Em recente entrevista, Carlo Mossy declarou que considera Alfredo Sternheim um dos cinco maiores diretores brasileiros de todos os tempos. Infelizmente os melhores filmes de Alfredo permanecem ocultos, esotéricos, pois sua revisão fomentaria interesse a uma das trajetórias mais significativas do cinema nacional.
Mossy guarda tanto apreço e respeito por Sternheim não à toa: ambos construíram vidas à margem dos oficialismos e das manipulações ideológicas. Ambos judeus e brasileiros de primeira geração amaram o país -- e suas respectivas metrópoles -- muito além do oportunismo folclórico em que alguns cafetões da película rufiavam. Pagaram o preço do descaso, do esquecimento temporário, às vezes da solidão.
Baseado no romance de Heinrich Mann, "O Professor Unrat", em 1973 Alfredo -- aos 31 anos -- resolveu ousar, e escreveu em parceria com o roteirista Juan Siringo uma versão paulistana da história que um dia inspirou o clássico "O Anjo Azul", de Josef von Sternberg. Podemos dizer, sem qualquer sarcasmo, que o resultado esteve provincianamente à altura. Mesmo porque as intenções do jovem Sternheim eram essas mesmas: olhar a fábula universal do ponto de vista de São Paulo.
Os problemas começaram quando a censura examinou o filme, e cortou cerca de quinze minutos, além de alterar o título -- originalmente "Anjo Devasso". Estreando adulterado, amputado, obteve enorme sucesso, e posteriormente foi suspenso dos cinemas sob alegações burocráticas. Covardes, os censores assistiam em sessões privadas com família, secretárias e amigos àquilo que impediam a população de ver.
Quando reestreou, em junho de 1974, "Anjo Loiro" ganhou na crítica imbecil e míope outro inimigo. José Alvaro, da Tribuna da Imprensa, escreveu no dia 17/06/74 afirmando que "Vera Fisher estava cada vez mais cheia de celulites e estrias". A Revista Veja, em 05/06/1974, propôs palavra de ordem: "Sternberg sim, Sternheim, não". Rubem Biáfora e Ely Azeredo compreenderiam o filme com melhor ânimo, mas àquela altura o público já se desinteressara dele.
Pior para o público. Ainda que os cortes transformem "Anjo Loiro" em simulacro daquelas exibições censuradas de outro Alfredo -- o de Philippe Noiret, herói de "Cinema Paradiso", obrigado pelo padre a banir cenas de sexo e beijos no cinema de Giancaldo, pequena aldeia italiana -- o que temos da performance de Mário Benvenutti e Vera Fisher é das melhores coisas já vistas em telas brasileiras. Laura (Fisher) e Armando (Benvenutti) transparecem relação verdadeira e incômoda, um daqueles amores tristes que se fundam no erro e sobrevivem muito mal.
Tentando proteger o enteado Mário (Ewerton de Castro) da obsessão por Laura, o professor secundarista Armando logo se vê envolvido pela volúpia da jovem mulher. Espectadores mais sensíveis não custarão a fazer paralelo entre Laura e alguma conhecida: ela é tipo comum, desses frívolos. Em exercício de futurologia podemos fechar os olhos e revê-la trinta anos depois, sem qualquer sombra da exuberância antiga e poderosa.
Tudo é a pequena ruína da existência segura do professor diante da paixão neurótica. Perde emprego, economias, respeito social. E no final das contas não conquista Laura. Chave de cadeia, ouro de tolo, a moça nem desgosta dele. Apenas o desfaz, o desconstrói em uma sucessão de equívocos.
Mantidas as cenas interditadas, o filme ganharia maior consistência: em passagem não mostrada, Mário pagava uma prostituta -- a demonstrar, antes de Laura, sua casualidade e desapego em relação às mulheres. Sem essas minúcias, "Anjo Loiro" pode ser acusado de ligeireza, mas temos noção da vontade do realizador.
Qualidade dos dramas da Boca, está lá um quê de atmosfera fatalista, a dizer que a vida era cretina e sufocante. Os colegas que fazem teatro com Laura ("Antígona? De novo?", indaga um crítico) se contrapõe à vida burguesa no colégio onde Armando leciona, mas todos os personagens guardam obscuridade, enfado. Percebam que ao otimismo colorido do cinema carioca setentista, certo cinema paulistano costumava responder com tons ricos de cinza, que o tornavam adulto e fascinante.
Uma leitura pessimista de Laura pode até mesmo situá-la como vítima do relativismo juvenil pós-1968. Manipulada por chavões ("Eu sou livre", "Amo ao meu modo"), ela é musa de orgulhosa irresponsabilidade. Na falta de um pai, odeia os homens ao ponto de destruí-los. Na falta de existência coerente, agarra-se ao vazio de circunstâncias fúteis. Atualizando o "Anjo Azul", Sternheim reinventava o sentido da protagonista, intoxicando-a com Simone de Beauvoir e delírios de Woodstock.
Papel escrito para Adriana Prieto, um dia descobriremos que este foi o melhor momento de La Fisher no cinema. Reedições em dvd ou mostras podem também recuperar a "Anjo Loiro" todas as partes que lhe foram tiradas. E assim eu, Carlo Mossy e outros poucos ganharíamos em razão, por sempre incluir o nome de Alfredo Sternheim entre os maiores do cinema nacional.
Mossy guarda tanto apreço e respeito por Sternheim não à toa: ambos construíram vidas à margem dos oficialismos e das manipulações ideológicas. Ambos judeus e brasileiros de primeira geração amaram o país -- e suas respectivas metrópoles -- muito além do oportunismo folclórico em que alguns cafetões da película rufiavam. Pagaram o preço do descaso, do esquecimento temporário, às vezes da solidão.
Baseado no romance de Heinrich Mann, "O Professor Unrat", em 1973 Alfredo -- aos 31 anos -- resolveu ousar, e escreveu em parceria com o roteirista Juan Siringo uma versão paulistana da história que um dia inspirou o clássico "O Anjo Azul", de Josef von Sternberg. Podemos dizer, sem qualquer sarcasmo, que o resultado esteve provincianamente à altura. Mesmo porque as intenções do jovem Sternheim eram essas mesmas: olhar a fábula universal do ponto de vista de São Paulo.
Os problemas começaram quando a censura examinou o filme, e cortou cerca de quinze minutos, além de alterar o título -- originalmente "Anjo Devasso". Estreando adulterado, amputado, obteve enorme sucesso, e posteriormente foi suspenso dos cinemas sob alegações burocráticas. Covardes, os censores assistiam em sessões privadas com família, secretárias e amigos àquilo que impediam a população de ver.
Quando reestreou, em junho de 1974, "Anjo Loiro" ganhou na crítica imbecil e míope outro inimigo. José Alvaro, da Tribuna da Imprensa, escreveu no dia 17/06/74 afirmando que "Vera Fisher estava cada vez mais cheia de celulites e estrias". A Revista Veja, em 05/06/1974, propôs palavra de ordem: "Sternberg sim, Sternheim, não". Rubem Biáfora e Ely Azeredo compreenderiam o filme com melhor ânimo, mas àquela altura o público já se desinteressara dele.
Pior para o público. Ainda que os cortes transformem "Anjo Loiro" em simulacro daquelas exibições censuradas de outro Alfredo -- o de Philippe Noiret, herói de "Cinema Paradiso", obrigado pelo padre a banir cenas de sexo e beijos no cinema de Giancaldo, pequena aldeia italiana -- o que temos da performance de Mário Benvenutti e Vera Fisher é das melhores coisas já vistas em telas brasileiras. Laura (Fisher) e Armando (Benvenutti) transparecem relação verdadeira e incômoda, um daqueles amores tristes que se fundam no erro e sobrevivem muito mal.
Tentando proteger o enteado Mário (Ewerton de Castro) da obsessão por Laura, o professor secundarista Armando logo se vê envolvido pela volúpia da jovem mulher. Espectadores mais sensíveis não custarão a fazer paralelo entre Laura e alguma conhecida: ela é tipo comum, desses frívolos. Em exercício de futurologia podemos fechar os olhos e revê-la trinta anos depois, sem qualquer sombra da exuberância antiga e poderosa.
Tudo é a pequena ruína da existência segura do professor diante da paixão neurótica. Perde emprego, economias, respeito social. E no final das contas não conquista Laura. Chave de cadeia, ouro de tolo, a moça nem desgosta dele. Apenas o desfaz, o desconstrói em uma sucessão de equívocos.
Mantidas as cenas interditadas, o filme ganharia maior consistência: em passagem não mostrada, Mário pagava uma prostituta -- a demonstrar, antes de Laura, sua casualidade e desapego em relação às mulheres. Sem essas minúcias, "Anjo Loiro" pode ser acusado de ligeireza, mas temos noção da vontade do realizador.
Qualidade dos dramas da Boca, está lá um quê de atmosfera fatalista, a dizer que a vida era cretina e sufocante. Os colegas que fazem teatro com Laura ("Antígona? De novo?", indaga um crítico) se contrapõe à vida burguesa no colégio onde Armando leciona, mas todos os personagens guardam obscuridade, enfado. Percebam que ao otimismo colorido do cinema carioca setentista, certo cinema paulistano costumava responder com tons ricos de cinza, que o tornavam adulto e fascinante.
Uma leitura pessimista de Laura pode até mesmo situá-la como vítima do relativismo juvenil pós-1968. Manipulada por chavões ("Eu sou livre", "Amo ao meu modo"), ela é musa de orgulhosa irresponsabilidade. Na falta de um pai, odeia os homens ao ponto de destruí-los. Na falta de existência coerente, agarra-se ao vazio de circunstâncias fúteis. Atualizando o "Anjo Azul", Sternheim reinventava o sentido da protagonista, intoxicando-a com Simone de Beauvoir e delírios de Woodstock.
Papel escrito para Adriana Prieto, um dia descobriremos que este foi o melhor momento de La Fisher no cinema. Reedições em dvd ou mostras podem também recuperar a "Anjo Loiro" todas as partes que lhe foram tiradas. E assim eu, Carlo Mossy e outros poucos ganharíamos em razão, por sempre incluir o nome de Alfredo Sternheim entre os maiores do cinema nacional.
7 comentários:
Andrea, pode me incluir nesse "outros poucos"! Ainda me lembro da emoção do Alfredo ao rever, depois de muito tempo, o Anjo Loiro na mostra que promovi na biblioteca. Só o fato de ter podido proporcionar aquela emoção a ele já me enche de alegria!
Beijos
Pena que eu não pude estar na biblioteca aquele dia, Sergio. Aliás, virou um templo, não? Mauro Alice, Sternheim... Beijos!
Querida Andrea,
Também gosto muito do cinema do Alfredo.
Mas o mais engraçado, é que um dos que mais gosto é o que ele, pelo menos já li, não gosta tanto:
- Herança dos Devassos.
Tenho xodó por esse filme, que me remete muito ao cinema do amado Khouri, sobretudo na ambiência.
Bjs
Eu assisti, lá na biblioteca! Inesquecível o filme.
Adorei o texto, de arrepiar!
Adilson, "Herança dos Devassos" é muito interessante mesmo, pretendo escrever sobre ele. Bjs
José Rodolfo, momento histórico o encontro na biblioteca, sem dúvida nenhuma!
O filme continua inacessível? Foi exibido alguma vez no Canal Brasil? Abraços.
Revi o filme dia desses,Vera Fischer mostrou,em todas as cenas,porque foi eleita a mulher mais bonita do Brasil em 1969.Alguns anos depois,a revista ''Veja'' soltou uma notinha dizendo:''Vera Fischer não tem encontrado dificuldades em subir na vida''.
Com aquele material genético,nem eu,rs.
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