A cinematografia de Carlos Reichenbach requer um alerta permanente. Ao assistirmos a seus filmes cruzamos as fronteiras da Mira-Celi tropical, ilha em que Thomas Moore, Bakunin, Fuller, Godard e Reich reúnem-se para conversar. Têm, à sua direita, Luiz Sérgio Person – figura importante nos anos de formação do diretor –; à esquerda, A. P. Galante – produtor de muitos projetos. No meio de tudo, Reichenbach, cuja ânsia de fazer cinema é a peça de resistência de uma obra a ser ainda muito estudada.
Escolhi “Anjos do Arrabalde: As Professoras” (1987) para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em “Lilian M., Relatório Confidencial” (1975) e é retomada em “Garotas do ABC” (2003). Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de “Anjos...”: Dália (Betty Faria), Rosa (Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).
Dália e Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luiz Sérgio Person”. O “arrabalde”, a periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos constantes.
O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de “Filme Demência”), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.
A violência é, por outro lado, fonte de discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já no primeiros segundos, ao desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.
Há uma qualidade naturalista no filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de “Filme Demência”). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória do diretor.
Um simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques experimentalistas. O lúmpen tira foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral, ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da chegada da espiã-jornalista, em “A Ilha dos Prazeres Proibidos”.
O argumento original de “Anjos do Arrabalde” deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da baixa classe-média.
No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar desapercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na “Ilha....” há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em “Anjos...” concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.
A aluna lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio, corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.
Um aspecto a ser, por fim, sublinhado em “Anjos do Arrabalde” é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em “Anjos do Arrabalde” a tragédia dos personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.
Escolhi “Anjos do Arrabalde: As Professoras” (1987) para iniciar este trabalho de investigação, porque encontro nele uma ponte para a alma feminina, temática que já havia sido delineada anteriormente em “Lilian M., Relatório Confidencial” (1975) e é retomada em “Garotas do ABC” (2003). Entenda-se que o universo ficcional do criador não é dividido em fases estanques, as informações dialogam, e o critério que utilizo é meramente organizacional, de modo a facilitar a abordagem das personagens centrais de “Anjos...”: Dália (Betty Faria), Rosa (Clarisse Abujamra), Carmo (Irene Stefania) e Ana (Vanessa Alves).
Dália e Rosa são professoras do sugestivo “Colégio Estadual de 1o. Grau Luiz Sérgio Person”. O “arrabalde”, a periferia, em que vivem, está à margem da capital paulista, transformando-se em uma espécie de paróquia, na qual violência e primarismo são elementos constantes.
O primarismo é encontrado sob diversas formas. Nos trejeitos do advogado de porta-de-cadeia (Enio Gonçalves, Fausto de “Filme Demência”), casado com a ex-professora Carmo; nas grosserias do delegado malandro (Carlos Koppa, ator da Boca, hoje na “A Praça é Nossa”) fissurado por Rosa; nos comentários maliciosos a respeito do lesbianismo de Dália, que, afinal de contas, não deveria ficar fazendo essas coisas na frente das crianças, desacostumadas com tanta pouca vergonha.
A violência é, por outro lado, fonte de discussão do início ao fim da trama. Assistimos, já no primeiros segundos, ao desfecho de um estupro, em que a vítima (Ana), largada no matagal, desmaia, e em seguida surgem os créditos de abertura. Afonso (Ricardo Blat), irmão problemático de Dália, drogado, é currado por traficantes, aumentando ainda mais a condição de ente enigmático, zumbi que finalmente deságua o desespero na belíssima cena em que procura os seios da irmã, em clara nostalgia edipiana.
Há uma qualidade naturalista no filme – “eu me sinto bem na periferia, aqui eu sinto cheiro de gente”, diz Carmona (Emilio di Biasi, Mefisto de “Filme Demência”). Ela é combinada às conhecidas epifanias, marcantes na trajetória do diretor.
Um simples final de semana na praia, por exemplo, é retratado com toques experimentalistas. O lúmpen tira foto, come frango, faz o ritual de praxe, mas a montagem acentua a estupidez do circo. Carmona, amante casual de Dália, funciona aqui como o bufão embriagado que em momento de catarse esbraveja contra todos. Convém lembrar que a rubrica de “Week-end” é colocada na tela para marcar este capítulo da ida ao litoral, ensejando uma evidente subversão dos filmetes comerciais que vendem a imagem das famílias felizes em temporada de férias. Por um instante imaginei ter visto ali perto, na mesma rua, Roberto Miranda (alter-ego do diretor) antes da chegada da espiã-jornalista, em “A Ilha dos Prazeres Proibidos”.
O argumento original de “Anjos do Arrabalde” deve-se em parte ao que Reichenbach ouvia de Ligia, sua esposa – dentista da rede de saúde pública, aparece rapidamente em uma ponta no filme, como a dentista do colégio. A brutalidade demonstrada nas telas é, portanto, fruto de empirismo e apuramento estético, que transforma em obra de arte o cotidiano da baixa classe-média.
No universo autoral de Reinchenbach encontramos, ainda, uma nítida aproximação entre cinema e literatura, característica que tanto fascina quanto pode passar desapercebida para a grande massa de espectadores. Em “Ilha...” ela está mais do que evidente, páginas e páginas de diálogos são por vezes transcrições literais de autores cuidadosamente escolhidos. Se na “Ilha....” há menção a viagens anárquicas e libertadoras, em “Anjos...” concentro-me numa cena que revela, com extrema sutileza, o grau de culpa e morbidade de Rosa. À beira do suicídio, acabou de ser abandonada por Soares (José de Abreu) – esquizo diretor do colégio, com quem tivera um caso.
A aluna lê em voz alta com o livrinho em punho, Rosa repete o texto em solilóquio, corta lentamente os pulsos com uma navalha, é vista – alguns quadros depois – à beira de um precipício, numa aparição fantasmagórica. Ressalte-se que a tensão criada pelo autor nesse contexto é importantíssima, fazendo emergir símbolos claramente contraditórios, envolvendo punição, morte, vazio, de um lado; e, de outro, amor, infância e suposta doçura das “tias” em sala de aula.
Um aspecto a ser, por fim, sublinhado em “Anjos do Arrabalde” é o elenco. Vanessa Alves, em especial, como a psicótica manicure, abandonada pelo pai, violentada, perdida, traz uma dimensão extra ao filme. O olhar é distante, a fúria do corpo, diria João Gilberto Noll, torna-a uma possessa, caminhando pelas ruas estreitas do bairro. Em “Anjos do Arrabalde” a tragédia dos personagens não é contingenciada, ela é marca do filme, anda à solta. E nela reside a premissa de torná-los, indiscutivelmente, humanos.
7 comentários:
Esse filme foi o primeiro do grande Carlão que eu vi, e vi na televisão quando era adolescente. Fiquei muito chocado (no bom sentido), principalmente quando aquela personagem corta os pulsos, quando o irmão da personagem de Betty Faria é violentado no parque, tudo de uma força, mas ao mesmo tempo de um lirismo tão envolvente. Revi anos depois, com uma cabeça diferente, e fiquei mais passado ainda. Aí fui atrás de EXTREMOS DO PRAZER, LILIAN M. RELATÓRIO CONFIDENCIAL, AMOR PALAVRA PROSTITUTA.... grande Carlão, grande. Seu texto é tão sublime quanto o filme. Adorei, adorei. AH, muito obrigado pela indicação do livro, vou atrás. Um abraço.
Poxa, eu adoro o Carlão... Ele é um dos meus maiores ídolos. Quanto ao filme debaixo, muito polêmico!
Desculpe não comentar muito sobre os brazilian movies, mas eu sou meio zero a esquerda nisso!
fernando, tb tomei contato com o cinema do carlos na adolescência e tive o mesmo percurso, de querer ver mais e saber mais. Tinha vontade de ver os primeiros filmes dele, que nunca foram lançados em video e são de dificil acesso :)
maitê, com certeza tb o adoro, acho q há muito para a gente dizer e conhecer da obra dele...não tenho dúvidas de que em dez ou vinte anos sua cinematografia vai ser bem mais lembrada e comentada q agora :)
Gostei muito deste filme e quero revê-lo, mostra uma realidade nua e crua eu achei das pessoas que vivem à margem da sociedade, mas faz tempo que vi e pela resenha preciso assistir de novo pra comentar melhor. Carlão é demais, e ainda faltam filmes dele pra eu conferir! Fiquei curiosa quanto a este "Lilian M: Relatório Confidencial" pelo título e descrição.
Andréa!! É chover no molhado, mas PARABÉNS!! Excelente o seu texto, só faria um reparo, nos chamados filmes de alma feminina do gde Carlão, deve-se destacar com louvor o extraordinário "Amor, Palavra Prostituta", principalmente agora q. teve uma nova cópia com as cenas excluídas pela censura da época, o q. o torna mais feminino ainda.
Carol, o "lilian m." tem uma grande atriz, a Célia Olga Benvenutti, q desistiu da carreira muito jovem, uma pena...
oi Eduardo, q bom vc gostou do texto, fico honrada :) E obrigada pelas dicas q vc passou pra gente sobre o projeto do filme :) Bjos!
Andrea, embora eu esteja habituado a leitura dos seus textos na Revista Cinética, ainda não conhecia seu espaço. Formidável. Tomei emprestado seu texto do "Anjos do Arrabalde". Agradeço de antemão. Rodrigo
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