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quinta-feira, maio 21, 2009

Terra Estrangeira


Assim como Glauber Rocha nunca foi problema para o cinema brasileiro -- em seus melhores momentos, foi solução -- Walter Salles também não tem qualquer culpa por "Central do Brasil" representar matriz de intermináveis comentadores do óbvio. No caso de Glauber, mirem-se os nenéns neo-fascistas, infiltrados no Paissandu, como idealizadores do patrulhamento mórbido a qualquer coisa indiferente ao projeto cinemanovista. Sobre Walter, é clara sua honestidade e capacidade de fazer o filme que quiser, a hora que lhe parecer conveniente.

Resta, porém, nota distoante: "A Grande Arte", um dos mais bizarros momentos da filmografia nacional. Lançado na época do governo Collor, quando a moral do país andava de joelhos, desperdiçou o heroísmo de resistência e abraçou a premissa de fazer um filme em inglês para "conquistar mercado". O resultado foi que os espectadores brasileiros, saudosos de si mesmos naquele distante 1991, acreditaram no engodo e prestigiaram de boa-fé uma adaptação de Rubem Fonseca que nem seu idioma falava.

Salles recupera-se em "Terra Estrangeira" (1996), co-dirigido por Daniela Thomas. Aqui, ao contrário do anterior, provoca a identidade nacional com eficiência. Para entendê-lo, basta lembrarmos o que foi o país nos tempos da economia em frangalhos, pré-estabilização: com a escalada inflacionária, desemprego aos píncaros, tornou-se praxe o sonho de reinventar-se, de trocar de história em outras paragens.

Brasileiros na Europa eram (ainda são, de certa forma) tratados como párias. E quanto mais forçam um retorno idealizado às origens de seus avós e bisavós, mais os jovens imigrantes angustiam-se com a impossibilidade de sucesso. Em muitos casos, estas aventuras terminam em tragédia, em dissolução pessoal, pois não querendo ser brasileiros, defrontam-se com a realidade de que dificilmente tornam-se cidadãos plenos onde nada lhes pertence, onde representam somente estrangeiros indesejáveis disputando uma fatia do bolo.

É esse basicamente o drama de Paco (Fernando Alves Pinto), paulistano filho da espanhola Manuela (Laura Cardoso), ambos moradores de um edifício nas proximidades do Elevado Costa e Silva, o popular Minhocão.

Oprimidos pela má-qualidade de vida, contando os tostões, vivem na esperança de um dia visitarem San Sebastián, no País Basco, a terra da mãe. O sonho é interrompido quando ficção e realidade se misturam, e surge o confisco da poupança de Manuela, em março de 1990. A medida, que o então presidente Fernando Collor de Mello julgava como saneadora da inflação, transformou o inferno em um lugar mais quentinho.

Manuela sucumbe a um enfarte ao saber da notícia pela tv; e ao filho, sozinho, restará o exílio ou a penúria imóvel. O roteiro coloca Paco envolvido em uma trama com jóias contrabandeadas, que o leva inicialmente à Portugal, conhecendo Alex (Fernanda Torres), foragida do mafioso Ígor (Luis Melo). Vendem os próprios passaportes, abandonam a moral em uma espécie de torpor expiatório. Ironizam o gigante adormecido, além-mar, que nunca lhes deu oportunidades.

Tudo -- menos o preto-e-branco artificial de Walter Carvalho -- sustenta angústia cúmplice às desventuras dos brasileiros, que preferem o caminho da tragédia ao retorno humilhado. Não fosse pelo embonecamento dado à fotografia, poderíamos louvar "Terra Estrangeira" por algo já fora de moda: uma certa rudeza de princípios, um falar "sem medo" aquilo que merece ser dito.

Ainda assim, este me parece o melhor trabalho de Salles, que nos anos seguintes mergulharia no grotão idealizado de "Central do Brasil" (1998) e no thriller social de "O Primeiro Dia" (1999). O discurso maniqueísta contra o país, que hoje escandaliza alminhas sensíveis, precisa ser absorvido no contexto da época, assim como a fragilidade do suspense, que o diretor soube criar melhor em "O Primeiro Dia".

Quando desvencilha-se do estorvo português e parte para San Sebastián, o protagonista já é outro homem, em uma espécie de ritual de passagem. A fuga de Paco e Alex -- semelhante a viagem de Dora e Josué em "Central do Brasil" -- faz de obras paralelas, antítese: enquanto em "Central" o caminho os leva para um recomeço, pretensa purificação de urbanóides no sertão, entre Portugal e Espanha a rota é somente paliativo das desgraças.

Metamorfoseando a simpatia e ingenuidade "de país do futuro" em arrivismo periférico, em arrogância cínica, os brasileiros sobramos como mais uns no mundo. E o que o mundo nos dá em troca desse sacrifício rememora, quase sempre, um visto negado no aeroporto. "Terra Estrangeira" discorre sobre status melancólico: o de lixo ocidental.