Se o leitor acha que já viu de tudo em cinema brasileiro, precisa assistir a "Cio - Uma Verdadeira História de Amor" (1971), dirigido por Fauzi Mansur. História polemicíssima, que dificilmente seria refilmada nos dias de hoje: a paixão do homem trintão e bem de vida, Paulo (Francisco di Franco), por um jovem engraxante de 14 anos, Darci, nordestino perdido nas ruas de São Paulo.
Tudo começa com Paulo fotografando um caminhão, cheio de migrantes, onde fixa a imagem do menino. Depois, encontram-se ao acaso, conversam; Darci engraxa sapatos em uma praça e Paulo torna-se freguês. O envolvimento aumenta quando Paulo aceita assinar um documento, responsabilizando-se pelo menor. A partir daí, será um homem apaixonado, perdido diante da figura ambígua e doce do rapaz.
Na analogia da paixão homossexual muda, devota, naquele mesmo ano Visconti realizou sua adaptação de Thomas Mann, "Morte a Venezia". Mas "Cio" nada tem de cópia ou pastiche: o roteiro -- de Luiz Castellini, Fauzi e Salatiel Coelho -- finge que encaminha-se para um happy end sensacionalista, escandaloso. Bem diferente da passividade embevecida (e auto-destrutiva) de Gustav Von Aschenbach, na observação distante ao mancebo Tadzio.
Finge tanto que logo alimentamos a expectativa de erotismo amoral, entre o adulto maduro e o menino inexperiente. Evidências não faltam. Darci narra a lide no sertão: o pai (Jofre Soares), mutilado pelo corte da carnaúba, foi traído antes de morrer pela mãe. E Paulo, hipnotizado pelo sofrimento do rapaz, aos poucos abandona sua vida passada, inclusive o noivado com uma quatrocentona (Márcia Maria), em troca da companhia e da dependência melancólica de Darci.
O mal-estar avança entre flashbacks, trilha-sonora fantasmagórica e montagem competentíssima. Darci foge, Paulo o procura pela cidade -- é o retrato do ser patético, desesperado. No último momento, o rumo das coisas muda: e, quando Darci revela-se uma mocinha (Vera Lima) -- espécie de Diadorim de Guimarães Rosa, traumatizada pela repressão familiar -- a relação finalmente ganha um sentido, onde antes havia culpa e estranheza.
Sobre a maravilhosa cena final -- congelada, no ápice da nudez de Darci, à moda de tantos filmes brasileiros da época -- muitas coisas merecem ser notadas. A melhor, imaginarmos a reação dos moralistas de plantão, no pior período da ditadura militar -- novembro de 1971 -- durante os delírios do ator Francisco di Franco -- galã viril, felpudo, machão -- beijando um (suposto) menininho esquálido e frágil. Nessa hora, a redenção heterossexual vence sem grandes delicadezas (reparem o coqueiro fálico atrás do casal, durante a nudez). Transparecesse mais sutil ou dúbio, o caso morreria na Censura.
A bela mensagem que "Cio" pretende deixar é que paixões não guardam limites e destroem aquilo que as impeça. Cláudio Portioli, ótimo diretor de fotografia, cria uma atmosfera idílica, mas o filme torna-se ainda melhor pelo estilo, ao mesmo tempo pungente e popularesco, que Fauzi Mansur utiliza sem medo, gerando uma espécie de poema insólito, simplório na forma e profundo na liberdade do conteúdo.
Fauzi, um dos cineastas mais férteis do cinema paulistano, teve seu nome envolvido em mais de oitenta títulos. Quase impossível atingir sempre o resultado que inaugurava aqui, na fase virtuosa de sua carreira, entre 1971 e 1977. Logo embarcaria na pantomima do sexo explícito, assinando principalmente como Victor Triunfo (homenageando as ruas do lugar, Victória e Triunfo), e também como Izuaf Rusnam -- talvez inspirado no Oaxiac Odéz, de Zé do Caixão -- seu nome de trás pra frente.
Gênio contraditório, naïf e sofisticado ao mesmo tempo, Fauzi Mansur soube como poucos entender o caráter industrial do cinema, e construir uma infinita obra vendável, que lhe rendeu público e fortuna. De quebra, fez autoria cuidadosa -- auxiliado pelo talento de colegas como Portioli, Castellini, Ozualdo Candeias e Antônio Meliande -- a ser estudada como paradigma, meio possível para um cinema popular de qualidade.
Tudo começa com Paulo fotografando um caminhão, cheio de migrantes, onde fixa a imagem do menino. Depois, encontram-se ao acaso, conversam; Darci engraxa sapatos em uma praça e Paulo torna-se freguês. O envolvimento aumenta quando Paulo aceita assinar um documento, responsabilizando-se pelo menor. A partir daí, será um homem apaixonado, perdido diante da figura ambígua e doce do rapaz.
Na analogia da paixão homossexual muda, devota, naquele mesmo ano Visconti realizou sua adaptação de Thomas Mann, "Morte a Venezia". Mas "Cio" nada tem de cópia ou pastiche: o roteiro -- de Luiz Castellini, Fauzi e Salatiel Coelho -- finge que encaminha-se para um happy end sensacionalista, escandaloso. Bem diferente da passividade embevecida (e auto-destrutiva) de Gustav Von Aschenbach, na observação distante ao mancebo Tadzio.
Finge tanto que logo alimentamos a expectativa de erotismo amoral, entre o adulto maduro e o menino inexperiente. Evidências não faltam. Darci narra a lide no sertão: o pai (Jofre Soares), mutilado pelo corte da carnaúba, foi traído antes de morrer pela mãe. E Paulo, hipnotizado pelo sofrimento do rapaz, aos poucos abandona sua vida passada, inclusive o noivado com uma quatrocentona (Márcia Maria), em troca da companhia e da dependência melancólica de Darci.
O mal-estar avança entre flashbacks, trilha-sonora fantasmagórica e montagem competentíssima. Darci foge, Paulo o procura pela cidade -- é o retrato do ser patético, desesperado. No último momento, o rumo das coisas muda: e, quando Darci revela-se uma mocinha (Vera Lima) -- espécie de Diadorim de Guimarães Rosa, traumatizada pela repressão familiar -- a relação finalmente ganha um sentido, onde antes havia culpa e estranheza.
Sobre a maravilhosa cena final -- congelada, no ápice da nudez de Darci, à moda de tantos filmes brasileiros da época -- muitas coisas merecem ser notadas. A melhor, imaginarmos a reação dos moralistas de plantão, no pior período da ditadura militar -- novembro de 1971 -- durante os delírios do ator Francisco di Franco -- galã viril, felpudo, machão -- beijando um (suposto) menininho esquálido e frágil. Nessa hora, a redenção heterossexual vence sem grandes delicadezas (reparem o coqueiro fálico atrás do casal, durante a nudez). Transparecesse mais sutil ou dúbio, o caso morreria na Censura.
A bela mensagem que "Cio" pretende deixar é que paixões não guardam limites e destroem aquilo que as impeça. Cláudio Portioli, ótimo diretor de fotografia, cria uma atmosfera idílica, mas o filme torna-se ainda melhor pelo estilo, ao mesmo tempo pungente e popularesco, que Fauzi Mansur utiliza sem medo, gerando uma espécie de poema insólito, simplório na forma e profundo na liberdade do conteúdo.
Fauzi, um dos cineastas mais férteis do cinema paulistano, teve seu nome envolvido em mais de oitenta títulos. Quase impossível atingir sempre o resultado que inaugurava aqui, na fase virtuosa de sua carreira, entre 1971 e 1977. Logo embarcaria na pantomima do sexo explícito, assinando principalmente como Victor Triunfo (homenageando as ruas do lugar, Victória e Triunfo), e também como Izuaf Rusnam -- talvez inspirado no Oaxiac Odéz, de Zé do Caixão -- seu nome de trás pra frente.
Gênio contraditório, naïf e sofisticado ao mesmo tempo, Fauzi Mansur soube como poucos entender o caráter industrial do cinema, e construir uma infinita obra vendável, que lhe rendeu público e fortuna. De quebra, fez autoria cuidadosa -- auxiliado pelo talento de colegas como Portioli, Castellini, Ozualdo Candeias e Antônio Meliande -- a ser estudada como paradigma, meio possível para um cinema popular de qualidade.
31 comentários:
Andréa, que interessante você ter abordado este filme. Não me lembro de ter qualquer referência sobre ele. Desconhecia a sua existência até ler este teu post, que está sensacional como sempre.
Andréa, o Fauzi é um dos meus diretores preferidos. Fez filmes excelentes como "Sinal Vermelho, as fêmeas", "Sedução" e "Me Deixa de Quatro".
Esse eu nunca vi. Saiu em VHS?
P.S.: Adorei seu texto para a Zingu #13!
Beijo
Andrea adoro o blog, sou estudante e pesquisador estudo homoerotismo no cinema brasileiro, já havia tomado conhecimento do filme, mas não de forma tão detalhada, aliás vc escreve muito bem. Com relação ao sentimento do homem pelo efebo, obiviamente ele se apaixona por um rapaz, mesmo que no final descubra que ele é uma moça. Este filme deve ser surpreendente, tem um filme de 1967 que paira sobre esta mesma temática, so que nos planos fantástico e metafórico, tambem é um filme muito bonito "O menino e o Vento", do Christensen, vc já viu? bem Andrea se possível me diga onde posso conseguir uma cópia deste filme ficaria muito feliz...abraços José Dirson
Não ví esse filme, vou dar uma olhada no Canal Brasil. Se não me engano Fauzi Mansur dirigiu um filme obscuro chamado "Atração Satânica", um terror que tira uma de filme americano.
Fala Andréa!!! Belo texto! Admito, não sabia da existência desse filme, eu diria, pelo q. vc. descreveu, q. se trata de um dos filmes mais subversores do nosso cinema, e colocar Francisco Cuoco no papel principal no auge da carreria do astro é de tirar o chapéu!!! Aliás, o Cuoco ganhou a minha admiração depois desta!
Feliz 2008!
P.S. Fauzi acaba de pegar um prêmio q. possivelmente lhe permitirá voltar a filmar. Duca, não!?
Andrea, como sempre, dando um show em suas análises.
Sem querer ser chato, e já sendo, vou aqui corrigir o eduardo: o ator é o Francisco di Franco e não o Cuoco!
Abraços e volte logo, Andrea!
Vacilei!!! rsrs Era demais esperar tanta coragem de Cuoco, não q. isso o diminua como pessoa, mas tb. não o engrandece como ator, como cheguei a imaginar. rsrs
Essas férias prolongadas me preocupam, sou fã de suas análises e espero ansiosa o fim de tais férias.
Gostaria de encontrar a Trilha sonora deste filme, pois procuro uma música da qual me idêntifiquei assistindo este filme!
Andrea, seu blog e seus textos são espetaculares! Parabéns, acaba de ganhar mais um fã!
Renato
Onde vc conseguiu esse filme???? ótimos textos!
besos,
lessi
Não vi o filme. Gostaria de ver. Gosto apenas da música.
Passion Love Them de The Magnetic Sound. Para o Anônimo que tb gosta:
http://www.mp3tube.net/br/musics/The-Magnetic-Sound-PASSION-LOVE-THEME/44786/
Muita linda ptá epóca.
Realmente dirigiu, Thales. Mas não tem muito a ver com o outros momentos bem mais altos do Fauzi.
Edu, não era o Chico Cuoco, menino rsrs Era o Francisco de Franco, aliás um moçoilo bem mais bonito. Estou aqui aguardando essa volta do Fauzi, já tive algumas informações fresquinhas, tomara que saia logo.
Obrigada, Junior. Já voltei! :)
Adriana, a ausência foi longa, mas estou tirando o atraso :)
Renato, obrigada! Passe por aqui sempre :)
Karmacoma, no Canal Brasil. Beijos
Grande link, Paulo. Dá para se ter uma prévia sensorial do filme.
Andrea,bom dia! Conheci hoje o seu blog por sinal, ótimo,meus parabéns! Voce escreve de uma forma clara e objetiva,gostei bastante! Desconhecia esse filme e gostaria se possivel de adquiri-lo! Voce póde me indicar como? Tambem estou procurando demais "O Menino e o Vento" de Carlos Hugo Christenssen, da mesma temática! Felicidades!
Andrea. Primeiro, parabéns pelo blog!!
Ate que enfim achei aluma coisa sobre este filme. Procuro a muito tempo. Mas acho que há um erro. A atriz que faz DARCI é a VERA LIMA, que atuou também em telenovelas na bandeirantes e TV TUPI.
E também ganhou o premio de melhor atriz no festival de cinema de 1971, mas não lembro ao certo o nome do festival.
A PROPOSITO, ela é MINHA MÃE!!!!!
Não estou consguindo achar este filme. Preciso adquiri-lo. Você pode me ajudar?????
Yohanno, obrigada :) Fique de olho na programação do Canal Brasil. Ambos os filmes já passaram lá.
Guilherme, confiando na sua informação -- com mãe não se brinca :), nome consertado. Mesmo no IMDB a personagem Darcy consta como sendo da atriz Vera Lúcia, não Vera Lima. Estando errado, recomendo a vc tentar consertar lá tb.
Guilherme, dê tb meus sinceros parabéns à sua mãe. Essa foi uma das melhores performances de atriz no cinema brasileiro. Abraços!
Olá!
Quero dizer que eu assisti ste filme umas cincos vezes na época.
Maravilhosa história e uma contundente cena final de nudez que ficou gravada eternamente na minha memória.
Principalmente por ser umas das primeiras cenas de nudez total em cinema que eu assiti na minha adolecencia, em época de ditadura e nos tempos em que ainda não existia no Brasil esta liberação sexual de hoje.
Apenas lamento que a cena foi muito curta e rápida.
Adoraria assistir ao filme outra vez.
Danilo.
Um belissimo trabalho da atriz Vera Lucia ou Vera Lima, um Francisco Di Franco nos seus melhores momentos e a presença da sempre bela e elegante Márcia Maria. A decepção fica com Marlene França que está totalmente perdida no papel.
Um bom exemplar do cinema nacional dos anos 70.
Assisti esse filme hoje no Canal Brasil, de madrugada. Ontem, procurando informações sobre ele é que descobri que Marlene França faleceu no mês passado. Quanto à atriz que faz Darci, nos créditos do filme seu nome aparece como Vera Lúcia, mas certamente o IMDB a confunde com outras homônimas, já que ela aparece como nascida em Portugal , em 1931. Interessante filme.
Cio ... a história de um amor verdadeiro :
Com FRancisco di FRanco, nacional de 1971, madrugada adentro no Canal Brasil, filme estranho, datado com situações que hoje seria impossível filmar sem ser malhado pela opinião pública ... embora desde a primeira cena se mata a charada .
Gostei de rever roupas, cabelos, carros que hoje não se vê mais de maneira alguma ...
Outra coisa datada é a técnica do filme, com zoons, passagens de cãmera que hoje são consideradas amadoras ...
Me prendeu em frente a tv até as 3 da manhã
vi este filme na record numa sessão chamada,sala especial,me marcou muito a música,e uma cena que ele tira a roupa e não mostra nada.
eu tinha uma lembrança muito boa desse filme, ainda mais que sou fã do Di Franco...mas fiquei decepcionado qdo o revi...os diálogos são muito ruins..mas o que salva mesmo o filme é a interpretação da menina, uma pré- Hilary Swank, mas obviamente dublada o que me deu a impressão de ser um menino qdo vi a primeira vez, pois qd vi há muito tempo simplesmente cortaram o final kkkkk
Lindissíma trilha sonora, belissímo ator Francisco Di Franco. Adorei a estoria...
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EU TENHO O CD COM A MUSICA TEMA, E SEM QUERER DESCOBRI QUE ELA ERA DE UM FILME, PROCUREI, ASSISTI, ADOREI, ME APAIXONEI PELO ATOR, E OH DESCOBRI QUE JA FALACEU, VOU ASSISTIR JERONIMO DE NOVO, E QUERIA MAIS FOTOS DA BELA ATRIZ QUE COM ELE CONTRACENOU.
Andrea, foi o comentário mais inteligente e preciso que li sobre este excelente filme acima da média realizada naquele período. Inclusive, vc. foi muito feliz em evocar a obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas que aborda tema semelhante para não dizer, fonte inspiradora. Pena que não consiguimos localizar o paradeiro daquela atriz iniciante que desempenhou tão bem o papel d eDarci, dublada, lógico.E Francisco Di Franco é um dos galãs que mais aprecio. Parabéns vou guardar ao seu comentário.
A atriz que fez Darci era minha irmã Vera Lucia, cujo nome artistico era Vera Lima. Infelizmente ela faleceu há 3 anos. E Guilherme é meu sobrinho, filho dela. Muito legal seu blog e como conta o filme. Na época não assisti, pois era menor. Gostaria de saber aonde encontro esse filme.
Obrigada,
Sonia.
Queria ver o filme completo
https://youtu.be/xZjF9Hwq710?si=cOCQJcu1qQipZbrM
https://youtu.be/xZjF9Hwq710?si=cOCQJcu1qQipZbrM
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