“Noite vazia”, uma das obras primas do cinema brasileiro, não é um filme acidental. Não se trata de dizermos aqui alguma coisa sobre a reunião de dois homens que levam prostitutas para uma garçonnière e, terminado o tempo protocolar, dirigem de volta para casa levando flores para as respeitosas esposas.
Não é bem assim. A princípio - em um dos flashes que espocam nos primeiros cinco minutos do filme - sabemos de relance que são 08:04 horas da noite. Gatos, evidentemente, já estão pardos, diria o boêmio Antônio Maria. Alguma coisa vai acontecer.
Mas para que acontecesse algo, já fôra necessário que o espectador se ambientasse no universo do diretor e roteirista, Walter Hugo Khouri. Em preto e branco, sob a música do maestro Rogério Duprat – sempre parceiro em projetos futuros – vemos rostos de bonecos de porcelana, quebrados, em série, enquanto a grafia sessentista enumera os créditos do filme. Dentre as curiosidades, registre-se que foi “realizado nos estúdios da Vera Cruz”, que Khouri arrendava, e conta com a participação incidental do bossanovista Zimbo Trio.
A seguir, mostra-se uma São Paulo que mais parece saída de antigos one-reel movies rodados na Times Square, NY. Letreiros luminosos, flashes, vida urbana. Neste instante surge o pai devotado, milionário (Luiz, interpretado por Mário Benvenuti), dando tapinhas nas costas do filhinho (Wilfred Khouri, filho do diretor) para que saia do carro e deixe-o dirigir.
Em alguma outra parte da cidade, um jovem depressivo (Nelson, interpretado pelo lindo Gabriele Tinti) deixa a namorada em meio a uma crise, no que parece ser a constante de uma doença que sempre lhe deixa assim, anestesiado diante do mundo. O amigo Luiz propõe-lhe o prazeroso esporte da caça noturna (“Você se esqueceu, rapaz? Não existe mulher séria neste mundo.”)
Passam por alguns lugares antes do encontro fatal. Quando este ocorre, surge o quadrilátero que eleva o filme e tira-o daquela banalidade de busca e sexo puro e simples, comuns aos filmes habitados em garçonnières: Os rapazes convidam as duas escortes (Odete Lara e Norma Bengell) de um senhor conhecido – idoso, impotente, ridicularizado – para o apartamento de Luiz.
Se a combustão entre as personalidades dos homens (o canalha assumido versus o deprimido encalacrado) era visível, o conflito aumenta na medida em que os caráteres opostos das duas (Odete, fria e assertiva; Bengell confusa e domesticada) interagem com os daqueles dois. Como num jogo matemático, cada qual relaciona-se com o que está ao lado e de cada combinação surgem resultados diferentes.
Luiz deseja o domínio sobre Odete, que humilha-o e pede por Nelson, que olhava para Bengell e esta para ele como se ambos se entendessem profundamente. Nelson contenta-se em ver Odete escolher o amigo bonitão para a primeira transa da noite, mas, terminada a rodada inicial de atividades com Bengell, pula da cama e comanda Nelson a ir ver a outra, deixando o caminho livre.
Em determinado momento, tem-se a impressão de que os quatro tornaram-se “amigos”? Algo próximo disso. Entendem-se e gostam – ainda que não verbalizem, no caso de Luiz e Odete – do fato de assistirem na sala de estar à projeção de Super-8 pornográficos.
É nesta hora que um certo “Darcy” Cardoso – creditado assim na abertura –, futuro David Cardoso, rei da pornochanchada dos anos 70, faz aos vinte e dois anos de idade uma pequena ponta, como o rapazinho que leva uma moça de família ao apartamento, supondo que estivesse vago.
Após a negativa da moça para que haja – nas palavras do personagem de Benvenuti – uma “união de esforços”, Luiz anuncia o pedido clássico, voyeurístico, do tête-à-tête lésbico. Odete, a dominante, apesar de refugar de início, devora sadisticamente a outra, que, fragilizada, chora. E muito.
Ora vejam, onde mais uma prostituta choraria, pelos motivos que chora, após um pedido desses, senão em um filme de Khouri? Porque a situação a faz lembrar, em flashback, não de uma infância agreste, flagelada – como típico nos filmes brasileiros rodados na época, 1964 – mas de um tempo difuso, não esclarecido. Quando percebe que fora do apartamento a chuva castiga a varanda, a menina encontra-se com a prostituta do tempo presente, vai até lá e estaca, deixando-se molhar. Os outros três acompanham.
Recompondo-se, a seguir, já na banheira, a instabilidade da personagem de Bengell é percebida por Tinti – “Você ficou feliz tão depressa” – pois, afinal, não sentem o mesmo desespero e se entendem profundamente? No outro cômodo a discussão permanece entre Luiz e Odete, que se trai afirmando “bom, ninguém está pedindo para ir embora”. Pois é, os quatro gostam de tudo o que está acontecendo.
O empecilho, porém, é que o final era conhecido. A noite não é única, é vazia. A ela seguirão outras. Transformados ou não, aturdidos ou fingindo desprezo pelo que aconteceu, tudo volta ao início.
Nelson afasta-se de Bengell, no dia seguinte, na cama em que dormiam abraçados após terem, visivelmente, feito amor. Luiz religa a chave do carro, deixando cada qual no local de origem e refazendo propostas de novas saídas ao outro, que sempre hesita mas sempre aceita. Odete olha, impassível, para Bengell, já no elevador do prédio em que moram juntas, subindo com os pacotes de compras para o café da manhã. Bengell sorri nostálgica e entorpecida, para o nada, mas quando se lembrar de que a rotina se impôs, contrairá o rosto, em um último close.
Não é bem assim. A princípio - em um dos flashes que espocam nos primeiros cinco minutos do filme - sabemos de relance que são 08:04 horas da noite. Gatos, evidentemente, já estão pardos, diria o boêmio Antônio Maria. Alguma coisa vai acontecer.
Mas para que acontecesse algo, já fôra necessário que o espectador se ambientasse no universo do diretor e roteirista, Walter Hugo Khouri. Em preto e branco, sob a música do maestro Rogério Duprat – sempre parceiro em projetos futuros – vemos rostos de bonecos de porcelana, quebrados, em série, enquanto a grafia sessentista enumera os créditos do filme. Dentre as curiosidades, registre-se que foi “realizado nos estúdios da Vera Cruz”, que Khouri arrendava, e conta com a participação incidental do bossanovista Zimbo Trio.
A seguir, mostra-se uma São Paulo que mais parece saída de antigos one-reel movies rodados na Times Square, NY. Letreiros luminosos, flashes, vida urbana. Neste instante surge o pai devotado, milionário (Luiz, interpretado por Mário Benvenuti), dando tapinhas nas costas do filhinho (Wilfred Khouri, filho do diretor) para que saia do carro e deixe-o dirigir.
Em alguma outra parte da cidade, um jovem depressivo (Nelson, interpretado pelo lindo Gabriele Tinti) deixa a namorada em meio a uma crise, no que parece ser a constante de uma doença que sempre lhe deixa assim, anestesiado diante do mundo. O amigo Luiz propõe-lhe o prazeroso esporte da caça noturna (“Você se esqueceu, rapaz? Não existe mulher séria neste mundo.”)
Passam por alguns lugares antes do encontro fatal. Quando este ocorre, surge o quadrilátero que eleva o filme e tira-o daquela banalidade de busca e sexo puro e simples, comuns aos filmes habitados em garçonnières: Os rapazes convidam as duas escortes (Odete Lara e Norma Bengell) de um senhor conhecido – idoso, impotente, ridicularizado – para o apartamento de Luiz.
Se a combustão entre as personalidades dos homens (o canalha assumido versus o deprimido encalacrado) era visível, o conflito aumenta na medida em que os caráteres opostos das duas (Odete, fria e assertiva; Bengell confusa e domesticada) interagem com os daqueles dois. Como num jogo matemático, cada qual relaciona-se com o que está ao lado e de cada combinação surgem resultados diferentes.
Luiz deseja o domínio sobre Odete, que humilha-o e pede por Nelson, que olhava para Bengell e esta para ele como se ambos se entendessem profundamente. Nelson contenta-se em ver Odete escolher o amigo bonitão para a primeira transa da noite, mas, terminada a rodada inicial de atividades com Bengell, pula da cama e comanda Nelson a ir ver a outra, deixando o caminho livre.
Em determinado momento, tem-se a impressão de que os quatro tornaram-se “amigos”? Algo próximo disso. Entendem-se e gostam – ainda que não verbalizem, no caso de Luiz e Odete – do fato de assistirem na sala de estar à projeção de Super-8 pornográficos.
É nesta hora que um certo “Darcy” Cardoso – creditado assim na abertura –, futuro David Cardoso, rei da pornochanchada dos anos 70, faz aos vinte e dois anos de idade uma pequena ponta, como o rapazinho que leva uma moça de família ao apartamento, supondo que estivesse vago.
Após a negativa da moça para que haja – nas palavras do personagem de Benvenuti – uma “união de esforços”, Luiz anuncia o pedido clássico, voyeurístico, do tête-à-tête lésbico. Odete, a dominante, apesar de refugar de início, devora sadisticamente a outra, que, fragilizada, chora. E muito.
Ora vejam, onde mais uma prostituta choraria, pelos motivos que chora, após um pedido desses, senão em um filme de Khouri? Porque a situação a faz lembrar, em flashback, não de uma infância agreste, flagelada – como típico nos filmes brasileiros rodados na época, 1964 – mas de um tempo difuso, não esclarecido. Quando percebe que fora do apartamento a chuva castiga a varanda, a menina encontra-se com a prostituta do tempo presente, vai até lá e estaca, deixando-se molhar. Os outros três acompanham.
Recompondo-se, a seguir, já na banheira, a instabilidade da personagem de Bengell é percebida por Tinti – “Você ficou feliz tão depressa” – pois, afinal, não sentem o mesmo desespero e se entendem profundamente? No outro cômodo a discussão permanece entre Luiz e Odete, que se trai afirmando “bom, ninguém está pedindo para ir embora”. Pois é, os quatro gostam de tudo o que está acontecendo.
O empecilho, porém, é que o final era conhecido. A noite não é única, é vazia. A ela seguirão outras. Transformados ou não, aturdidos ou fingindo desprezo pelo que aconteceu, tudo volta ao início.
Nelson afasta-se de Bengell, no dia seguinte, na cama em que dormiam abraçados após terem, visivelmente, feito amor. Luiz religa a chave do carro, deixando cada qual no local de origem e refazendo propostas de novas saídas ao outro, que sempre hesita mas sempre aceita. Odete olha, impassível, para Bengell, já no elevador do prédio em que moram juntas, subindo com os pacotes de compras para o café da manhã. Bengell sorri nostálgica e entorpecida, para o nada, mas quando se lembrar de que a rotina se impôs, contrairá o rosto, em um último close.
7 comentários:
Descobri seu blog no Reduto do Comodoro, não sei bem pq., talvez sua plataforma seja MAC, mas o fato é q. aonde rola acento, o texto se torna incompreensível no meu PC. Ainda assim, vc.me parece uma "devota" de Khouri, bem, muito modestamente, eu a convido a ver um curta entre 04 q. fiz, num projeto chamado SONS, e que chama-se "Lourdes, um conto gótico de terror", o convite se dá pq. o curta fala de ascese, um tema khouriano e é dedicado à ele entre outros. Caso interesse, maiores detalhes no meu blog, o evento será sexta (16/09) as 20hs.
O que mais me impressionou neste genial filme de Khoury foi o tratamento fotográfico dos interiores, das fachadas dos prédios e de algumas cenas externas que mostram uma São Paulo que há muito já não existe mais. A fotografia em preto e branco me remete à decadência burguesa apreendida do mestre Visconti. Um grande momento do nosso cinema que se fixa como um drama de temática existencialista exemplar. Quando estava lendo o blog torci muito para encontrar Noite vazia e fico feliz que tenha encontrado. Quero muito rever este filme... aguardo um DVD.
um filme inesquecivel pois so khoury para mesclar no filme um tema tao discutido a depressao atraves do personagem nelson .mostra com sensibilidade o que e uma noite vazia a busca por nada .mario benvenutti tambem ta fantastico a interpretando bem o rico frustado norma e odete dispenssa comentarios maravilhosas um filme pra ser visto e revisto uma obra prima do nosso cinema
Filme fantástico, e impressionante, não só pelo tratamento visual rebuscado e irretocavel, mas pelo tratamento dado ao tema central. Só senti falta da Andréia mencionar a relação absurda entre os dois personagens masculinos, é obvio qe se trata de uma relação ambígua, até mesmo gay, como sugere o filme. A cena final no apartamento onde Luiz [Mário Benvenuti] vê uma revista com fotos de John Kennedy, e a imagem vai detalhando traços físicos do ex-presidente americano, e ao mesmo tempo ele observa o amigo na cama ainda dormindo, mata totalmente a charada. Uma obra-prima, um filme sutil, mas ao mesmo tempo um soco no estômago dos desavisados.
Acabei de rever "Noite Vazia"...eu tinha assistido a bastante tempo...que filme lindo que é...fiquei emocionado com a cena final com a Normal Benguel de preto dentro do elevador levando uma baguete depois da tal noite vazia, ela dá um sorriso meio de tristeza, desalento e ate posso dizer de esperança, me lembrou a personagem de Fellini, Cabíria, a prostituta vivida por Giuleta Massina dá um sorriso assim no final de "As noites de Cabíria". A cena que a Odete Lara fala que é vagabunda mesmo também e fantástica, tb me emocionou, aquela imagem da Norma Benguel com os seios desnudos de baixo da chuva....muito belo esse filme, linda análise.
Noite Vazia termina com a câmera explorando uma árvore imensa.
No entanto "As amorosas" começa com Paulo José ao lado de uma árvore que a câmera explora do mesmo modo. Parece que Khouri tinha uma certa fixação nisto.
Quando inicia a cena da chuva no apto de Luiz , vem à mente de Mara uma recordação de alguém a preparar comida num fogão à lenha enquanto a chuva fustiga a janela de uma casa antiga. Um menino aparece nesta cena. Seria alguma recordação de infância , de um tempo em que ela seria ainda pura ?
Aliás o banho coletivo de chuva seria uma tentativa de limpar tanta imundice ?
Interessante também a inclusão de imagens contidas numa revista de época : o projeto Mercury que em 1964 já fixava a lua como meta e cenas da morte de Kennedy. É como se fosse para dar o filme.
Tenho uma cópia cujas as cenas noturnas carecem de mais luminosidade e contraste de modo que mal posso visualizar com detalhes as tomadas feitas no centro de São Paulo , Avenida São Luiz e outras locações.
Talvez Khoury não dispusesse de películas com emulsão mais sensível à pouca luminosidade noturna.
Em várias cenas a tonalidade de cinza varia durante vários quadros , regressando em seguida à tonalidade predominante do filme.
Desconheço se Noite vazia foi recuperado digitalmente , mas pela importância histórica deveria.
favor desconsiderar meu post anterior
Noite Vazia termina com a câmera explorando uma árvore imensa.
No entanto "As amorosas" começa com Paulo José ao lado de uma árvore que a câmera explora do mesmo modo. Parece que Khouri tinha uma certa fixação nisto.
Quando inicia a cena da chuva no apto de Luiz , vem à mente de Mara uma recordação de alguém a preparar comida num fogão à lenha enquanto a chuva fustiga a janela de uma casa antiga. Um menino aparece nesta cena. Seria alguma recordação de infância , de um tempo em que ela seria ainda pura ?
Aliás o banho coletivo de chuva seria uma tentativa de limpar tanta imundice ?
Interessante também a inclusão de imagens contidas numa revista de época : o projeto Mercury que em 1964 já fixava a lua como meta e cenas da morte de Kennedy. É como se fosse para datar o filme.
Tenho uma cópia cujas as cenas noturnas carecem de mais luminosidade e contraste de modo que mal posso visualizar com detalhes as tomadas feitas no centro de São Paulo , Avenida São Luiz e outras locações.
Talvez Khoury não dispusesse de películas com emulsão mais sensível à pouca luminosidade noturna.
Em várias cenas a tonalidade de cinza varia durante vários quadros , regressando em seguida à tonalidade predominante do filme.
Desconheço se Noite vazia foi recuperado digitalmente , mas pela importância histórica deveria.
Aliás desconheço também se Khouri teve problemas com a censura da época, cuja moraleca burguesa cristã transformava em tabu temáticas mais adultas.
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