha), resolve assassiná-lo, e utiliza para isso seus encantos femininos, buscando em mesquinha fauna de amantes o cumpridor da proeza.
Como nenhum se apresente, acabará executando o serviço sozinha, sob o olhar medroso do dono do armazém (Reginaldo Faria), para quem prometera o paraíso em troca do homicídio. Desnorteado, o amante a abandona depois do crime; e, na linha ferroviária, seguem por fim caminhos diferentes.
Além dos aspectos históricos e estéticos que guiam a modesta produção -- nos quais a fotografia de Mário Carneiro talvez seja, sob olhar imparcial, o mais bem sustentado -- temos que perceber as sutilezas da trama, diluída da vida real em ficção por Lúcio Cardoso a pedido do próprio Saraceni. É notável, por exemplo, que a maldade em grandes personagens femininas -- de Madame Bovary à Eve Harrington -- seja sempre calcada em aspectos narcisistas de personalidade, e aqui não se fuja à regra.
A protagonista será alguém que, do início ao fim, conspira e mata porque cria mecanismo auto-centrado de referência -- ela em primeiro lugar, os outros e suas vontades em patamar inferior. Mesmo que o marido a maltrate e a olhe como utensílio doméstico, sua opção pelo dolo -- imputando sofrimento, com um machado, e mobilizando várias pessoas em prol do desejo homicida -- diz muito sobre a dinâmica narcísica, aquela que espelha sua desgraça, sem enxergar meios de escape ou explicação lógica -- e pouco sobre variantes sócio-econômicas, como queriam os cinemanovistas.
Para sustentar tamanha ruminação íntima, Mário Carneiro optou por uma fotografia cheia de espaços não-vistos, que deve ter agradado a Lúcio, prosador que sugeria mais do que frontalmente dizia. A direção de Saraceni também é apaixonada e inspirada, e a trilha-sonora de Antônio Carlos Jobim transborda lirismo -- embora longe de seu habitat, engolida na imperfeição de um Brasil melancólico.
Como curiosidade, o distrito de Porto das Caixas -- ressaltado toda hora como lugar esquecido e inóspito -- em 1968 ganharia fama duradoura, por uma imagem de Cristo que verteu sangue. O lugar é -- muito mais do que os personagens coadjuvantes -- o terceiro vértice da relação mulher-marido, empurrando a protagonista em busca de solução que a levasse para longe, o mais longe possível, da doença espiritual que a atormentava.
Lúcio Cardoso morreu no mesmo 68, sem ver "A Casa Assassinada" (1970) e "O Viajante" (1999), os outros dois filmes que Saraceni extraiu de sua obra. Se sobrevivesse, o aspirante a cineasta -- chegou a começar um filme, "A Mulher de Longe" -- e autor da brilhante frase "Estranho dom, Deus me deu todos os sexos" -- ficaria satisfeito com o monumento, fabricado com esmero, pois quase quarenta anos separam o primeiro filme do último.
A verdade é que Cardoso injetou na filmografia do talentosíssimo Saraceni uma subversão plena, muito além do que poderiam supôr as discussões daqueles jovens e idealistas cineastas. Mudar ou não mudar o mundo através da arte, citemos o próprio Lúcio Cardoso, para quem a organização política não tinha qualquer graça, já que preferia os homens "livres e desorganizados".
11 comentários:
Vi há muito tempo, gostaria de rever...
Sensacional seu texto sobre Jean Garret, parabéns!
fala. tudo bem?
eu fiz 1 blog com a proposta de reunir e exibir vídeos (coletados de páginas como youtube) de ou sobre grandes cineastas. quando ou se você puder, você colocaria 1 link para lá http://filmescopio.blogspot.com/ no seu blog?
valeu. um abraço.
Andréa, "Porto das Caixas" é um dos mais belos filmes brasileiros. Tão neo-realista quanto "O grande momento", do Roberto Santos, um dos meus favoritos.
E com esse texto você fez uma belíssima e merecida homenagem ao trabalho do Saraceni, do Lúcio Cardoso, do Mário Carneiro. Parabéns!
Andréa, coloquei no meu blog um link que remete ao seu texto: http://olharpanoramico.blogspot.com/2007/04/encontro-no-porto-das-caixas.html
Andréa, PORTO DAS CAIXAS me chamou atenção também porque toca numa temática pouco usual para a época: trata-se de uma crítica ao machismo brasileiro. O próprio Saraceni escreveu sobre isso em sua biografia POR DENTRO DO CINEMA NOVO: "O tema de PORTO DAS CAIXAS falava de miséria. E da miséria da mulher na nossa sociedade machista de 1962. Eu sempre fui sensível ao problema da mulher, escrava da casa". Interessante que Saraceni trata da mulher pobre e de sua luta cotidiana com muito respeito -tema bastante pertinente do qual Carlos Reichenbach tem abordado sempre com muita precisão (vide ANJOS DO ARRABALDE, GAROTAS DO ABC...). Mais um gol para você com este post (acho que você completará o gol 1000 antes do Romário! - risos).
Valeu, Marcelo, obrigada!
Oi, Estevão, já linkei, ficou muito legal o blog :) Um abraço!
Olá, Observatório. Neste link, há um pouco sobre mim: http://kinocrazy.blogspot.com/2007/03/palcio-dos-anjos-sbado-1003.html. Abraços.
Oi, Nirton, obrigada pela divulgação do texto no Olhar Panorâmico. "O grande momento" é uma bela lembrança, o Roberto Santos está em plena forma. Abraços!
Márcio, obrigada pelo comentário, a citação que você trouxe do Saraceni é preciosa. Concordo que seja uma crítica ao machismo brasileiro, ainda que certos aspectos trágicos, muito por conta do roteiro do Lúcio, sejam bem mais psicanalíticos do que sociológicos. Ops...se cada filme for um gol, estamos ainda no 127, bem longe dos 999 do baixinho rsrs
O que devo dizer é o seguinte: nunca li uma análise tão precisa, tão nítida nas suas observações, de 'Porto das Caixas', um grande momento do Cinema Novo brasileiro.
Obrigada, André. Procurei trazer a mescla entre Saraceni e Lúcio, pontuando com outras informações relevantes. Um abraço.
Ainda ha pouco, neste dia 28 de setembro, acabei de ver Porto das Caixas - no Centro de Cultura de BH - em uma pequena mostra de cinco filmes dos primeiros anos do Cinema Novo. Admirador apaixonado de Glauber, agora posso dizer que conheço um pouco do movimento; pois foi nessa mostrinha que conheci Bahia de Todos os Santos, A Grande Feira e Porto das Caixas; amanhã será a vez de Tocaia no Asfalto. Ver o filme e depois ler sobre; é assim que faço. E tive sorte de, ontem, pesquisando na internet informações sobre A Grande Feira, topar com sua palestra no "Que país é esse" e com esse seu blog. Hoje, depois do impacto de ter visto Porto das Caixas, encontro novamente o blog e sua crítica, agora sobre o belo filme de Saraceni; nela você tece uma bela, rápida e sutil analise sobre relação entre literatura e cinema, arte e política. Lembro do guardinha e a mulher andando sobre os trilhos... e o muleque milico perguntando a ela "Sua casa é perto da Casa Assassinada?". Interessante como adaptações podem instigar o diálogo entre o cinema, a literatura e vida. Bom quando identificamos e podemos fazer as conexões entre filme e livro, e entre cinema e vida real - caso do Porto das Caixas. Melhor ainda quando encontramos redes em que podemos pousar nossa reflexões, balança-las, arrisca-las... Seu blog é uma dessas belas redes na web; ele tece, pela sua escrita, uma das melhores funções da crítica que é instigar sensibilidade e inteligência na nossa relação com a obra de arte. Parabens!
Sempre converso com amigos sobre a ausência do cinema novo nas programações, referências e memórias. assistindo a o desafio, hoje,4maio2012,chego a esse blog.leio a crítica valorosa sobre porto das caixas que, por causa dessa leitura, procurarei ver.
olhei ao lado as postagens anteriores e já estou nesse encontro.
Vi uma vez na tve. É muito manêro. Legal mesmo...
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