O bom filho à casa torna: Ody Fraga deu um tchauzinho para a estação da Luz em São Paulo, apanhou as malas e embicou para o litoral de Santa Catarina. Volta ao estado de origem com “A Fêmea do Mar” (1981).
Roteirista, consultor, pornógrafo, ateu, ex-seminarista. O homem que recomendava Nietzsche às atrizes e mantinha uma biblioteca de mais de 3 mil títulos era capaz de descer do pedestal quando interessava. Nessas horas distribuía caretas, palavrões, castigando nos cigarros Minister.
Antes de gravar o subkhouriano “Mulher Tentação” (1982), Ody tentou em “A Fêmea do Mar” algo próximo de John Ford. Planos abertos, ventos, trilha sonora grandiosa, Grieg, Beethoven. Acompanhamos uma família presa, no tempo e no espaço. Jeruza (Neide Ribeiro) mora na beira da praia, leva artesanatos para uma lojinha distante, no centro da cidade.
Os rebentos, Cassandra (Aldine Müller) e Ulisses (Calu Caldine), têm um lance esquisitíssimo rolando solto. Uma espécie de versão moderna de “Totem e Tabu”, deixando claro o quanto é prejudicial a falta de socialização com outros amiguinhos.
O pai/esposo sumiu. Pegou um barco, evaporou-se. O desaparecimento de Santiago é a origem da neurose. Tudo o que ele tocou parece estar destruído. Ulisses não sabe ser homem. Cassandra não tem com quem desabrochar. Jeruza esqueceu de ser mulher. Anda de preto, coberta de panos.
Eis que um forasteiro aparece e traz a boa nova: Santiago morreu. Não adianta esperarem, não volta mais. E assim os mitológicos Ulisses e Cassandra começam uma odisséia, à qual se junta Jeruza. Querem acabar com o bode brabo que deprimia o casebre.
Começam a se animar através do sexo. Bastante sexo. Cheio de apetite, lambendo os beiços, Roque (Jean Garrett) passa o rodo, um anjo exterminador à base do Kama Sutra.
Os leitores não se enganaram com o nome do ator que interpreta Roque: sim, é ele, Jean Garrett. O mesmo que dirigiu algumas das obras-primas mais trágicas e negligenciadas do cinema brasileiro. Vira e mexe, a entidade de Garrett baixa aqui, nas páginas do Estranho Encontro.
Apesar de os dotes físicos de Garrett não encantarem o público tanto quanto a inteligência de diretor, Garrett cumpre bem o papel. O restante dos atores não consegue grandes vôos, fato piorado pelos dubladores. Além disso, problemas na montagem acabam com tomadas que deveriam ter uma importância brutal. Roque diz “seu pai está morto, meu rapaz”. Uma vinheta surge em seguida, Cassandra olha para baixo (deve estar triste) e pouco depois Roque agarra alguém.
Roque é, de fato, o eixo da trama. Guarda um segredo tremendo, uma grande sacada sobre a inveja masculina. Ody – também roteirista do filme – elabora o personagem com habilidade extrema. O marinheiro vira um pária, que se finge de bom moço mas cobiça a família do homem que matou. O tema da inveja entre marmanjos assusta. Bem mais comum falar de mulheres em fúria, lutando no gel, puxando cabelo ou fazendo caras e bocas umas para as outras.
Por outro lado, Ody peca terrivelmente ao colocar na boca de Roque alguns dos jargões da liberdade sexual. O sexo que pratica destrói, ao invés de construir, o que que pode soar retrógrado. Roque incentiva o incesto de Ulisses e Cassandra, transa com Jeruza, cata Cassandra, desestabiliza Ulisses. Ao perceber o ódio de Roque, Jeruza pára tudo. Triste, fechada, interditada. Fiel ao marido – que agora sabe estar morto –, e impossibilitada de gozar com qualquer outro. O moralismo vira norma de conduta, reação.
“A Fêmea do Mar” recebeu inicialmente o título de “Jeruza do Mar”, a intrépide matriarca do filme. Pressões de Antonio Polo Galante rebatizaram o projeto. Atitude comum, Ody Fraga já havia se acostumado. Até porque a relação com Galante sempre foi bastante pitoresca, cheia de benefícios mútuos. Em 1967, Galante descobre os latões de “Vidas Nuas”, junta pedaços da película, enxerta outros e quatro anos depois de começada por Ody, lança a fita com estardalhaço. Começam uma nova fase na Boca do Lixo, em que Ody Fraga lentamente se consagra como um dos mártires, fiel defensor.
Roteirista, consultor, pornógrafo, ateu, ex-seminarista. O homem que recomendava Nietzsche às atrizes e mantinha uma biblioteca de mais de 3 mil títulos era capaz de descer do pedestal quando interessava. Nessas horas distribuía caretas, palavrões, castigando nos cigarros Minister.
Antes de gravar o subkhouriano “Mulher Tentação” (1982), Ody tentou em “A Fêmea do Mar” algo próximo de John Ford. Planos abertos, ventos, trilha sonora grandiosa, Grieg, Beethoven. Acompanhamos uma família presa, no tempo e no espaço. Jeruza (Neide Ribeiro) mora na beira da praia, leva artesanatos para uma lojinha distante, no centro da cidade.
Os rebentos, Cassandra (Aldine Müller) e Ulisses (Calu Caldine), têm um lance esquisitíssimo rolando solto. Uma espécie de versão moderna de “Totem e Tabu”, deixando claro o quanto é prejudicial a falta de socialização com outros amiguinhos.
O pai/esposo sumiu. Pegou um barco, evaporou-se. O desaparecimento de Santiago é a origem da neurose. Tudo o que ele tocou parece estar destruído. Ulisses não sabe ser homem. Cassandra não tem com quem desabrochar. Jeruza esqueceu de ser mulher. Anda de preto, coberta de panos.
Eis que um forasteiro aparece e traz a boa nova: Santiago morreu. Não adianta esperarem, não volta mais. E assim os mitológicos Ulisses e Cassandra começam uma odisséia, à qual se junta Jeruza. Querem acabar com o bode brabo que deprimia o casebre.
Começam a se animar através do sexo. Bastante sexo. Cheio de apetite, lambendo os beiços, Roque (Jean Garrett) passa o rodo, um anjo exterminador à base do Kama Sutra.
Os leitores não se enganaram com o nome do ator que interpreta Roque: sim, é ele, Jean Garrett. O mesmo que dirigiu algumas das obras-primas mais trágicas e negligenciadas do cinema brasileiro. Vira e mexe, a entidade de Garrett baixa aqui, nas páginas do Estranho Encontro.
Apesar de os dotes físicos de Garrett não encantarem o público tanto quanto a inteligência de diretor, Garrett cumpre bem o papel. O restante dos atores não consegue grandes vôos, fato piorado pelos dubladores. Além disso, problemas na montagem acabam com tomadas que deveriam ter uma importância brutal. Roque diz “seu pai está morto, meu rapaz”. Uma vinheta surge em seguida, Cassandra olha para baixo (deve estar triste) e pouco depois Roque agarra alguém.
Roque é, de fato, o eixo da trama. Guarda um segredo tremendo, uma grande sacada sobre a inveja masculina. Ody – também roteirista do filme – elabora o personagem com habilidade extrema. O marinheiro vira um pária, que se finge de bom moço mas cobiça a família do homem que matou. O tema da inveja entre marmanjos assusta. Bem mais comum falar de mulheres em fúria, lutando no gel, puxando cabelo ou fazendo caras e bocas umas para as outras.
Por outro lado, Ody peca terrivelmente ao colocar na boca de Roque alguns dos jargões da liberdade sexual. O sexo que pratica destrói, ao invés de construir, o que que pode soar retrógrado. Roque incentiva o incesto de Ulisses e Cassandra, transa com Jeruza, cata Cassandra, desestabiliza Ulisses. Ao perceber o ódio de Roque, Jeruza pára tudo. Triste, fechada, interditada. Fiel ao marido – que agora sabe estar morto –, e impossibilitada de gozar com qualquer outro. O moralismo vira norma de conduta, reação.
“A Fêmea do Mar” recebeu inicialmente o título de “Jeruza do Mar”, a intrépide matriarca do filme. Pressões de Antonio Polo Galante rebatizaram o projeto. Atitude comum, Ody Fraga já havia se acostumado. Até porque a relação com Galante sempre foi bastante pitoresca, cheia de benefícios mútuos. Em 1967, Galante descobre os latões de “Vidas Nuas”, junta pedaços da película, enxerta outros e quatro anos depois de começada por Ody, lança a fita com estardalhaço. Começam uma nova fase na Boca do Lixo, em que Ody Fraga lentamente se consagra como um dos mártires, fiel defensor.
17 comentários:
oba, semana começando e post novo do "estranho encontro" e logo sobre o mestre fraga :)
@donniedarko73
Andrea, vi e gostei do filme. Ainda bem que li aqui, pois sempre achei que o filme era do próprio Garret (falhas de percepção que mantêm a gente em equívoco por anos). Agora, acho que a inspiração foi em Pasolini, no clássico Teorema (filme que nunca consegui assistir até o fim). Podia ser um "Teorema Tropical", como a versão de Emanuele com a Monique Lafond.
do seu fã de sempre
Daniel P
Muito legal a crítica! "A Fêmea do Mar" é um dos melhores filmes do Ody. Vi essa fita pela primeira vez em VHS há alguns anos atrás. Aldine Müller e Neide Ribeiro estão maravilhosas.
Matheus Trunk
www.violaosardinhaepao.blogspot.com
Meu preferido do Ody, disparado. Escrevi sobre ele há algum tempo:
http://canalfofao.blogspot.com/2008/11/fmea-do-mar-1981.html
Gostei bem mais que você do filme, Andrea, mas nossas análises não deixam de ser parecidas. Um abraço.
Isso não é uma crítca. É crônica, é poesia. Parabéns, Andrea.
adoro seu blog.
mas a música da trilha...não seria GrieG em vez de Griek? obrigada e bom dia
Fábio, uma segunda-feira jeitosa, logo com "A Fêmea do Mar"!
Obrigada, Daniel. Gostei do "Teorema Tropical" rs O Pasolini pode até ter inspirado o Ody, mas o problema é que depois da passagem do forasteiro, a família do "A Fêmea do Mar" parece a mesma. O Ody não deixou clara a tensão ou a ruptura posteriores (marcantes no "Teorema"). A Jeruza fica sentada na pedra como antes, os filhos fazem artesanato.
Matheus, gosto do "A Fêmea do Mar" com algumas ressalvas, tem uns lados aí que não agradam tanto. A Aldine está linda no "Os Imorais", do Geraldo Vietri.
Fofão, de fato você ficou bem mais estusiasmado rs O discurso da liberdade sexual decepciona bastante, a maneira com que é colocado. Ainda mais por vir do Ody, que tinha uma visão mais cítrica do mundo.
Obrigada, Rodrigo. Tento refletir sobre o cinema popular, escrevendo para fugir do óbvio.
Obrigada, Anônimo. Passou o erro de digitação, já consertei. Por curiosidade, é o Amanhecer do "Peer Gynt", também usado no famoso comercial da Philco Hitachi. O passarinho clicando no botão do controle remoto: http://www.youtube.com/watch?v=Fh3eT29fEZQ.
Não vi esse filme ainda, mas hoje revi "Palácio de Vênus" e continua ótimo. Vai escrever sobre ele, Andrea?
Me passa a impressão de que você gostaria do "A Fêmea do Mar", Sergio. Vale a pena, mesmo com as ressalvas. E ótima lembrança do "Palácio de Vênus", vou escrever sobre ele.
- Me arrebenta!
Foi o que ecoou no "apertamento" do posto 6 quando o Alejandro, com uma TV oitentista em pleno 1998, girou o dial no sentido errado e, em vez de diminuir o volume dessa maravilha odyana, aumentou o som na caixa. Aldine berrando, terapia primal da Eva gaúcha no paraíso catarinense.
Foi Helena Ramos nas reprises da Manchete que me despertou pro cinema popular brasileiro setentista, mas Aldine em "A Fêmea do Mar" foi quando trocamos alianças e juras de amor eterno, cumpridas até hoje.
Como se não bastasse, ainda temos o diálogo maravilhoso do "comprador de rendas" indignado pela Jerusa (nome da vovó) ter se despencado pra sua vendinha no dia errado:
- Não, não é possível! Esse mundo está todo virado! As pessoas estão fazendo na sexta-feira o que deviam fazer no sábado!
Mal sabia o tiozinho da venda que, não fossem os raros e previdentes programadores, historiadores e amantes do cinema autêntico dessa nação e desse planeta, antecipando a redescoberta desses filmes, no sábado talvez ninguém lembrasse mais deles. E lá estávamos nós, naquelas madrugadas de sexta pra sábado, descobrindo o passado reapresentado por Deni Cavalcanti e nos preparando, cada um a seu modo, pra preservá-lo pra nossa e pra futuras gerações.
Bendita geração, com trocadilho do vizinho de cima, e bendita você, Andrea, por ajudar essa fornada humana madura nos anos setenta a ser imortalizada, com todas essas nuances, muitas das quais só percebemos quando você as aponta.
Faz uns anos que não te agradeço por isso, né? Brigadão. :)
nossa, nunca pensei que fosse o Garret...aliás, bem atraente...os 3 são lindos mesmo, mãe e filhos...eu queria que ele fosse mais audacioso e a la Gisele passasse o rodo no filho...mas não deu....isso era demais rssss machadada nele...mas é um filme bonito e sobretudo bem filmado!
O Galante não produziu Fêmea do Mar. Quem produziu foi Augusto Cervantes
A belíssima gaúcha Aldine Muller sempre foi para mim uma mistura perfeita e deslumbrante de Hedy Lamarr com Danton Mello mesmo sem ela nunca ter sido uma beldade nacional famosa tão estonteante e superestimada quanto as musas e megaestrelas Maitê Proença e Nadia Lippi sendo ainda que Aldine e Maitê foram colegas de cena nas duas clássicas novelas da Rede Globo De Televisão "Sassaricando" e "O Salvador Da Pátria." Aldine é uma musa cult e alternativa do Brasil que se tornou a musa inspiradora de seu saudoso ex-marido Jean Garrett em clássicos cinematográficos da Boca Do Lixo e da extinta sessão Cinema Brasil da CNT como esse "A Fêmea Do Mar" e o também ótimo "O Fotógrafo." E já que falei na maravilhosa Nadia Lippi, esqueci de dizer que além de Aldine Muller e Maitê Proença, a novela "Sassaricando" também foi estrelada pelo lendário Ney Santanna que foi casado com a própria Nadia Lippi na vida real sendo que o fruto dessa mesma união entre Ney e Nadia foi a polêmica atriz, bartender e ex-Big Brother brasileira Thalita Lippi que é atualmente é uma atriz em ascenção na programação audiovisual da Rede Globo De Televisão. Boa sorte, Thalita Lippi. Apesar de eu odiar o Big Brother e de ter insultado todos os participantes desse infame e inútil reality show, espero sinceramente que você consiga realizar o seu sonho de se tornar uma grande atriz famosa como os seus próprios e lendários pais Nadia Lippi e Ney Santanna e quem sabe você também não se torne um verdadeiro símbolo sexual assim como as outrora lindas e jovens Aldine Muller e Maitê Proença em seus tempos de glória. Amém.
Esqueci ainda de dizer que uma antiga canção que sempre me faz lembrar de Aldine Muller é "Solamente Uma Vez" na versão de Eduardo Souto Neto que curiosamente pertenceu à trilha sonora da antiga novela global "Sassaricando" estrelada pela própria Aldine que aliás esteve no auge de sua beleza no filme de suspense "Shock - Diversão Diabólica" no papel de linda e sensual personagem Isa. Ou seja, Aldine é simplesmente demais, irresistível mesmo.
Nádia Lippi é tão linda, angelical, exuberante e adorável que ela é praticamente a Isabelle Adjani brasileira.
Neide Ribeiro continua belíssima até os dias de hoje sendo portanto uma das mais belas e exuberantes atrizes de cinema e modelos de moda brasileiras de todos os tempos.
Esse é um dos melhores filmes (em nível de cenas, rs) para mim da pornochanchada. Mais que meramente drama ou filosofia errática, o filme é contíguo dentro de um ambiente que beira o primitivo, Gerusa, Cassandra e Ulisses estão tão parados no tempo, que a mera presença de um desconhecido falando de forma altiva do mundo, ela trepa maravilhosamente com as duas mulheres e cria uma interação tensa com o Ulisses... Show demais... A cena dele com a Cassandra é das melhores desse período para mim, sensualidade crua naquela quente praia...
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