segunda-feira, novembro 02, 2009

Pra Frente, Brasil


Poderia ser uma história trágica, sem final feliz. Interditado pela censura, "Pra Frente Brasil" (1982) acabou liberado em instância superior, sem cortes, e estreou no país em fevereiro de 1983.

A liberação foi, antes de tudo, uma conquista da sociedade civil. Em 1982 os brasileiros votaram para governador e julgavam cada vez mais perto a volta da democracia. Ninguém podia imaginar que eleições diretas para presidente só aconteceriam no distante 1989, mas as pequenas vitórias, como a realização de um filme sobre a tortura, eram saborosas. A população, cansada dos militares, começava a enxergar o que de fato acontecera nos vinte anos de ditadura.

Quase três décadas passadas, fica nítido que o diretor Roberto Farias jogava um xadrez perigoso. Não à toa sofisma, entregando o herói Jofre (Reginaldo Faria) nas mãos de um grupo de torturadores operantes à margem do Estado, financiados por um grupo de empresários inescrupulosos. Contornar o enfrentamento, a denúncia, foi saída inteligente para dizer o que precisava ser dito. Farias tinha plena consciência de que, mesmo em 1982, uma veemência maior ainda podia lhe custar caro.

Essa digressão em nada prejudica "Pra Frente, Brasil". As qualidades do filme em causar sensação de paranoia no espectador, em repisar o lado humano do drama político, permanecem intactas -- e constituem imediata associação à repressão estatal, independente desta não ser nomeada com todas as letras.

Dado curioso, o clássico da Boca do Lixo "E agora, José?" trouxe história parecida em 1979, três anos antes da polêmica de "Pra Frente, Brasil". Tanto José, vivido por Arlindo Barreto, quanto o Jofre de Roberto Farias, são inocentes úteis, empastelados pela confusão psicótica que os regimes autoritários produzem. Jofre tem que confessar, apanha desbragadamente, mas não sabe de nada: apenas aceitou carona no aeroporto com um tal de Sarmento (Cláudio Marzo) -- esse sim, militante tocaiado pelo sinistro Dr. Barreto (Carlos Zara).

As investigações do irmão de Jofre, Miguel (Antônio Fagundes), levam ao grupo de empresários em que atua seu próprio patrão, Geraldo (Paulo Porto). Como pano de fundo os jogos do Brasil na Copa de 70 e a esfuziante burocracia policial carioca, incluindo as geladeiras e os "presuntos" do Instituto Médico Legal. Quase se cheira o centro da cidade, angustioso e calorento, por onde arrastam-se Miguel e Marta (Natália do Valle), mulher de Jofre, sem notícias de seu paradeiro.

É fácil associarmos "Pra Frente, Brasil" a tantos outros filmes políticos, principalmente os do diretor grego Constantin Costa-Gravas. Mas Roberto Farias sempre repudiou a comparação, dizendo em entrevista à Revista Veja, de 16 de fevereiro de 1983, que Gravas lhe parecia um cafetão das esquerdas. Morando em Paris, o grego falava sobre realidades distantes à sua. Já o brasileiro prestava contas imediatas ao meio, na cara e coragem.

Aliás, conta a lenda que "Pra Frente, Brasil" inspirou-se em acontecimento real, vivido pelo protagonista Reginaldo. Certo dia, ao cochichar de brincadeira que "portava uma arma" para uma mulher na fila do aeroporto do Galeão, o ator foi levado para interrogatório. Do susto nasceu o argumento "Sala Escura", transformado pelo irmão Roberto no roteiro do longa.

Outra paralelo triste é o de Carlos Zara, que quase recusou o papel de torturador por ter tido seu irmão, Ricardo Zaratini, preso e torturado em 1969. Já a morte do empresário vivido por Paulo Porto remete ao fuzilamento, em 1971, de Henning Albert Boilesen, industrial acusado de ser patrocinador da Operação Bandeirantes, que arrecadava caixinha para a repressão em São Paulo.

Porém a história mais curiosa sobre o filme envolve o atual ministro das Relações Exteriores do governo Lula, Celso Amorim. Em abril de 1982, Amorim era presidente da Embrafilme, e terminou saindo do cargo depois de ter aprovado o financiamento para a produção. Isso só demonstra que a queda de braço entre Farias e a censura foi heroica.

Trívia: a proibição inicial deu-se sob a alínea D do artigo 41 da Lei 20.943, de 1946, que previa "interdição quando a obra for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades e seus agentes".

Provocando ou não provocando, Roberto Farias jogou como Tostão, Pelé e Jairzinho. Durante toda a campanha para a liberação argumentava na imprensa que seu filme não era radical, lembrava os bons serviços frente à Embrafilme entre 1974 e 1979, e mobilizava colegas e público em sua defesa. Claro, beneficiou-se também do momento histórico, quando todos testavam a veracidade da chamada "Abertura". Ao documentar o horror e posteriormente viver um calvário burocrático, Farias ajudou a escancarar novas portas para a liberdade.

Jofre, Miguel e Marta -- pessoas comuns -- conseguem até hoje nos dizer que ninguém pode se dar ao direito de omissão em momentos de exceção política. À certa altura da história uma tomada de consciência dos vivos -- em homenagem ao morto injustiçado -- lembra que, longe da ficção, gente como eles em sua maioria apoiava em 1970 o governo do General Emílio Garrastazu Médici, crentes na ilusão do Brasil Grande.

Em 1983, incomodados na sala escura, os brasileiros podiam ver em cores, no grito de "Pra Frente, Brasil", o que se contava à boca pequena todos aqueles anos, reverso das noites falsamente tranquilas do "milagre econômico". Emblema de um fim, "Pra Frente, Brasil" deixava o país inquieto para a catarse das Diretas-Já. E novas ilusões, aventuras e descontentamentos felizmente agora vividos não mais sob a alínea D, do artigo 41 da Lei 20.943, mas sob o signo iluminado da autodeterminação.


7 comentários:

Luis Santos disse...

Deliciosa, prazeirosa e divina a sua resenha. Tive o prazer de assistir "Pra Frente, Brasil" em telona, em uma sessão para alunos e professor no Espaço Unibanco, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ler sua resenha foi reviver cada momento, cada cena. E melhor ainda são as informações extras com que você sempre enriquece as resenhas. Informações essas que nunca achamos em lugar algum, só aqui!

Parabéns e continue sempre assim!
Beijos,
Luis Santos

Anônimo disse...

Andrea, assisti "Pra Frente, Brasil" em seu lançamento nos cinemas. Era um adolescente e me foi importante acompanhar, na época, toda a polêmica causada em função da censura ao filme. Roberto Farias realizou um grande filme, que foi um sucesso, arrastando filas e conquistando a crítica. A primeira metade da década de 80 foi muito pródiga em filmes com forte viés político dado o momento de abertura política. Parabéns pela resenha.

Márcio/MG

Fofão disse...

Esse eu vi demais. Umas três vezes sozinho, e depois passei para alunos umas cinco ou seis.

Como é comum acontecer com filmes "históricos", ele nos fala mais sobre a época em que foi feito do que sobre aquela em que o enredo se passa. É um misto de protesto raivoso com prudente conciliação (veja-se a nota introdutória), o que, no contexto da abertura, fazia todo o sentido.

Mesmo depois do assunto ter sido tão (mal e bem) tratado em outros filmes, este não perde o gume. Altamente recomendável.

Adilson Marcelino disse...

Vendo esse filme que gosto muito, não consigo deixar de pensar como impressões reducionistas embaçam o real entendimento.
Vivem falando mal de elenco Global, mas nesse filme temos Natália do Valle, Elizabeth Savala, e mesmo Carlos Zara e Antônio Fagundes que sempre fizeram muitas novelas, e o resultado é ótimo.
Abs

L-A. Pandini disse...

Andrea, eu tenho esse filme gravado e, apesar do horror que ele retrata, não me canso de assisti-lo. Muitos anos atrás, emprestei-o a uma colega cujas tias, com quem ela morava, achavam maravilhas "da época do Medici". Minha colega simplesmente colocou o filme no videocassete (sim, eu o tenho em VHS) e esperou acabar. A preferência das tias pela "era Medici" havia sido terrivelmente abalada...

É um filme que quero ver com meu filho, quando ele ficar maior. E que tem que ser passado em escolas, faculdades, praças públicas. Para que todos percebam o horror que uma ditadura pode trazer.

André Setaro disse...

Tê-la de volta ao espaço virtual com seus comentários singulares já é um é um prazer de 'per si'. Quanto a 'Pr'a frente Brasil', uma exegese, como de hábito, irrepreensível. Uma vez, Carlos Reichenbach disse em entrevista: "Boa crítica é aquela que faz você ter vontade de ver o filme!". Sobre ter um conteúdo analítico bem embasado, com originais observações, suas análises, quando apaixonadas (e quase sempre as são) fazem com que o leitor se torne assim, 'a priori', cúmplice do filme analisado.

Sempre gostei muito de Roberto Farias. Não somente como cineasta, mas, também, como ser humano, como pessoa, cujo lhano trato é inegável. Mas, isto, outra história.

Andrea Ormond disse...

Oi, Luis, obrigada. Gosto de salpicar esses detalhes diferentes nos textos, eles humanizam as histórias. Sou suspeita para dizer, mas assistir aos filmes na tela grande é outra coisa... Beijos

Obrigada, Márcio. Esse momento pré-Sarney teve realmente muito de esperança, de vontade de mudar. Depois o ceticismo e o conservadorismo dos anos 80 foram se instalando, e a alma dos anos 70 foi deixada na poeira.

Fofão, "Pra Frente Brasil" é um favorito das aulas de história, vira e mexe está lá. Nem sempre tocam nos dados atrás do filme, nos detalhes que poderiam deixar a platéia ainda mais interessada. Mas, de qq forma, o realismo da obra agrada e perturba a todos.

Adilson, o revanchismo de alguns críticos segue script. A gente fecha os olhos e consegue até adivinhar o que vão dizer. Na prática o que importa é o rendimento final, tanto faz a origem do ator...

Pandini, como eu estava falando com o Fofão, esse realismo do "Pra Frente Brasil" é um trunfo. Ele acaba agradando a públicos diferentes, indo direto ao ponto. Cuidado com esse vhs rs Morro de medo de perder os meus.

André, muito obrigada. Como vc sabe, tenho urticárias em relação à crítica vazia, cinza, repetitiva. Sem o balanço entre a paixão e a razão analítica, os textos se empobrecem terrivelmente. O Roberto Farias tem uma trajetória incomum e, de fato, tb ouço comentários favoráveis a ele no trato com os colegas.