Terminado o clássico “Perdida” (1975), o roteirista e diretor Carlos Alberto Prates Correia viu-se diante do dilema corriqueiro: o que fazer depois de um filme incensado, sem deixar a impressão de tê-lo conseguido na base da pura sorte? Apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria – permaneceu censurado por anos a fio – “Perdida” entrou naquele catálogo espectral de películas que despertam curiosidade e respeito do público cinéfilo.
Ainda em 1971, na estréia em longas com “Crioulo Doido”, Prates já revelava fôlego de sobra para investidas no cinema, como se podia perceber em entrevista à revista “Filme e Cultura”, n°. 18: “Não fiz [...] um filme môrno: tentei evitar a retórica, o brilhantismo aparente, o pedantismo inconsciente.”
E o que se viu em sua obra -- finalizou em 2007 "Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais" -- foi a elaboração de uma vertente fílmica na qual imagem e som se mesclam em algo não necessariamente “linear”, mas poético, dotado de métrica própria, com um quê iconoclástico.
Em “Perdida”, Helber Rangel tomava a dianteira como o adorável felliniano Zeca, declamando trovas e dodecassílabos em volta da protagonista-título (vivida por Maria Sílvia). Não havia no filme “crítica social” em sentido estrito, pois ela dava lugar à imaginação e à reconstrução do que ocorre de torpe na tela – a doméstica Estela, sem família e vilipendida pela patroa, vai parar em um bordel, pelas mãos do namorado caminhoneiro (Álvaro Freire). A tragédia era, então, transformada em sonho, no caminho do onírico, entre o real e o irreal.
“Cabaret Mineiro” (1980) – sensação no Festival de Gramado, com sete kikitos –, remexe com as obsessões de Prates, aprofundando a análise de causos regionalistas, especificamente da sua terra natal, o norte de Minas Gerais.
Aqui a tríade de personagens sem nome – o “condutor” da narrativa (Nelson Dantas), o “americano” de cabelos descoloridos (Helber Rangel) e o “capiau” – tem a mística de João Guimarães Rosa para lhes dar suporte. Inspirados no conto “Soroco, sua mãe, sua filha”, de Rosa, o argumento e o roteiro de “Cabaret Mineiro" trafegam pela linha de imagens e recortes que revelam os modos, os causos e o lirismo da gente interiorana.
Os vagões de trem que cortam a geografia, as prostitutas interditadas e que tentam os homens (vide a personagem de Tamara Taxman), o bordel, a viola, o carteado, o carnaval, o lança-perfume aspirado nos lenços, o fogão a lenha, as fotos velhas de família, as viúvas (Maria Sílvia, em atuação propositadamente clownesca), as cantigas de roda, a lezeira, a curiosidade, o assanhamento dos sentidos.
Pontuando todos esses quadros, a música original de Tavinho Moura – integrante tardio do “Clube da Esquina” dos irmãos Borges e Milton Nascimento – é de um acerto tão grande que torna impossível dissociá-la de “Cabaret Mineiro”, quanto mais em momentos-chave, como o da aparição da bailarina espanhola (Tânia Alves), por quem se apaixona o “condutor”.
Ao mesmo tempo, notem-se o Grupo Corpo de Belo Horizonte, coreografado por Rodrigo Pederneiras; “a marujada de Montes Claros”, reunião folclórica de folguedos e canções populares; a cenografia do veterano Carlos Wilson – também em ponta no filme –; a montagem de Idê Lacreta – que já trabalhara na equipe técnica de Barra Pesada (1977), A Lira do Delírio (1978) e outros –, a fotografia de Murilo Salles – diretor de “Nunca Fomos Tão Felizes”(1984), baseado no essencial “Alguma Coisa Urgentemente”, texto de João Gilberto Noll.
Como curiosidade, salta aos ouvidos a certa altura a narração do recente confronto entre Argentina e Peru na Copa de 78, quando Mário Kempes desancou o Brasil para a disputa do terceiro lugar após duvidosa vitória por seis a zero.
De tudo o que se pode perceber, Carlos Alberto Prates se embebedou do que tinha à volta e do que possuía de mais íntimo – a persona mineira –, tornando-a central para o fazer cinematográfico. A associação com o texto de Guimarães Rosa caiu-lhe como uma luva, dando o espírito e o feitiço certos para a complexa empreitada.
Ainda em 1971, na estréia em longas com “Crioulo Doido”, Prates já revelava fôlego de sobra para investidas no cinema, como se podia perceber em entrevista à revista “Filme e Cultura”, n°. 18: “Não fiz [...] um filme môrno: tentei evitar a retórica, o brilhantismo aparente, o pedantismo inconsciente.”
E o que se viu em sua obra -- finalizou em 2007 "Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais" -- foi a elaboração de uma vertente fílmica na qual imagem e som se mesclam em algo não necessariamente “linear”, mas poético, dotado de métrica própria, com um quê iconoclástico.
Em “Perdida”, Helber Rangel tomava a dianteira como o adorável felliniano Zeca, declamando trovas e dodecassílabos em volta da protagonista-título (vivida por Maria Sílvia). Não havia no filme “crítica social” em sentido estrito, pois ela dava lugar à imaginação e à reconstrução do que ocorre de torpe na tela – a doméstica Estela, sem família e vilipendida pela patroa, vai parar em um bordel, pelas mãos do namorado caminhoneiro (Álvaro Freire). A tragédia era, então, transformada em sonho, no caminho do onírico, entre o real e o irreal.
“Cabaret Mineiro” (1980) – sensação no Festival de Gramado, com sete kikitos –, remexe com as obsessões de Prates, aprofundando a análise de causos regionalistas, especificamente da sua terra natal, o norte de Minas Gerais.
Aqui a tríade de personagens sem nome – o “condutor” da narrativa (Nelson Dantas), o “americano” de cabelos descoloridos (Helber Rangel) e o “capiau” – tem a mística de João Guimarães Rosa para lhes dar suporte. Inspirados no conto “Soroco, sua mãe, sua filha”, de Rosa, o argumento e o roteiro de “Cabaret Mineiro" trafegam pela linha de imagens e recortes que revelam os modos, os causos e o lirismo da gente interiorana.
Os vagões de trem que cortam a geografia, as prostitutas interditadas e que tentam os homens (vide a personagem de Tamara Taxman), o bordel, a viola, o carteado, o carnaval, o lança-perfume aspirado nos lenços, o fogão a lenha, as fotos velhas de família, as viúvas (Maria Sílvia, em atuação propositadamente clownesca), as cantigas de roda, a lezeira, a curiosidade, o assanhamento dos sentidos.
Pontuando todos esses quadros, a música original de Tavinho Moura – integrante tardio do “Clube da Esquina” dos irmãos Borges e Milton Nascimento – é de um acerto tão grande que torna impossível dissociá-la de “Cabaret Mineiro”, quanto mais em momentos-chave, como o da aparição da bailarina espanhola (Tânia Alves), por quem se apaixona o “condutor”.
Ao mesmo tempo, notem-se o Grupo Corpo de Belo Horizonte, coreografado por Rodrigo Pederneiras; “a marujada de Montes Claros”, reunião folclórica de folguedos e canções populares; a cenografia do veterano Carlos Wilson – também em ponta no filme –; a montagem de Idê Lacreta – que já trabalhara na equipe técnica de Barra Pesada (1977), A Lira do Delírio (1978) e outros –, a fotografia de Murilo Salles – diretor de “Nunca Fomos Tão Felizes”(1984), baseado no essencial “Alguma Coisa Urgentemente”, texto de João Gilberto Noll.
Como curiosidade, salta aos ouvidos a certa altura a narração do recente confronto entre Argentina e Peru na Copa de 78, quando Mário Kempes desancou o Brasil para a disputa do terceiro lugar após duvidosa vitória por seis a zero.
De tudo o que se pode perceber, Carlos Alberto Prates se embebedou do que tinha à volta e do que possuía de mais íntimo – a persona mineira –, tornando-a central para o fazer cinematográfico. A associação com o texto de Guimarães Rosa caiu-lhe como uma luva, dando o espírito e o feitiço certos para a complexa empreitada.
7 comentários:
Oi Andréa. Como vai?
Só agora pude ver a sua volta. Meus parabéns, porque este blog é essencial para a divulgação do cinema nacional. Espero que as entrevistas também voltem, porque elas sempre foram excelentes. Gosto muito de Cabaret Mineiro e acho o Prates um dos realizadores mais originais desse período do nosso cinema. Pena que ele parou de fazer filmes.
Matheus Trunk
www.revistazingu.blogspot.com
Oi Matheus, as entrevistas voltarão sim, semana que vem estou indo para SP e devo retornar daí com algumas novidades :) Tb achava que o Prates tinha parado, mas conversando com o Adilson Marcelino do "Mulheres do Cinema Brasileiro", soube que ele lançou um filme ano passado, que agora estou doida para ver.
Prates conseguiu captar o "espírito" de Minas de maneira surpreendente. Sendo mineiro sou suspeito para dizer que este é um dos meus filmes preferidos da nossa cinematografia. Andréa, fiquei feliz por você ter lembrado do "Cabaret". Quando tiver oportunidade fale de "Noites do Sertão" também. Grande abraço.
Oi Marcio, quanto tempo :) Vou falar de toda a filmografia do Prates, que é muito significativa para o cinema nacional. Abraços.
Assisti ontem a esse magnífico filme. Fantástico é a palavra que o define. É daqueles filmes que temos certeza que assistiremos várias e várias vezes ao longo da vida. Abraços.
Vamos dançar tudo nu, tudo nu.
Tudo com o dedo no cu menos eu.
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