A cabra vadia morgou longos anos antes de “Vestido de Noiva” ser adaptado para o cinema. Em 1943 o santo mamífero ainda não havia nascido e, lamentavelmente, perdeu a estréia da peça de Nelson Rodrigues, no Teatro Municipal do Rio.
Quando aparece na Tv Globo em 1966 – depois de uma breve passagem pelo “Correio da Manhã” –, o bicho já demonstrava uma sabedoria terrível.
Concentrada, comendo capim, era companheira de Nelson, que então levava entrevistados para os estúdios da Globo. “A cabra não trai nem sai por aí fazendo inconfidências”, gostava de dizer. Tamanha a bizarrice da cena, acabou se tornando uma das suas criações mais esotéricas.
Se a colocássemos diante do longa-metragem “Vestido de Noiva” (2006), produzido e dirigido por Joffre Rodrigues – filho do dramaturgo –, o que ela diria? Entre o “béé” triunfal ou o silêncio absoluto – julgamento igual ao dedo de Pilatos –, a caprina urge por uma chance. É a consciência de todos os tempos.
Ela sabe que existe uma razão de ser, nunca contestada por Joffre, para a realização do filme: “Vestido de Noiva” foi adaptado a pedido do pai. Joffre tentou ao máximo reduzir as interferências na obra, captou dinheiro por décadas, negou passar o bastão para outros diretores, saiu detrás das câmeras e ele próprio comandou o solitário barco. Único filme como diretor. Completada a missão, deitou o sono escuro, faleceu em 2010, mesma idade do pai ao morrer, 68.
Engana-se quem pensa que a família se limitou ao jornalismo, à literatura, ou mesmo ao futebol – neste caso, principalmente por conta da odisséia de Mário Filho. A prima de Joffre, Stella Rodrigues, era filha de Jece Valadão e bateu expediente na Magnus Filmes. O tio Milton dirigiu “Somos Dois” (1950), dando-lhe uma ponta como ator.
Joffre não era um beau trágico como o outro tio, Roberto, nem se pretendeu ao topo da criação – algo que caía bem para Nelson. “Vestido de Noiva” é uma homenagem, uma vocação, uma elegia a algo maior e que o levou no fim da vida, como um encerramento.
O roteiro resolve de maneira satisfatória os três planos (realidade, alucinação e memória), que a peça sugere visualmente em três andares. Para quem vê os atores in loco no teatro, a charada é explicada pela cenografia. Para quem vê no cinema, a montagem vai e volta da mesa de cirurgia em que Alaíde (Simone Spoladore) está inerte, depois de atropelada por um carro.
O bêtize com Madame Clessy (Marília Pera), as taras de subúrbio e de gente fina vão se misturando nas confusões de Alaíde (a narradora). Isto inclui a bestial competição com a irmã (Lúcia, Letícia Sabatella).
Não é o caso de descermos a fundo e dissecarmos as idéias que existem na peça. Basta dizer que apesar de 1905 (época de Clessy) e 1943 (época de Alaíde) nem sempre ficarem marcados para a platéia de 2005, existe pelo menos o diário de Clessy. Ele ajuda a montar o quebra-cabeças de Alaíde: a garota leu, se encantou, entrou em delírio com o passado que não conheceu e juntou as figuras da família e da repressão sexual, dançando miudinho.
“Um marido que dá garantias de vida está liquidado. Quero ser livre, meu filho, livre!” Enquanto isso, a mãe abana as axilas, a família se senta de costas para o altar, o noivo limpa as unhas. Um naturalismo que os romances de Nelson deixariam cada vez mais azedo, urbano e cínico.
Como a base de “Vestido de Noiva” está naquele convescote aranhesco e de feminilidade, o noivo (Pedro, Marcos Winter) dá um alô hora ou outra, mas fica no contraponto. Ele reage, não começa nada. Às vezes a atividade entre as meninas é mais explícita (no bordel de Clessy), às vezes nem tanto (Alaíde, Clessy, Lúcia), mas a escolha do time principal segura o bochicho.
Na prática, Joffre usou o “roteiro” prévio da peça, deitou e rolou, sem a audácia de estabelecer um ritmo diferente. Talvez tivesse sido melhor acabar o filme de um modo mais seco e que não soasse tão explicativo. É preciso que se diga, porém, que encontramos achados visuais, como os olhos de Lúcia à moda de Theda Bara, chorando no enterro com cara de siciliano. Ainda que o texto de Nelson se imponha tremendamente – e exatamente por esta conseqüência –, a cabra vadia rumina qualquer coisa de doce, embalada no colo nostálgico de Otto Lara Resende, adormecidos na quinta nuvem.
Quando aparece na Tv Globo em 1966 – depois de uma breve passagem pelo “Correio da Manhã” –, o bicho já demonstrava uma sabedoria terrível.
Concentrada, comendo capim, era companheira de Nelson, que então levava entrevistados para os estúdios da Globo. “A cabra não trai nem sai por aí fazendo inconfidências”, gostava de dizer. Tamanha a bizarrice da cena, acabou se tornando uma das suas criações mais esotéricas.
Se a colocássemos diante do longa-metragem “Vestido de Noiva” (2006), produzido e dirigido por Joffre Rodrigues – filho do dramaturgo –, o que ela diria? Entre o “béé” triunfal ou o silêncio absoluto – julgamento igual ao dedo de Pilatos –, a caprina urge por uma chance. É a consciência de todos os tempos.
Ela sabe que existe uma razão de ser, nunca contestada por Joffre, para a realização do filme: “Vestido de Noiva” foi adaptado a pedido do pai. Joffre tentou ao máximo reduzir as interferências na obra, captou dinheiro por décadas, negou passar o bastão para outros diretores, saiu detrás das câmeras e ele próprio comandou o solitário barco. Único filme como diretor. Completada a missão, deitou o sono escuro, faleceu em 2010, mesma idade do pai ao morrer, 68.
Engana-se quem pensa que a família se limitou ao jornalismo, à literatura, ou mesmo ao futebol – neste caso, principalmente por conta da odisséia de Mário Filho. A prima de Joffre, Stella Rodrigues, era filha de Jece Valadão e bateu expediente na Magnus Filmes. O tio Milton dirigiu “Somos Dois” (1950), dando-lhe uma ponta como ator.
Joffre não era um beau trágico como o outro tio, Roberto, nem se pretendeu ao topo da criação – algo que caía bem para Nelson. “Vestido de Noiva” é uma homenagem, uma vocação, uma elegia a algo maior e que o levou no fim da vida, como um encerramento.
O roteiro resolve de maneira satisfatória os três planos (realidade, alucinação e memória), que a peça sugere visualmente em três andares. Para quem vê os atores in loco no teatro, a charada é explicada pela cenografia. Para quem vê no cinema, a montagem vai e volta da mesa de cirurgia em que Alaíde (Simone Spoladore) está inerte, depois de atropelada por um carro.
O bêtize com Madame Clessy (Marília Pera), as taras de subúrbio e de gente fina vão se misturando nas confusões de Alaíde (a narradora). Isto inclui a bestial competição com a irmã (Lúcia, Letícia Sabatella).
Não é o caso de descermos a fundo e dissecarmos as idéias que existem na peça. Basta dizer que apesar de 1905 (época de Clessy) e 1943 (época de Alaíde) nem sempre ficarem marcados para a platéia de 2005, existe pelo menos o diário de Clessy. Ele ajuda a montar o quebra-cabeças de Alaíde: a garota leu, se encantou, entrou em delírio com o passado que não conheceu e juntou as figuras da família e da repressão sexual, dançando miudinho.
“Um marido que dá garantias de vida está liquidado. Quero ser livre, meu filho, livre!” Enquanto isso, a mãe abana as axilas, a família se senta de costas para o altar, o noivo limpa as unhas. Um naturalismo que os romances de Nelson deixariam cada vez mais azedo, urbano e cínico.
Como a base de “Vestido de Noiva” está naquele convescote aranhesco e de feminilidade, o noivo (Pedro, Marcos Winter) dá um alô hora ou outra, mas fica no contraponto. Ele reage, não começa nada. Às vezes a atividade entre as meninas é mais explícita (no bordel de Clessy), às vezes nem tanto (Alaíde, Clessy, Lúcia), mas a escolha do time principal segura o bochicho.
Na prática, Joffre usou o “roteiro” prévio da peça, deitou e rolou, sem a audácia de estabelecer um ritmo diferente. Talvez tivesse sido melhor acabar o filme de um modo mais seco e que não soasse tão explicativo. É preciso que se diga, porém, que encontramos achados visuais, como os olhos de Lúcia à moda de Theda Bara, chorando no enterro com cara de siciliano. Ainda que o texto de Nelson se imponha tremendamente – e exatamente por esta conseqüência –, a cabra vadia rumina qualquer coisa de doce, embalada no colo nostálgico de Otto Lara Resende, adormecidos na quinta nuvem.
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