segunda-feira, janeiro 24, 2011

Memória de Helena


“Memória de Helena” (1969) traz a profissão de fé de David E. Neves, o gosto pelo passado, o espírito que dormia no canto entre ontem e hoje. Remexe a expressão máxima de uma saudade familiar a ele: Diamantina, terra da mãe, origem do sobrenome oculto – Eulálio, o “E.” da assinatura.

Para continuar essa disciplina amorosa, David chama Humberto Mauro – o amigo que havia biografado em um curta (1966). Notem o senhor de cabelos brancos, voz rouca, no papel do tio Mário de Helena (Rosa Maria Penna). Afável, carinhoso, mesmo tratamento que dispensava a David no cotidiano.

E a recíproca era idêntica. Não à toa, o roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes – outro referencial, um guru – mostra o cuidado de David com Mauro. Retrata as miudezas do Humberto/Tio Mário que já não enxergava bem à noite, que gostava de conversas intermináveis sobre a cidade da infância. Para tio Mário, era Diamantina. Para Humberto, Cataguases.

Pode parecer pequeno, mas o gesto estabelece um pacto imenso entre os diretores. Humberto lhe dava a mão para o primeiro longa-metragem. David realizava uma projeção masculina, de segurança, de porto seguro.

É assim que caminha mauriano, afastando os galhos das árvores em “Memória de Helena”, visitando o lirismo das coisas – o ferro de passar, o lago, as personagens engolidas pela cosmogonia delicada. Influência inevitável, ainda que em menor escala se comparado ao “Menino de Engenho” (1965), estréia de outro colega de geração, Walter Lima Jr.

David reinventa a nostalgia de Mauro. É urbano, cortes temporais – o Rio de Janeiro se mistura em idas e vindas com Minas –, fetiche metalingüístico pelo cinema – a Super 8 de Helena registra e é registrada de fora, pelo diretor. “Um filme sentimental”, que traz a dúvida sobre ser documentário ou ficção, logo nos créditos iniciais.

Helena, a morta, narra e diz com todas as letras que este é um filme de David Neves. Coloca-se do lado externo – reflete sobre a produção do filme, ao qual os espectadores assistem – e afirma que está no lado interno – narradora onisciente, falando de Helena na terceira pessoa.

Mais do que isto: só depois de alguns minutos é que iremos reconhecemos aquela voz do começo no rosto de Helena. Ginástica de construção que David segura tranqüilo, como o barquinho de papel que bebe o rio e fica-se olhando, em conexão com o divino.

O argumento foi escrito pelo diretor em um jato, beliscando a máquina de escrever. Apresenta-o a Paulo Emílio, que então desenvolve o roteiro, aprofundando e desaprofundando a inspiração dos diários de Helena Morney – pseudônimo de Alice Dayrell, diamantinense, filha de ingleses, século XIX.

Saudado pelo crítico Alexandre Eulálio, primo de David, o livro serviu de fonte para outra Helena, a Solberg, dois séculos depois, em “Vida de Menina” (2003). A Helena de Neves está abandonando a infância, percebe que não tem vocação para a vida conjugal, é saturada pela província, tiranizada pela mãe, pelas tias, pela avó. Tirania muda, desprezo por quem a garota é de fato ou aspira a ser.

Casarões de janelas abertas, ruas de pedras portuguesas, colégio, amizade com a mucama Inês. Algo que a distrai, não a completa por inteiro. Aparece Rosa (Adriana Prieto). Coleguinha de saiote e blusa de renda, laço de fita. Descem da aula, caminham na imensidão, amor que existe, apesar de não explodir no corpo físico. É certo, verdade verdadeira: Helena e Rosa se amam.

Um bêtise-antídoto, válvula de escape para o totalitarismo deliberado do meio – no cinema, vide “Mädchen in Uniform”. Os iguais – aqueles que ninguém adivinharia, pois seria pecado – unem-se em pensamento.

“Ela parece se submeter a mim, mas no fundo sou eu a escrava de sua futilidade.” Conhecida por ser a inteligente do sobrado, Helena sabe que existe com Rosa uma ligação de vidro, maior ainda do que tem com os gatos pulando do quintal. Acaricia-os e deita a cabeça no ombro de Rosa.

Tenta escapar da experiência barroca das procissões, da vila retrógrada, do cartaz de “filme cristão feito por um comunista” – “O Evangelho Segundo São Mateus”, de Pier Paolo Pasolini. Helena, frágil e insegura, quebra o tom monocórdio de tudo aquilo justamente através da maquineta de Super 8, hábito que o Tio Mário havia lhe ensinado.

As filmagens – e pouco dos diários – viram o método de reconstrução da protagonista. Rosa e Renato (Arduíno Colassanti) manipulam as imagens no projetor. Sobrevivem a Helena, que comete o suicídio.

O filme escorrega neste ponto, ao dizer que de alguma forma eles suplantam a garota por estarem vivos. As catequeses católicas de Paulo e de David parecem complicar esta parte do enredo. O acerto da vida versus o erro da morte. E isto apesar de efetivamente os dois se conhecerem por conta da menina – Renato foi ex-namorado de Helena. Perde-se a oportunidade de explicar a movimentação de Rosa, que cobiça e consegue o que foi da outra, última etapa no fusionamento das duas.

Igualmente o “defloramento de Helena” por André (Joel Barcellos) – quando ela já havia se separado de Renato. A princípio, André deveria ser o rebelde carioca, o aventureiro. Proposta inconcretizada. A aparição é mínima e não deveria sacudir tanto assim o espírito de Helena, a ponto de dar a ignição no suicídio – André a abandona e volta para a Guanabara.

A atitude sai da órbita que fascina em “Memória”: a idéia de vitalidade, de a protagonista ser única, conectada a Rosa e Renato, em uma angústia eterna. Soa como inconformismo tolo, estranho para a Helena que teoriza a necessidade de transparência, de se ser como se é, despindo-se a formalidade que destrói a essência. Helena age escravizada, de quatro, nem cogita perturbar Rosa – o que seria o próximo passo, no desespero do fusionamento –, àquela altura grudada em um namorado qualquer.

A filosofia se contrapõe à obra de David, adepto de uma liberdade feminina serena. Não incomoda, porém, o encanto descomunal de “Memória de Helena”. Um platô sem pastiche, lugar em que o vazio uiva. Coisa de diretor que sugere e deixa o que é sentido, internalizado, à moda de Morandi esboçando o intrincado, deixando fácil o que é difícil.

Em termos visuais, as soluções transcendem – David Drew Zingg, fotógrafo da Bossa Nova, concretiza o que o xará Neves lhe pede. Em uma delas, todos os núcleos da ação, representados pelos atores, passam na janela em frente aonde Helena está sentada, perto de morrer. Escapam pelos dedos, ela se sente para trás, esquecida, a confiança no fim. O corpo cai, no breu do lago, as ondas tremulam, arrebentam mansas na câmera. Metáfora para o filme em si, David as congela no ar, como expressão de palavras que machucam e não precisam ser ditas.


6 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Um belo poema visual de David Neves valorizado pela encantadora Adriana Prieto.
Abraços,

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

mrl-x disse...

/?

Pedro Henrique Gomes disse...

Tu não erra, Andrea!!!

Andrea Ormond disse...

Antonio, vi o "Memória de Helena" pela primeira vez em um cinema. Experiência fascinante. Abraços

Obrigada, Pedro!! Com o David Neves a missão é ainda melhor.

Anônimo disse...

Muito boa a qualidade dos textos.

Anônimo disse...

Great delivery. Sound arguments. Keep up the good work.
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