Existe uma faceta de Walter Hugo Khouri que agrada sobretudo a quem não o digere com facilidade. Nestas horas os dedos coçam, se entrelaçam no ar, antes de atacarem o teclado em um chat qualquer ou coadjuvarem outra discussão superficial.
Supõem terem encontrado o abismo perfeito, aquela nesga de afirmação que talvez jogue no ralo a trajetória de independência de cinco décadas e vinte e cinco filmes. Acusação sumária: sexo. Excessivo, tabu, pecaminoso, tudo na base de um realismo que – como dói – agride a análise caudalosa do tema.
A descida aos infernos piora ainda mais diante do ato sujo, feio, bobo e mau praticado entre filha e pai. O que dizer do longa-metragem em que Berenice comete o intercurso sexual com Marcelo?
“Forever” (“Per sempre”, 1989, lançado em 1993) apresenta a segunda morte do protagonista – a primeira delas, em “O Desejo” (1975). Marcelo sofre um ataque cardíaco ao tentar não uma anomalia, mas sim o absoluto: a fusão com a prole. A mínima aproximação com o filme está, portanto, longe da senha pornô e reside na consciência de que WHK manipulava o triângulo mãe-pai-filha – fantasma que já havia tangenciado em “Eu” (1987) e “Eros, o Deus do Amor” (1981).
Nem se pode acreditar completamente no que diz a narradora Berenice (Eva Grimaldi). Evidente que ela está elaborando o luto, libidinizando o pai morto e fantasiando as suas aventuras, estancada na garçonnière em que Marcelo (Ben Gazzara) atacava com furor. Dentre as gazelas, consta Vera Fischer (Cristina Teller), que aparentemente fez Gazzara surtar durante as filmagens.
Berenice confere os slides deixados de herança e encomenda um novo, da cena do óbito. Erotiza-os, o olhar numa curiosidade impaciente. A ponte com as suas memórias impera, fazendo com que surja a púbere Ana Paula Arósio – em estréia no cinema – nas cenas de infância da personagem.
O enredo aponta para uma das mais clássicas vinhetas psicanalíticas: a da pequena filhinha que supõe ser um casal com o pai e quica a mãe para fora, ao não receber o afeto devido. Um caso típico para Melanie Klein, construído com rigor por Khouri, que de naïf tinha nada. Não à toa, marca reiteradamente a relação de frieza entre Berenice e a mãe (Eleonora, Janet Agren), o exato oposto do que a good enough mother de Donald Winnicott deveria ser.
Infelizmente, “Forever” padeceu de um momento histórico diabólico, com o fim da Embrafilme, a guerrilha nas cadernetas de poupança, a instabilidade collorida. Lembremos que o Festival de Gramado de 1993 chegou ao cúmulo de apenas dois longas brasileiros concorrerem no evento: “Forever” e “Capitalismo Selvagem”, de André Klotzel.
Tendo este pano de fundo, fica mais plausível entender por que cargas d'água Khouri e Anibal Massaini Neto – da Cinedistri, investidor do cinema auto-sustentável da Boca – apelaram para um duo inusitado com o italiano Augusto Caminito. “A Italian-Brasilian [sic] production”, orçada em cerca de dois milhões de dólares, com “casting internacional” e, crueldade das crueldades (tomemos fôlego): o filme é dublado em inglês, semelhante ao “A Grande Arte” (1991), de Walter Salles Jr. Pedro Paulo Hathayer – ator simbólico de Rubem Biáfora – faz aqui sua última aparição no cinema, como padre, recitando o idioma de Geoffrey Chaucer na missa do falecido.
Essas madeleines de um período sangrado do cinema brasileiro abrem alas para o resto de neon-realismo que dá as caras em “Forever”. WHK não era cria da estética, mas o filme deixa rastros. Há um clima que renega a melhor tradição khouriana, e nem a fotografia de Antonio Meliande, colaborador de longa data, consegue conter o ímpeto de ser-produto-voltado-para-o-mercado-externo.
O elenco atua em um pastiche de dar dó. Para se ter idéia, quando a pobre da Traditional Jazz Band – presente em “Eros”, “Eu” e “Amor Estranho Amor” (1982) – ataca de “My heart belongs to daddy”, a dança dos atores é à moda espanhola, como se alguém tivesse tateado um Bizet na vitrola.
Os equívocos da produção, ao tentar dominá-la em excesso, explicam o ar rarefeito da obra. Ponto raríssimo no planejamento de WHK, habituado a controlar desde a cenografia à trilha sonora, o roteiro foi inusitadamente compartilhado com outros colaboradores – o próprio produtor Augusto Caminito, Tony Foutz e Lauro César Muniz.
Ainda assim, apesar dos pesares, “Forever” diz um amém, claudicante, às origens. Dá-se novo passo na teia de Berenice-Marcelo – aqui, Marcelo Rondi, sobrenome semelhante ao Ronchi, de Khouri –; ouve-se Schubert nos pontos-chave; vê-se o apuro nas evocações à morte – tal como na escultura da beata Ludovica Albertoni.
O apartamento de Rondi lembra – se não for o mesmo – o de “Eros”. Reflete os olhos sobre a avenida Paulista, antro amplo, etéreo. A festa em “Forever”, por sua vez, usa a mesma mansão de “Eu”, em provável prolongamento temporal, desordenado como em um sonho, agora com o adendo de Ana (Gioia Scola) – a intrusa no reino.
“I eat all flesh, I drink all blood”, repetido em transe por pai e filha, é uma das profissões de fé de El Rondi. A ponto de misturar esse afã pagão – a anos-luz das intenções do versículo bíblico de João 6:53 –, com o mito do trono de pedra.
Apresentado ao público em “O Corpo Ardente” (1966), o trono de pedra – gravado in loco, nas montanhas de Itatiaia – reaparece diversas vezes nos filmes de WHK. A mãe (inicialmente, Barbara Laage) leva o filho (inicialmente, Wilfred Khouri), adula o narciso e estabelece a premissa: “O rei é você.”
Matéria bruta, nebulosa, o que trono de pedra possui de sensorial, de puro, deveria a princípio se restringir às visitas de Marcelo e Berenice. Ou seja, ao amor filial, à devoção, à transcendência. Em “Forever”, porém, Marcelo abdica da nobreza, quebra o circuito e desta vez também leva Ana, louco pela prática do belo esporte, uma iguaria que rompe a docilidade do local.
E se “o corpo é a árvore da sabedoria” – moto de Marcelo, deixado em uma folha na máquina de escrever –, resta claro o apego ao zen-budismo, explicativo para a hecatombe que precedeu à sua morte. Em plano global, a citação faz parte de um encantamento do diretor pelo Oriente, freqüentado desde cedo – no cinema, posição de destaque para a produção pré nouvelle vague japonesa.
Nesse monte de egoísmo e voracidade, o Marcelo mezzo Gazzara mezzo Jardins fraqueja na encruzilhada existencial do personagem. Deixa-o em uma posição inacabada, entrega o bastão para “Paixão Perdida” (1998) e “As Feras” (1995, lançado em 2001). Quando as bacantes deste último entram em cena, vemos o fecho da trajetória de Walter Hugo Khouri, o prestidigitador que sussurra uma dúvida sobre os sentidos imediatos, acreditando naquela ascese superior ao que é meramente plasmado na tela – e que, via de regra, nem todos atingem.
Supõem terem encontrado o abismo perfeito, aquela nesga de afirmação que talvez jogue no ralo a trajetória de independência de cinco décadas e vinte e cinco filmes. Acusação sumária: sexo. Excessivo, tabu, pecaminoso, tudo na base de um realismo que – como dói – agride a análise caudalosa do tema.
A descida aos infernos piora ainda mais diante do ato sujo, feio, bobo e mau praticado entre filha e pai. O que dizer do longa-metragem em que Berenice comete o intercurso sexual com Marcelo?
“Forever” (“Per sempre”, 1989, lançado em 1993) apresenta a segunda morte do protagonista – a primeira delas, em “O Desejo” (1975). Marcelo sofre um ataque cardíaco ao tentar não uma anomalia, mas sim o absoluto: a fusão com a prole. A mínima aproximação com o filme está, portanto, longe da senha pornô e reside na consciência de que WHK manipulava o triângulo mãe-pai-filha – fantasma que já havia tangenciado em “Eu” (1987) e “Eros, o Deus do Amor” (1981).
Nem se pode acreditar completamente no que diz a narradora Berenice (Eva Grimaldi). Evidente que ela está elaborando o luto, libidinizando o pai morto e fantasiando as suas aventuras, estancada na garçonnière em que Marcelo (Ben Gazzara) atacava com furor. Dentre as gazelas, consta Vera Fischer (Cristina Teller), que aparentemente fez Gazzara surtar durante as filmagens.
Berenice confere os slides deixados de herança e encomenda um novo, da cena do óbito. Erotiza-os, o olhar numa curiosidade impaciente. A ponte com as suas memórias impera, fazendo com que surja a púbere Ana Paula Arósio – em estréia no cinema – nas cenas de infância da personagem.
O enredo aponta para uma das mais clássicas vinhetas psicanalíticas: a da pequena filhinha que supõe ser um casal com o pai e quica a mãe para fora, ao não receber o afeto devido. Um caso típico para Melanie Klein, construído com rigor por Khouri, que de naïf tinha nada. Não à toa, marca reiteradamente a relação de frieza entre Berenice e a mãe (Eleonora, Janet Agren), o exato oposto do que a good enough mother de Donald Winnicott deveria ser.
Infelizmente, “Forever” padeceu de um momento histórico diabólico, com o fim da Embrafilme, a guerrilha nas cadernetas de poupança, a instabilidade collorida. Lembremos que o Festival de Gramado de 1993 chegou ao cúmulo de apenas dois longas brasileiros concorrerem no evento: “Forever” e “Capitalismo Selvagem”, de André Klotzel.
Tendo este pano de fundo, fica mais plausível entender por que cargas d'água Khouri e Anibal Massaini Neto – da Cinedistri, investidor do cinema auto-sustentável da Boca – apelaram para um duo inusitado com o italiano Augusto Caminito. “A Italian-Brasilian [sic] production”, orçada em cerca de dois milhões de dólares, com “casting internacional” e, crueldade das crueldades (tomemos fôlego): o filme é dublado em inglês, semelhante ao “A Grande Arte” (1991), de Walter Salles Jr. Pedro Paulo Hathayer – ator simbólico de Rubem Biáfora – faz aqui sua última aparição no cinema, como padre, recitando o idioma de Geoffrey Chaucer na missa do falecido.
Essas madeleines de um período sangrado do cinema brasileiro abrem alas para o resto de neon-realismo que dá as caras em “Forever”. WHK não era cria da estética, mas o filme deixa rastros. Há um clima que renega a melhor tradição khouriana, e nem a fotografia de Antonio Meliande, colaborador de longa data, consegue conter o ímpeto de ser-produto-voltado-para-o-mercado-externo.
O elenco atua em um pastiche de dar dó. Para se ter idéia, quando a pobre da Traditional Jazz Band – presente em “Eros”, “Eu” e “Amor Estranho Amor” (1982) – ataca de “My heart belongs to daddy”, a dança dos atores é à moda espanhola, como se alguém tivesse tateado um Bizet na vitrola.
Os equívocos da produção, ao tentar dominá-la em excesso, explicam o ar rarefeito da obra. Ponto raríssimo no planejamento de WHK, habituado a controlar desde a cenografia à trilha sonora, o roteiro foi inusitadamente compartilhado com outros colaboradores – o próprio produtor Augusto Caminito, Tony Foutz e Lauro César Muniz.
Ainda assim, apesar dos pesares, “Forever” diz um amém, claudicante, às origens. Dá-se novo passo na teia de Berenice-Marcelo – aqui, Marcelo Rondi, sobrenome semelhante ao Ronchi, de Khouri –; ouve-se Schubert nos pontos-chave; vê-se o apuro nas evocações à morte – tal como na escultura da beata Ludovica Albertoni.
O apartamento de Rondi lembra – se não for o mesmo – o de “Eros”. Reflete os olhos sobre a avenida Paulista, antro amplo, etéreo. A festa em “Forever”, por sua vez, usa a mesma mansão de “Eu”, em provável prolongamento temporal, desordenado como em um sonho, agora com o adendo de Ana (Gioia Scola) – a intrusa no reino.
“I eat all flesh, I drink all blood”, repetido em transe por pai e filha, é uma das profissões de fé de El Rondi. A ponto de misturar esse afã pagão – a anos-luz das intenções do versículo bíblico de João 6:53 –, com o mito do trono de pedra.
Apresentado ao público em “O Corpo Ardente” (1966), o trono de pedra – gravado in loco, nas montanhas de Itatiaia – reaparece diversas vezes nos filmes de WHK. A mãe (inicialmente, Barbara Laage) leva o filho (inicialmente, Wilfred Khouri), adula o narciso e estabelece a premissa: “O rei é você.”
Matéria bruta, nebulosa, o que trono de pedra possui de sensorial, de puro, deveria a princípio se restringir às visitas de Marcelo e Berenice. Ou seja, ao amor filial, à devoção, à transcendência. Em “Forever”, porém, Marcelo abdica da nobreza, quebra o circuito e desta vez também leva Ana, louco pela prática do belo esporte, uma iguaria que rompe a docilidade do local.
E se “o corpo é a árvore da sabedoria” – moto de Marcelo, deixado em uma folha na máquina de escrever –, resta claro o apego ao zen-budismo, explicativo para a hecatombe que precedeu à sua morte. Em plano global, a citação faz parte de um encantamento do diretor pelo Oriente, freqüentado desde cedo – no cinema, posição de destaque para a produção pré nouvelle vague japonesa.
Nesse monte de egoísmo e voracidade, o Marcelo mezzo Gazzara mezzo Jardins fraqueja na encruzilhada existencial do personagem. Deixa-o em uma posição inacabada, entrega o bastão para “Paixão Perdida” (1998) e “As Feras” (1995, lançado em 2001). Quando as bacantes deste último entram em cena, vemos o fecho da trajetória de Walter Hugo Khouri, o prestidigitador que sussurra uma dúvida sobre os sentidos imediatos, acreditando naquela ascese superior ao que é meramente plasmado na tela – e que, via de regra, nem todos atingem.
4 comentários:
Querida,
Nosso amado Khouri é a ausência mais sentida por mim no cinema brasileiro.
Bj
Olá Andrea,
Assisti ontem, e logo quando vim - como de costume - ler o que você escreveu sobre o filme, vi que o tinha feito um dia antes. Coincidências à parte, concordo que a atuação é triste, a ponto de incomodar: um "Khouri" não merecia isso. Sua contextualização me confortou um pouco. De qualquer forma o filme me emocionou bastante, também pelo envolvimento que venho tendo com a obra. Apesar de já ter assistido "Eu", fui inocente a ponto de não suspeitar do desfecho do filme, que achei genial. A maneira como o real, a memória e a imaginação se confundem nas cenas da garçoniere também é muito instigante. Enfim, achei um grande filme.
Adilson, o Khouri anda fazendo uma falta terrível, mais um pouco e se vão 10 anos que ele faleceu. Beijos, querido
Pois é, Rodolfo, o "Forever" não faz jus, havia esse monte de contingências acontecendo. Mas situando com o "Eu" ou o "Eros" fica uma linha com um sentido muito produtivo de se analisar. Alguns pontos abaixo, mas é válido de se ver.
Assisti ao filme numa exibição especial, em Los Angeles, com a presença do W. Hugo Khouri, um verdadeiro LORDE na sua educação com o público, à saída da apresentação do longa...conversei com o diretor e disse a ele que o mais me intrigava é como, ainda que muito do público masculino invejava o ´Marcelo´ nas várias incarnaçóes que teve no Cinema, era impossível, para mim, não perceber uma carga de melancolia e tristeza enormes no personagem, uma sensação de fracasso por uma busca pela incessante busca por algo que o protagonista parecia saber que nunca iria encontrar.
Ele me disse, que via o ´Marcelo´ bem por essa linha, mesmo.
Depois disso, ficamos de nos falar em Sampa e liguei paar entrevistá-lo mas o appo não rolou por razões de saúde e ele veio a partir desta paar bem melhor.
Postar um comentário