segunda-feira, maio 30, 2011

Cinema de Lágrimas


Quem estava vivo e operante no ano de 1995 foi provavelmente arrastado pelas comemorações do “centenário” do cinema. Dúvidas cronológicas à parte, os irmãos Lumière invadiram livrarias, jornais, televisores, a claudicante Internet dos modens a lenha.

Era comum assistir aos curtas do trem chegando na estação ou das operárias peitudas saindo da fábrica. Os Lumière fincavam as bandeiras: eram os Cristóvãos Colombos da arte que soube tocar a flauta para o século XX.

Entrando no embalo, o British Film Institute contratou alguns diretores-chaves para escolherem filmes significativos dos cem anos. Cada qual em uma região do globo. Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville abocanharam a França. Martin Scorcese, os Estados Unidos. Nelson Pereira dos Santos, a América Latina. Rússia, Japão, Alemanha, Reino Unido e demais lugares idem, com os respectivos analistas.

Como se pode ver, a missão de Nelson Pereira dos Santos foi, no mínimo, extensa. Ele não iria dirigir um épico sobre o Brasil. O país estava no bojo de algo maior, colocado como parte do continente. Para não cobrir um santo e descobrir outro, Nelson teve a idéia de abordar elementos comuns aos países irmãos e, dentro disso, fazer uma ponte com o imaginário nacional.

Se era humanamente impossível tratar de todos os elementos latinos, um foi escolhido: o melodrama. Se era humanamente impossível tratar de todo o imaginário cinematográfico brasileiro, uma fatia foi escolhida: o Cinema Novo – do qual Nelson é considerado sócio-fundador, junto com Alex Viany, antes do messianismo de Glauber Rocha e turma.

O roteiro de “Cinema de Lágrimas” (1995) parte da pesquisa feita por Silvia Oroz no livro “Melodrama: O cinema de lágrimas da América Latina”. O recorte de Nelson usou sobretudo o cine mexicano – alguma coisa do argentino.

Na história, o medalhão Rodrigo (Raul Cortez) atravessa uma crise pessoal. Diretor de teatro, uma de suas peças fracassa, ele enfrenta críticas tenebrosas na imprensa. Está completamente perdido, acorda de noite, tem pesadelos com a mãe – que se matou quando ele era garoto.

Um pesquisador (Yves, André Barros) se aproxima, diz ser fã de Rodrigo que, àquela altura, quer exorcizar os problemas. Papo vai, papo vem, Rodrigo decide encontrar os filmes que sua mãe e tias adoravam. Quer saber qual a fita a que a mãe assistiu, antes de se suicidar. Chama Yves para a expedição: vão rumo aos melodramas.

Aceitam a dica de Cosme Alves Netto (o próprio, em cena), antigo diretor da Cinemateca do MAM. Viajam para o México, mais especificamente para a Cinemateca da Universidade do México. Lá remexem nos filmes, começam uma espécie de psicanálise alternativa, de tanto se verem e conversarem. A sala escura, como sabemos, é um divã poderosíssimo, voyeurístico – estão aí os palácios, os poeiras, os shoppings, que não nos deixam mentir.

A ficção do filme se une, então, à ficção dos outros filmes, que irradiam as cocadas da era de ouro: Andrea Palma, Maria Félix, Dolores del Rio. Fácil pensar em Pedro Almodóvar suando com as imagens de tantas fêmeas castigadas, cheias de batom e dos carões divescos. Os moços incluem, dentre outros, Pedro Armendáriz e Jorge Mistral. Atores que, aliás, também “interromperam os cursos de suas vidas”. Bateram a caçuleta por vontade própria.

Em paralelo, “Cinema de Lágrimas” aproveita o relacionamento de Rodrigo e Yves para legitimar as teses em torno dos melodramas que são mostrados. Yves é uma reencarnação de Silvia Oroz. Dá aulas para Rodrigo, faz um tratado sobre o tema, recita frases sobre o patriarcado, sobre “a colocação judaico-cristã do amor”.

Por outro lado, os dois têm uma relação propositadamente mal resolvida. Muito choro, desaparecimentos, Yves chega tarde à universidade, não se explica. Rodrigo pega na mão do rapaz, tenta entender o porquê. Falam de homossexualidade, de doenças, de mãe e até mesmo uma carta – sempre há uma carta nos folhetins! – aparece.

O filme apresenta, portanto, os pontos nevrálgicos da estrutura melodramática. Seja na visão acadêmica (de Yves/Oroz), seja na visão empírica (de Rodrigo e de Yves). E as pérolas do cinema em preto-e-branco acabam respondendo por mais da metade do longa. Elas edulcoram o encantamento do espectador. Digam o que quiserem, a fórmula ainda funciona, o dó de peito tem o seu lugar. Nelson dirigiu poucas cenas. Fez uma coletânea, versão estendida dos últimos minutos de “Cinema Paradiso”.

De certa maneira, a estratégia provoca uma contradição filosófica terrível para os espectadores mais xiitas. “Cinema de Lágrimas” homenageia a estética que é burguesa por definição, mas também bate continência ao Cinema Novo. O movimento que, nas primeiras horas, se opôs aos dramalhões, qualificando-os como alienantes e retrógrados.

Afinal, quem, no Paissandu, balançaria lenços brancos durante “O Ébrio”? Ou soluçaria com “Floradas na Serra”? Tremelicar com Vicente Celestino ou Cacilda Becker atentaria contra a moral anti-materialista-ortodoxo-dialética. E isto muito embora Leon Hirszman considerasse a “exacerbação” um requinte dramatúrgico. Conselho dado a Glauber Rocha, que o utiliza em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

“Cinema de Lágrimas” faz esse comboio de elementos, tenta costurar as arestas, apesar de manter a tensão interna. Mistura os filmes lacrimosos com declarações de professores mexicanos – uma das várias frestas pelas quais se ouvem lições sobre a “realidade objetiva”, sobre os autores do Terceiro Mundo. Nelson mostra, ainda, cartazes de colegas cinemanovistas em uma exposição no MAM. Surgem como uma onda afetuosa, regeneradora, um ideal fílmico que pode levar ao êxtase tanto quanto as fitas acompanhadas por Rodrigo.

“Armiño Negro”, de Carlos Hugo Christensen, era uma delas. Além de diretor do melodrama, sabe-se que Christensen foi o argentino migrante. Veio para o Brasil, amargou por anos a pecha de deslocado, vazio. Tragédia das grossas, basta “Viagem aos Seios de Duília” (1964) para enxergarmos as coisas em ordem. Encarada em plenitude, a figura de Christensen refoge ao papel de alienígena. E possibilita um encontro que também define os rios de lágrimas do cinema brasileiro, quando visto por dentro.

3 comentários:

Luis Santos disse...

Perfeita como sempre Andrea!

Assisti a este filme a muito anos atrás. E de vez em quanto, em flashbacks, me lembrava dele, mas não lembrava o nome.

Você dissolveu esta minha gestalt, tal como o protagonista o faz no filme...

Obrigada!

Como é bom existir uma mulher linda e absolutamente única como você!

Renato disse...

uma mulher bonita e inteligente assim chega a ser falta de educação...rs

Andrea Ormond disse...

Obrigada, Luis :) Vai que são freudianas estas suas lembranças com o filme. Aconselho uma ida à Cinemateca Brasileira, para desvendar o mistério rs

Obrigada, Renato :)