segunda-feira, dezembro 26, 2005

Paixão na Praia


Em 1964, Alfredo Sternheim andava pelos corredores da Vera Cruz, como assistente de direção de Khouri em “Noite Vazia”. Sete anos depois, dirigiu seu longa de estréia, “Paixão na Praia”. Norma Bengell – a escorte de “Noite Vazia” – foi escolhida para estrelá-lo. Sternheim aproveitou o pano de fundo da beira-mar – visível em “A Ilha” (1963), também de Khouri, também auxiliado por ele –, voltando a essa ambientação em outro grande filme, “Pureza Proibida” (1974), produzido pela atriz Rossana Ghessa.

Claro que todo esforço criador conjuga detalhes que são pensados tanto consciente quanto inconscientemente. Se a memória avança sobre o plano da racionalidade, isto se dá porque algum vínculo, digamos afetivo, se estabeleceu entre o autor e seus referenciais. Desta forma, é prazeroso vermos em “Paixão na Praia” o talento diferenciado de Sternheim, que constrói em 100 minutos um monumento próprio, mas embebido vez por outra de caracteres khourianos.

“Paixão na Praia”, ao contrário do idilismo de “Pureza Proibida”, passa-se em um centro urbano, Rio de Janeiro, e conta com o fio-mestre do assalto à casa de um magnata. Débora (Bengell), de trinta e poucos anos, é a esposa do industrial atraído para São Paulo após crimes cometidos contra suas propriedades. Pedro (Adriano Reys) e Jairo (Ewerton de Castro) – autores dos atentados – invadem a mansão no Rio, supondo que estivesse vazia com a saída do milionário, mas deparam-se com Débora, infeliz como sempre, nos estertores da crise conjugal.

Pedro e Jairo prendem a empregada e o motorista na cozinha. Débora, entretanto, é a ponta solta: não sabem o que fazer com ela. Nisto encontramos a tensão e razão de ser de “Paixão na Praia”. O que seria um ato de violência puro e simples, vai se configurando num misto de culpa, revolta e amor, a partir do triângulo formado pela moça e pelos dois rapazes.

Jairo atende pelo vértice mais voraz do polígono. Bruto, imaturo, ex-empregado do ricaço, o tipo de garoto que gosta de qualificar de “burguezinhos” os sentimentos de Pedro, um gentleman apaixonado. Débora corresponde ao carinho de Pedro, apesar de repetir em diversas oportunidades o fato de ter uma filha, e do quanto isto é o essencial de seu casamento. Como a menina não está por perto, Débora e Pedro circulam, andam de mãos dadas, vão a festas de casais vizinhos, experimentam a fantasia da traição, que Débora histericamente repele mas histericamente abraça.

A chegada da Baronesa (Lola Brah), chefona do grupo, causa instabilidade no relacionamento. Ex-namorada de Pedro, funciona como válvula de escape para Jairo, furibundo, bem mais a fim de estuprar e pilhar do que conversar por longas horas, madrugada adentro. Os ataques da Baronesa deixam Débora e Pedro isolados – note-se que a esta altura Pedro não é mais o simples assaltante do início, e constrói com Débora um terceiro núcleo narrativo, diferenciado do núcleo familiar de Débora e do núcleo-base dos marginais.

A Baronesa ordena uma resolução para aquele estado de coisas. No que parece ser um ataque primitivo de ciúme, desta vez de Jairo por Pedro, Jairo fuzila o comparsa com uns tiros, pouco depois é alvejado pela chefa, que por sua vez leva um tiro de Jairo, agonizante. Os subversivos que acreditavam na revolução – aos poucos percebemos que não eram tão somente bandidos – morrem ao mesmo tempo, deixando como herança para Débora a coragem de desfazer o casamento.

“Paixão na Praia” opera com grande segurança em um roteiro – igualmente de Sternheim, também jornalista e escritor, autor do recente e obrigatório “Cinema da Boca - Dicionário de Diretores” – que não se contenta com conflitos rasteiros. Os bandidos não matam e vão embora. Pelo contrário, um deles se apaixona à primeira vista. Existe também algo de mágico na morte quase simultânea dos três foras-da-lei, assemelhando-se a uma cena das antigas matinês.

"Paixão na Praia" não se trata portanto de um panfleto político, nem de um romance triste, tampouco de um thriller policial nos moldes clássicos. É antes de tudo uma bela estréia, de um cineasta a ser notado, que na incerteza do ofício praticado concluiu filmes que merecem reavaliação justa e urgente.

2 comentários:

Anônimo disse...

A obra do Sternheim merece mesmo uma reavaliação. Dele conheço a versão tupiniquim do "Der Blaue Engel", O Anjo Loiro, e Lucíola, O Anjo Pecador, baseado em José de Alencar, dois belos filmes.
Estou procurando feito doido por esse dicionário e não acho em lugar nenhum. Você já comprou Andréa? É bom mesmo?

Andrea Ormond disse...

oi Sergio, da filmografia do Sternhein gosto mais do "Paixão na Praia" e de "Pureza Proibida", um dos meus filmes preferidos em toda a cinematografia nacional, qualquer dia escrevo sobre ele :) Sobre o Dicionário da Boca comentei lá no Kinocrazy :)