Nada mais constrangedor do que a falta de entendimento travestida de suma arrogância. Ouve-se de tudo, fala-se de tudo e muitas vezes o que fica clara é a vontade de se atingir uma vidraça qualquer escolhida a dedo e depredá-la de cima a baixo, a partir do desejo doentio -- porque invejoso -- de não ter de se prestar contas à realidade.
O caso de Walter Hugo Khouri no cinema tupiniquim é exemplar nesse sentido, prato cheio para ataques furibundos, no mínimo por dois caminhos: o da obra audiovisual per se e o da estigmatização de um projeto estético-autoral, conduzida por um fanatismo que beira o religioso.
A análise isenta dos vinte e cinco filmes de Khouri deve considerar, a princípio, o percurso realizado pelo diretor e roteirista. Caminho percorrido não apenas em meio a intempéries mercadológicas -- que existiram, às vezes, e levaram a concessões para a viabilidade econômica dos projetos -- mas também por uma espinha dorsal que passou longe de ter sido construída por achismos ou chutes ao acaso.
Em "Paixão Perdida" (1998), derradeiro filme de WHK, Marcelo -- personagem-chave da trajetória khouriana -- aparece forjado tanto no papel de pai quanto no de filho, resultando daí a primeira ruptura do plot. Diz-se "ruptura" na medida em que essa mescla entre pai e filho é inviável pela própria tensão edipiana, seminal no roteiro.
Marcelinho (Fausto Carmona), garoto cercado de mimos, com uma trupe de serviçais na mansão da família -- dentre eles, a governanta Matilde (Zezeh Barbosa) -- está catatônico, entrevado numa cadeira de rodas, sem qualquer indício fisiológico para a doença. No passado, assistiu por mais de cinco horas ao cadáver da mãe (Anna, Maitê Proença) estirado na beira de estrada, depois de um acidente de carro.
Aqui chegamos a um tema recorrente na filmografia de Khouri, e que torna alguns de seus melhores esforços quase incompreensíveis sem alguma aproximação psicanalítica. O personagem Marcelo obsessivamente se encontra na busca do absoluto, da volta ao útero, da fusão com a mãe (o elemento feminino). Na impossibilidade deste retorno, ele ora se satisfaz com uma postura manipuladora em relação às mulheres -- caso de "Convite ao Prazer", "O Prisioneiro do Sexo" ou mesmo "As Amorosas" --, ora se frustra pateticamente -- caso de "O Último Êxtase". Finalmente em "Paixão Perdida" Marcelo opta pelo não-ser, pela anulação de sua existência, diante do mistério do desaparecimento da mãe/mulher provedora de todas as delícias da vida.
Não-Ser, ou estar catatônico, serve também como fuga do enfrentamento para com o pai, que afinal, é sempre o verdadeiro dono da mãe idealizada e erotizada pelo filho. Aparecendo como uma sombra, não um reflexo deste conflito triangular primeiro da espécie humana, o pequeno Marcelo adia indefinidamente seu crescimento -- ao mesmo tempo em que apreende a ilusão de ter a mãe imaculada -- morta, desaparecida -- indefinidamente sob seu controle.
E assim o vulto da mãe ressurge das lembranças, em sonhos possivelmente despertados pela chegada de uma nova pajem contratada pelo pai (também "Anna", Milla Christie), e que corporifica a promessa de um duplo materno.
Existe no comportamento da segunda Anna uma simetria para com a mãe amada e impossível. Carinhosa, empenhada em trazê-lo de volta a vida, Anna projeta uma tentativa de maternidade que também é captada pelo pai (Antônio Fagundes). E este, no ímpeto hedonístico de boa parte dos Marcelos de Khouri, flerta, captura-a e acaba guardando-a para si.
Não à toa, é exatamente nesse instante, por ter-se chegado ao clímax do embate pai/filho -- insuportável para o menino -- que o filme acaba e seguem os créditos, sobrepostos a um fotograma negro com o olhar impenetrável da mãe.
Sem proferir palavra em suas aparições -- pontuadas pelo simbolismo do "Quinteto" de Schubert, expediente também utilizado em "Eros, O Deus do Amor" (1981) --, a mãe se apresenta como a pulsão originária da "paixão perdida": sua morte real/simbólica levam ao sofrimento do filho.
E um processo marcante de espelhamento para aquele não-ser ocorre entre Marcelinho e o imenso monolito, colocado no jardim. Marcelo observa-o como a si mesmo, e dali pululam suas alucinações. Há momentos em que a babá acaricia a pedra, naquela postura expressionista entre o humano e a natureza, que fôra aproveitada excepcionalmente em "As Deusas" (1972).
Tivesse Khouri em 1997 uma atriz do porte de Lillian Lemmertz, o ceticismo e a entrega de Anna para com os dois Marcelos aumentaria em ritmo vertiginoso, explicando melhor o quadrilátero completado pela primeira Anna. A situação, porém, não é manipulada a contento por Milla Christie, que acaba infantilizando demais o real interesse pelo bem-estar do menino.
Além disso, a personagem de Anna tem ainda a pesada missão dramatúrgica de invadir território inimigo, considerado até então confortável por Matilde, Berenice (Andréa Dietrich, filha de Marcelo, persona encontrada em "Eu" (1987) e Rute (Paula Burlamarqui, atual namorada).
E para completar a importância da segunda Anna -- a mãe utópica -- no enredo, será ela quem, a exemplo de "O Corpo Ardente" (1966), levará o garoto ao encontro do impulso sexual primitivo, simbolizado nos cavalos do estábulo -- atitude combatida por Matilde, que os encara como excessivamente perigosos.
Para aqueles que se surpreendem com as mudanças da paisagem urbana ao longo dos anos, cabe a comparação entre o passeio sessentista de "Noite Vazia" (1964), o oitentista de "Eros" -- em sua abertura triunfal -- e o de "Paixão Perdida", todos com um panorama sobre a Avenida Paulista.
Diferença importante em relação às décadas anteriores, a direção musical de "Paixão Perdida" ficou a cargo de Ruriá Duprat e Wilfred Khouri -- segunda geração dos primos Rogério Duprat e Walter Hugo. Montagem de Eder Mazzini, fotografia de Antonio Luis Mendes, produção executiva de Sergio Martinelli -- colaborador de Khouri nos últimos anos.
"Paixão Perdida" não é o melhor nem está entre os dez melhores filmes de Khouri, mas tem o mérito subversivo de oferecer um réquiem que fascina e deprime, quando cogitamos que dali por diante o ciclo estaria encerrado. Apesar de cinco anos o separassem da morte, não bastaram para retirar do papel projetos que estavam por vir e que teriam enriquecido o mosaico do maior cineasta brasileiro de todos os tempos.
O caso de Walter Hugo Khouri no cinema tupiniquim é exemplar nesse sentido, prato cheio para ataques furibundos, no mínimo por dois caminhos: o da obra audiovisual per se e o da estigmatização de um projeto estético-autoral, conduzida por um fanatismo que beira o religioso.
A análise isenta dos vinte e cinco filmes de Khouri deve considerar, a princípio, o percurso realizado pelo diretor e roteirista. Caminho percorrido não apenas em meio a intempéries mercadológicas -- que existiram, às vezes, e levaram a concessões para a viabilidade econômica dos projetos -- mas também por uma espinha dorsal que passou longe de ter sido construída por achismos ou chutes ao acaso.
Em "Paixão Perdida" (1998), derradeiro filme de WHK, Marcelo -- personagem-chave da trajetória khouriana -- aparece forjado tanto no papel de pai quanto no de filho, resultando daí a primeira ruptura do plot. Diz-se "ruptura" na medida em que essa mescla entre pai e filho é inviável pela própria tensão edipiana, seminal no roteiro.
Marcelinho (Fausto Carmona), garoto cercado de mimos, com uma trupe de serviçais na mansão da família -- dentre eles, a governanta Matilde (Zezeh Barbosa) -- está catatônico, entrevado numa cadeira de rodas, sem qualquer indício fisiológico para a doença. No passado, assistiu por mais de cinco horas ao cadáver da mãe (Anna, Maitê Proença) estirado na beira de estrada, depois de um acidente de carro.
Aqui chegamos a um tema recorrente na filmografia de Khouri, e que torna alguns de seus melhores esforços quase incompreensíveis sem alguma aproximação psicanalítica. O personagem Marcelo obsessivamente se encontra na busca do absoluto, da volta ao útero, da fusão com a mãe (o elemento feminino). Na impossibilidade deste retorno, ele ora se satisfaz com uma postura manipuladora em relação às mulheres -- caso de "Convite ao Prazer", "O Prisioneiro do Sexo" ou mesmo "As Amorosas" --, ora se frustra pateticamente -- caso de "O Último Êxtase". Finalmente em "Paixão Perdida" Marcelo opta pelo não-ser, pela anulação de sua existência, diante do mistério do desaparecimento da mãe/mulher provedora de todas as delícias da vida.
Não-Ser, ou estar catatônico, serve também como fuga do enfrentamento para com o pai, que afinal, é sempre o verdadeiro dono da mãe idealizada e erotizada pelo filho. Aparecendo como uma sombra, não um reflexo deste conflito triangular primeiro da espécie humana, o pequeno Marcelo adia indefinidamente seu crescimento -- ao mesmo tempo em que apreende a ilusão de ter a mãe imaculada -- morta, desaparecida -- indefinidamente sob seu controle.
E assim o vulto da mãe ressurge das lembranças, em sonhos possivelmente despertados pela chegada de uma nova pajem contratada pelo pai (também "Anna", Milla Christie), e que corporifica a promessa de um duplo materno.
Existe no comportamento da segunda Anna uma simetria para com a mãe amada e impossível. Carinhosa, empenhada em trazê-lo de volta a vida, Anna projeta uma tentativa de maternidade que também é captada pelo pai (Antônio Fagundes). E este, no ímpeto hedonístico de boa parte dos Marcelos de Khouri, flerta, captura-a e acaba guardando-a para si.
Não à toa, é exatamente nesse instante, por ter-se chegado ao clímax do embate pai/filho -- insuportável para o menino -- que o filme acaba e seguem os créditos, sobrepostos a um fotograma negro com o olhar impenetrável da mãe.
Sem proferir palavra em suas aparições -- pontuadas pelo simbolismo do "Quinteto" de Schubert, expediente também utilizado em "Eros, O Deus do Amor" (1981) --, a mãe se apresenta como a pulsão originária da "paixão perdida": sua morte real/simbólica levam ao sofrimento do filho.
E um processo marcante de espelhamento para aquele não-ser ocorre entre Marcelinho e o imenso monolito, colocado no jardim. Marcelo observa-o como a si mesmo, e dali pululam suas alucinações. Há momentos em que a babá acaricia a pedra, naquela postura expressionista entre o humano e a natureza, que fôra aproveitada excepcionalmente em "As Deusas" (1972).
Tivesse Khouri em 1997 uma atriz do porte de Lillian Lemmertz, o ceticismo e a entrega de Anna para com os dois Marcelos aumentaria em ritmo vertiginoso, explicando melhor o quadrilátero completado pela primeira Anna. A situação, porém, não é manipulada a contento por Milla Christie, que acaba infantilizando demais o real interesse pelo bem-estar do menino.
Além disso, a personagem de Anna tem ainda a pesada missão dramatúrgica de invadir território inimigo, considerado até então confortável por Matilde, Berenice (Andréa Dietrich, filha de Marcelo, persona encontrada em "Eu" (1987) e Rute (Paula Burlamarqui, atual namorada).
E para completar a importância da segunda Anna -- a mãe utópica -- no enredo, será ela quem, a exemplo de "O Corpo Ardente" (1966), levará o garoto ao encontro do impulso sexual primitivo, simbolizado nos cavalos do estábulo -- atitude combatida por Matilde, que os encara como excessivamente perigosos.
Para aqueles que se surpreendem com as mudanças da paisagem urbana ao longo dos anos, cabe a comparação entre o passeio sessentista de "Noite Vazia" (1964), o oitentista de "Eros" -- em sua abertura triunfal -- e o de "Paixão Perdida", todos com um panorama sobre a Avenida Paulista.
Diferença importante em relação às décadas anteriores, a direção musical de "Paixão Perdida" ficou a cargo de Ruriá Duprat e Wilfred Khouri -- segunda geração dos primos Rogério Duprat e Walter Hugo. Montagem de Eder Mazzini, fotografia de Antonio Luis Mendes, produção executiva de Sergio Martinelli -- colaborador de Khouri nos últimos anos.
"Paixão Perdida" não é o melhor nem está entre os dez melhores filmes de Khouri, mas tem o mérito subversivo de oferecer um réquiem que fascina e deprime, quando cogitamos que dali por diante o ciclo estaria encerrado. Apesar de cinco anos o separassem da morte, não bastaram para retirar do papel projetos que estavam por vir e que teriam enriquecido o mosaico do maior cineasta brasileiro de todos os tempos.
8 comentários:
Que satisfação em deparar com mais uma análise da grandiosa filmografia de Walter Hugo Khouri. E você Andréa nos brinda com uma leitura preciosa deste significativo filme. Concordo que não seja dos melhores do diretor, mas ainda assim o vejo como uma obra corajosa e digna como toda a filmografia de Khouri. Valeu!
o próximo ciclo do nosso cineclube será de filmes do Khouri. Se você é carioca, Andrea, vá lá segunda-feira, 5, às 19h, na PUC.
ainda não está 100% atualizado, mas pode visitar cinepucbrasil.blogspot.com
não é a primeira vez que, pesquisando no google sobre cineastas brasileiros, viemos parar no seu blog. parabéns pelos textos! pelo olhar!
abs,
Mario
Caramba, Andréa! Que texto, que puta texto! Paixão Perdida, apesar de ser um belo, intenso drama, não está entre os 10 melhores filmes do Khouri, mas esse texto eu coloco entre os 10 melhores que vc escreveu :) Beijão!
Márcio, escrever sobre o Khouri é provavelmente uma das coisas que mais me dá prazer no Estranho Encontro. A começar pelo título do site, o Khouri é uma referência constante, sem sombra de dúvidas. Um abraço!
Obrigada, Mário. Vcs estão com uma programação muito boa, valeu a iniciativa. Abraços
Oi, Sergio! O Paixão Perdida realmente pode não ser o maior filme do Khouri, mas está longe de ser uma bomba ou algo do tipo, como várias críticas tendenciosas insistem em dizer. Obrigada, um beijo!
Andréa, mais uma vez vc. nos brinda com um ótimo texto sobre esse filme/despedida do mestre Khouri, acho o final um dos mais amargos do cinema nacional, implacável com o Marcelo/Pai.
Beijos e até sábado q. vem!
Edu, o olhar da mãe e o paroxismo do final acabam sendo super emblemáticos mesmo, ainda mais sabendo que seria o último filme. Beijos, nos vemos no sábado!
"Paixão Proibida" não é o melhor nem está entre os dez melhores filmes de Khouri...
saiu errado
Consertei, anônimo. Obrigada pelo aviso.
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