sexta-feira, março 30, 2007

A Pequena Órfã


Alguns anos atrás, o Festival do Rio apresentou uma pequena retrospectiva do cinema mexicano nas décadas de 40 e 50. Foram exibidas -- em tela grande, no Odeon -- pérolas como "María Candelaria" e tantas outras, a maioria de Emilio "El Indio" Fernández, considerado por muitos o mais importante diretor mexicano de todos os tempos.


Pois bem, se nas primeiras sessões compareceram alguns gatos pingados, conforme o festival foi avançando cada vez menos público aparecia. Isso naquela época do ano em que a cidade se transtorna por cinema, e cada ingresso é disputadíssimo e vendido com dias de antecedência.

Tive experiência semelhante na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, onde assisti a clássicos da cinematografia nacional como "Em Família", "Copacabana me Engana" e "Lúcia McCartney", em sessões de duas ou três pessoas. Chegava a ser uma emoção patética: a sala da cinemateca, as luzes se apagando, e os letreiros de filmes, que deveriam ser vistos por milhares, surgindo na tela de forma secreta para testemunhas heróicas que desafiavam o frio e o final de semana.

A conclusão deste preâmbulo me parece triste: somos tão condicionados pela massificação hollywoodiana, que quase tudo o que fuja a ela nem é mais condenado ao gueto; simplesmente passa a ser intocado.

O sucesso relativo de diretores europeus e asiáticos no circuito exibidor são apenas exceções que confirmam a regra: Pedro Almodóvar até mora em nossa memória afetiva, mas perguntem ao espectador comum, que assistiu a "Volver" ou "La Mala Educación", se ele conhece "Mamá Cumple Cien Años", do conterrâneo de Almodóvar, Carlos Saura
-- ou mesmo o jovem Almodóvar, de "Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón", "Entre Tinieblas", etc..

Enormes chances de não conhecer; ou melhor dizendo, somos incapazes de contextualizar Almodóvar dentro de uma tradição do cinema espanhol, simplesmente porque a crítica e a historiografia que nos oferecem permitem apenas uma visão ligeira dos cinemas locais, e um olhar amplo exclusivo ao cinema norte-americano.

Evidente que esse não é um fenômeno brasileiro; e qualquer cidadão do mundo também viu apenas um ou dois filmes dos países que falam sua língua, em contraste a uma enciclopédia daquilo que se filma preguiçosamente em Los Angeles. Perde quem não conhecer Emílio "El Indio" Fernández e sua "María Candelaria", com Dolores Del Rio e Pedro Armendáriz, o belo e suicida galã dos melodramas mexicanos.

"A Pequena Órfã" (1973), segundo filme de Clery Cunha, é tão influenciado por estes melodramas, que provoca uma única sensação positiva: a de lamentarmos que, no Brasil, não temos (ainda) um interesse verdadeiro neste fascinante subgênero cinematográfico.


Não que "A Pequena Órfã" seja um bom filme: dentre todos os de Clery é de longe o mais fraco. Baseado na novela homônima da TV Excelsior, usando o mesmo elenco base, Clery Cunha -- um dos diretores preferidos deste site -- parecia estar fazendo por menos, e utiliza inclusive a mesma trilha incidental da sua película anterior, "Os Desclassificados".

Infelizmente tudo o que em "Os Desclassificados" era força e inventividade, aqui surte efeito oposto: a montagem é claudicante, e o roteiro parece querer livrar-se dos plots o mais rápido possível. O intuitivo talento do diretor só se salva em cenas esparsas, como nas bicicletas que rodeiam a solitária Toquinho (Patrícia Ayres), enquanto ela foge da madrasta má que a obriga a pedir esmolas nas ruas.

E, óbvio, em se tratando de Clery, respiramos São Paulo até a raiz dos cabelos, ainda que uma narrativa lúgubre nos avise que "a cidade pode ser exatamente essa em que você mora. Ou pode ser outra, em outro país".

A menina Toquinho, sem paz de espírito, fugindo da megera, faz logo amizade com figuras folclóricas como o Velho Gui (Dionízio de Azevedo) e Mercadoria (Noite Ilustrada): o primeiro, um misantropo meio bruxo; o segundo, um cantor boêmio a quem ela pede para parar de beber, sendo prontamente atendida, debaixo de um chororô escruciante. Toquinho, aliás, realiza milagres e truques com uma facilidade incrível e tosca, lembrando o personagem Finis Hominis, de José Mojica Marins, aquele que saiu nu das águas e revolucionou a cidade de Santos.

Por outro lado, o ritmo obsessivo e fatalista aproxima-se da estética de "O Ébrio", de Gilda de Abreu, o que evidencia ainda mais sua filiação ao melodrama. Aqueles que deveriam ser bons, são maus; aqueles de quem nada se espera, são os redentores. Nas piores horas desconfiamos até do juiz de menores -- que tem em seu gabinete a foto oficial do então presidente Garrastazu Médici -- e que, apesar de ponderar as inclinações paternais do Velho Gui, entrega Toquinho sempre de volta à madrasta sinistra, que fatura horrores explorando crianças no Vale do Anhangabaú.

Novela condensada em forma de conto de fadas, "A Pequena Órfã" trota apressadinho, rumo a um final feliz, devorando o rocambole como quem não se importa com o recheio. Em sua urgência de comover traz como bônus a possibilidade desta ponte a melodramas fabulosos, estrangeiros ou brasileiros. Clery Cunha, sempre auxiliado pelo hours concours Jesse James Costa, era na verdade um mestre nas histórias policiais -- e elas merecia estar filmando até hoje.

8 comentários:

Anônimo disse...

Cara Andréa, você fez uma bela introdução neste post sobre A PEQUENA ORFÃ. Já passei por diversas vezes pela experiência de ser um dos "gatos pingados" em sessões de filmes off-Hollywood. Me recordo que esta situação chegou ao extremo quando fui impedido de assistir uma sessão de filme (no caso AGUENTA CORAÇÃO, de Reginaldo Farias) por ser o ÚNICO espectador presente. Esta discussão me lembrou o teu post sobre A NOITE DO MEU BEM. Com relação à tua leitura sobre o filme do Clery Cunha a análise é perfeita: uma dosagem equilibrada de paixão e senso crítico.

Atmosfeerica disse...

oi andréa,

transcrevi uma matéria sobre o khouri, publicada na Filme Cultura nº24 (1973), lá para o blog. se quiser dá uma olhada.. aliás, vc poderia colocar um link para o nosso endereço aqui no seu blog? ia ser uma força!

abraço,
Mario

Anônimo disse...

Oi Andrea tudo bom ? Vc viu Pequena Orfã como ? Em VHS ?
Bjo, Matheus.

Andrea Ormond disse...

Márcio, ser impedido de ver o filme é o cúmulo, parece esquete do Monty Python rs Na Cinemateca Brasileira pelo menos eles deixavam assistir solitariamente ao filme, o que eu até acho uma experiência interessante.

Oi, Mario, excelente iniciativa da transcrição. Outro número muito bom, em termos de Khouri, é o dossiê no n. 12/1969. Já linkei o Cinepuc :) Abraços para vc e todos do blog

Oi, Matheus. Vi em Vhs, todos os filmes do Clery Cunha, salvo alguma exceção, saíram em Vhs nos anos 80 por uma distribuidora chamada Mastervision. A cópia ainda estava bastante boa. Bjs

Unknown disse...

Andrea, tomei a liberdade de escrever um email para voce. Gostaria que vc conferisse. Obrigado

Roberto

Unknown disse...

ola, tenho uma amiga que trabalhou no filme a pequena orfã, acho isto um máximo
bjs

jose carlos disse...

MEMÓRIA DA T V E DO CINEMA-
ONG - CULTURAL DE RESGATE E PRESERVAÇÃO DE IMAGENS DA TV E CINEMA NO BRASIL
ACERVO DE COLEÇÃO, MUITOS TELECINADOS OU CONVERTIDOS DE VHS, OUTROS ADQUIRIDOS DE COLECIONADORES, COM BOA QUALIDADE DE IMAGEM E SOM, DUBLADOS OU LEGENDADOS EM PORTUGUES. (Leia com atenção: são SERIADOS, NOVELAS, DESENHOS, ANIMES, TOKUSATSUS, PROGRAMAS, MINI-SÉRIES E COMERCIAIS ANTIGOS DA TV, FUTEBOL RARO, TELECATCH, CARNAVAL, FILMES CULT, CLÁSSICOS E RAROS, DOCUMENTÁRIOS proibidos, banidos, censurados, MAKING OF, VÍDEO-AULAS (DESENHO,QUADRINHOS,ESCULTURA..),MPB ENTREVISTAS e muito mais...
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Anônimo disse...

Vale salientar a presença no elenco do cantor e ator Noite Ilustrada,além de grande artista,grande figura humana.