O Canal Brasil oferece nestes dias uma enorme retrospectiva dos filmes baseados na obra do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, morto há vinte e cinco anos atrás. Aproveitando a oportunidade, vamos abrir o ano com uma pequena série destes filmes – se não todos, os mais importantes para ilustrar a repercussão do gênio de Nelson no cinema.
Falar de Nelson Rodrigues no alvorecer de 2006 me parece difícil, muito por conta da quantidade de estudos, recriações, adaptações e diluições que castigam a obra de Nelson nos últimos anos. A esse fenômeno culpe-se benignamente Ruy Castro, que lançou em 1992 uma biografia definitiva, “O Anjo Pornográfico”, e tirou o autor do limbo em que a intelligentsia brasileira, sempre zelosa do seu index, havia colocado o autor por conta de suas posições políticas conservadoras.
Nelson, no entanto, tem a cretina pecha de “conservador” apenas para aqueles que, como ele mesmo definiria, pastam no terreno baldio e bebem água em cuia de queijo Palmira. Sua filosofia libertária era extrema e extensa, por isso talvez desconfiasse tanto de Freud e Marx, os cânones adorados por seus contemporâneos do século XX. Daí para estes contemporâneos acusarem Nelson de ser aquilo que não era – um anti-intelectual reacionário – foi um pulo.
Por outro lado, se não tinha a simpatia da parcela dita avançada da intelectualidade brasileira, também era odiado pelos legítimos conservadores, que viam na sua escrita uma ameaça aos bons costumes. Em certo momento da vida, Nelson foi portanto um homem artisticamente isolado e para onde quer que olhasse, não o viam com bons olhos.
Esse estado de coisas encontra um ápice em 1966, ano em que, por incrível encomenda do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, escreveu “O Casamento”, um dos melhores romances da literatura nacional de todos os tempos.
“O Casamento” (1975), o filme, dirigido por seu amigo Arnaldo Jabor, é muito bom, mas não consegue ser um décimo do que é o livro, a obra-prima. Talvez porque bons romances não dêem bons filmes, Nelson no cinema funcionou bem apenas na adaptação de suas peças. Logo, para falarmos do filme de Jabor, talvez seja melhor voltarmos nossas atenções para a força da obra literária e o resultado da transposição de uma linguagem para outra.
“O Casamento” versa basicamente sobre a fúria do corpo sufocada pela hipocrisia social e moral. Sabino Uchôa Maranhão (Paulo Porto) é um homem bem-sucedido, que vai casar a filha Glorinha (Adriana Prieto), a quem devota paixão incestuosa. O noivo de Glorinha, por sua vez, é um homossexual enrustido, que beija Zé Honório (André Valli), e é pego em flagrante pelo Doutor Camarinha (Fregolente), ginecologista de Glorinha e pai de Antônio Carlos (Érico Vidal), playboy tresloucado com quem Glorinha perdeu a virgindade. Contando assim, essa ciranda de personagens interligados parece fácil, mas Nelson oferece ao leitor o inferno em vida através do que anda pela cabeça das suas criaturas.
No filme há uma nítida diluição destes pensamentos escusos rodrigueanos. Antes podemos dizer que o universo subjetivo apresentado no livro é tão forte que acaba por ser inadequado ao audiovisual, gerando uma obra de meia-força. Jabor entende Nelson, isso parece visível, mas o romancista Nelson é tão grande que o cineasta Jabor apenas o toca na superfície, sem conseguir aprofundá-lo.
A melhor parte do livro – e do filme – no entanto são coincidentes. Trata-se do dia em que Glorinha perdeu a virgindade. Antônio Carlos guia o seu carro pela praia de Copacabana, passeando com Glorinha e uma amiga dela, as duas hipnotizadas por sua cafajestagem.
Depois de várias ameaças de suicídio teatralizadas, Antônio Carlos arrasta as garotas até a casa de Zé Honório, que pretende ter relações sexuais com outro homem na frente do pai, que o surrava por ser gay. André Valli dá aqui seu show particular no papel do homossexual amargo, com sede de vingança. Mas o que no livro soava apavorante, doentio, no filme transparece apenas como encenação vazia, histérica.
E detalhe interessante: na obra de Nelson, Glorinha e a amiga mantêm relações sexuais uma com a outra por ordem de Antônio Carlos, antes que ele deflore Glorinha. No filme essa parte fundamental da trama é descartada – talvez por conta da censura de 1975. Já a parte onde Sabino avança sobre sua secretária Noêmia (Camila Amado), encontra na dupla de atores uma tensão fantástica, se igualando ao que no livro era respiração suspensa, delírio sadomasoquista.
De todos os personagens transpostos, o mais fraco talvez seja Antônio Carlos, fascinante e dionisíaco na obra literária e vacilante e estereotipado no filme. Ao final, quando Sabino tenta agarrar Glorinha, Noêmia é morta pelo namorado (Nelson Dantas) e, num movimento de espelhamento de culpa, Sabino se entrega como responsável pela morte de Noêmia, temos a nítida sensação de que assistimos a um grande espetáculo. Mas a plenitude e a virtude da história que acabou de ser contada residem ainda no texto de Nelson, a ser lido e relido.
Não à toa sua obra encantou e encanta gente tão díspare quanto o cineasta José Antônio Garcia; o ex-advogado, então cineasta e hoje cronista Arnaldo Jabor (que na dúvida copia na forma o estilo de Nelson para agradar seus leitores); e toda uma nova geração de atores e atrizes teatrais, para quem Nelson é a gigantesca referência estudada em teatro brasileiro. Merecidamente, o antigo reacionário maldito se tornou quase uma unanimidade – o que talvez o desagradasse um bocado.
Falar de Nelson Rodrigues no alvorecer de 2006 me parece difícil, muito por conta da quantidade de estudos, recriações, adaptações e diluições que castigam a obra de Nelson nos últimos anos. A esse fenômeno culpe-se benignamente Ruy Castro, que lançou em 1992 uma biografia definitiva, “O Anjo Pornográfico”, e tirou o autor do limbo em que a intelligentsia brasileira, sempre zelosa do seu index, havia colocado o autor por conta de suas posições políticas conservadoras.
Nelson, no entanto, tem a cretina pecha de “conservador” apenas para aqueles que, como ele mesmo definiria, pastam no terreno baldio e bebem água em cuia de queijo Palmira. Sua filosofia libertária era extrema e extensa, por isso talvez desconfiasse tanto de Freud e Marx, os cânones adorados por seus contemporâneos do século XX. Daí para estes contemporâneos acusarem Nelson de ser aquilo que não era – um anti-intelectual reacionário – foi um pulo.
Por outro lado, se não tinha a simpatia da parcela dita avançada da intelectualidade brasileira, também era odiado pelos legítimos conservadores, que viam na sua escrita uma ameaça aos bons costumes. Em certo momento da vida, Nelson foi portanto um homem artisticamente isolado e para onde quer que olhasse, não o viam com bons olhos.
Esse estado de coisas encontra um ápice em 1966, ano em que, por incrível encomenda do ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, escreveu “O Casamento”, um dos melhores romances da literatura nacional de todos os tempos.
“O Casamento” (1975), o filme, dirigido por seu amigo Arnaldo Jabor, é muito bom, mas não consegue ser um décimo do que é o livro, a obra-prima. Talvez porque bons romances não dêem bons filmes, Nelson no cinema funcionou bem apenas na adaptação de suas peças. Logo, para falarmos do filme de Jabor, talvez seja melhor voltarmos nossas atenções para a força da obra literária e o resultado da transposição de uma linguagem para outra.
“O Casamento” versa basicamente sobre a fúria do corpo sufocada pela hipocrisia social e moral. Sabino Uchôa Maranhão (Paulo Porto) é um homem bem-sucedido, que vai casar a filha Glorinha (Adriana Prieto), a quem devota paixão incestuosa. O noivo de Glorinha, por sua vez, é um homossexual enrustido, que beija Zé Honório (André Valli), e é pego em flagrante pelo Doutor Camarinha (Fregolente), ginecologista de Glorinha e pai de Antônio Carlos (Érico Vidal), playboy tresloucado com quem Glorinha perdeu a virgindade. Contando assim, essa ciranda de personagens interligados parece fácil, mas Nelson oferece ao leitor o inferno em vida através do que anda pela cabeça das suas criaturas.
No filme há uma nítida diluição destes pensamentos escusos rodrigueanos. Antes podemos dizer que o universo subjetivo apresentado no livro é tão forte que acaba por ser inadequado ao audiovisual, gerando uma obra de meia-força. Jabor entende Nelson, isso parece visível, mas o romancista Nelson é tão grande que o cineasta Jabor apenas o toca na superfície, sem conseguir aprofundá-lo.
A melhor parte do livro – e do filme – no entanto são coincidentes. Trata-se do dia em que Glorinha perdeu a virgindade. Antônio Carlos guia o seu carro pela praia de Copacabana, passeando com Glorinha e uma amiga dela, as duas hipnotizadas por sua cafajestagem.
Depois de várias ameaças de suicídio teatralizadas, Antônio Carlos arrasta as garotas até a casa de Zé Honório, que pretende ter relações sexuais com outro homem na frente do pai, que o surrava por ser gay. André Valli dá aqui seu show particular no papel do homossexual amargo, com sede de vingança. Mas o que no livro soava apavorante, doentio, no filme transparece apenas como encenação vazia, histérica.
E detalhe interessante: na obra de Nelson, Glorinha e a amiga mantêm relações sexuais uma com a outra por ordem de Antônio Carlos, antes que ele deflore Glorinha. No filme essa parte fundamental da trama é descartada – talvez por conta da censura de 1975. Já a parte onde Sabino avança sobre sua secretária Noêmia (Camila Amado), encontra na dupla de atores uma tensão fantástica, se igualando ao que no livro era respiração suspensa, delírio sadomasoquista.
De todos os personagens transpostos, o mais fraco talvez seja Antônio Carlos, fascinante e dionisíaco na obra literária e vacilante e estereotipado no filme. Ao final, quando Sabino tenta agarrar Glorinha, Noêmia é morta pelo namorado (Nelson Dantas) e, num movimento de espelhamento de culpa, Sabino se entrega como responsável pela morte de Noêmia, temos a nítida sensação de que assistimos a um grande espetáculo. Mas a plenitude e a virtude da história que acabou de ser contada residem ainda no texto de Nelson, a ser lido e relido.
Não à toa sua obra encantou e encanta gente tão díspare quanto o cineasta José Antônio Garcia; o ex-advogado, então cineasta e hoje cronista Arnaldo Jabor (que na dúvida copia na forma o estilo de Nelson para agradar seus leitores); e toda uma nova geração de atores e atrizes teatrais, para quem Nelson é a gigantesca referência estudada em teatro brasileiro. Merecidamente, o antigo reacionário maldito se tornou quase uma unanimidade – o que talvez o desagradasse um bocado.
9 comentários:
cada vez fico mais puto de não ter o canal Brasil...fazer o que né?
Bom ano novo e continue assim,o blog está excelente!
beijão
Cara Andréia,
Eu sempre fui fã do Nelson. Li este livro e Engraçadinho quando tinha uns 12, 13 anos, sendo fanático por ele, ele é demais mesmo. O filme é muito bom, creio eu, sendo os atores o melhor, realmente, um elenco fantástico e a beleza da Adriana Prieto, que o nosso grande e pobre amigo Mossy confessou que tentou conquistá-la a todo custo (e devia mesmo). Mas voltando ao caso, Nelson é um gênio total e é o escritor brasileiro que mais me influenciou, que mais me deixou pirado e que mais gosto. E mais uma punhalada nos nossos amigos cinemanovistas, nunca fui fã de Graciliano Ramos. Mas de Nelson, pretendo ler em breve a biografia do grande Ruy Castro, que relançou toda a obra dele. Um outro reacionário/revolucionário fantástico e grande amigo do Nelson é o grande JOSÉ RAMOS TINHORÃO e eu tive a oportunidade de um dia estar ao lado dele. Tinhorão, não sei se você lembra é o maior jornalista musical que esse país já teve e aparece em "Engraçadinha", genialmente. Perguntei pra ele sobre o Nelson, e ele me disse que quando ele (Tinhorão) falava mal da Bossa Nova, a pessoa que mais genialmente o criticou foi o Nelson. O Nelson dizia pra ele " Não gostar de Bossa Nova Tinhorão, é igual mergulhar na piscina e não vê que ele é azul !". Ele me disse também que o Nelson não era reaça, que ele fazia isso porque dava sucessso e o que dava sucesso ele fazia, e olha que o Tinhorão, tive com ele no ano passado, ele tem 77 anos e sempre foi comunista fervoroso de carteirinha, até hoje, não sei porque ele iria mentir.
Oi Dr. Lorax, Canal Brasil é item de primeira necessidade mesmo, eu que o diga rs mas "O Casamento" é tranquilo de achar,lançaram em dvd, dá pra alugar fácil :) Obrigada, e vamos com os nossos sites em 2006. Beijão!
Matheus, depois de um depoimento desses, o que eu tenho a dizer? É maravilhoso como um livro, uma crônica, de um autor de primeira grandeza pode mudar a nossa vida. Nem todo mundo passa por esse tipo de experiência, infelizmente, mas tem textos do Nelson que até hoje eu leio e me emociono. A biografia do Ruy Castro é impressionante, os dramas que iam acontecendo ao longo da vida dele parecem ficção. Também fico me perguntando o que o Nelson teria achado dos anos 80, por exemplo, em plena era dos fiscais do Sarney rs A quantidade de achados que ele diria, com aquela clarividência que só os mestres possuem.
Homem de bem!!!
Eu gosto dos filmes que vi do Jabor, especialmente Eu Sei que Vou te Amar, mas esse do post em especial ainda não vi...
Ailton, hahahahahaha boa lembrança! O vaticínio do pai só serviu pra neurotizar ainda mais o Sabino... Um abração!
Michel, pensando na filmografia do Jabor, acho que "O Casamento" fica na média, particularmente prefiro "Toda Nudez", "Tudo Bem" e "Eu Te Amo". Abração!
Peço espaço para elogiar a Norma Blum, que dublou o personagem da Prieto em razão de sua morte logo após as filmagens. Quando vi pela primeira vez o filme fiquei muito impressionado com timbre da atriz. Depois que descobri a dublagem (contada pelo Jabor no extra do DVD) passei a gostar menos da atriz, embora reconheça a força de sua presença nas cenas, mas jamais saberemos como foi sua entonação.
A dublagem no cinema nacional,só piorava a performance dos nossos atores.Devia ser melhor estudada essa questão.
Eu gosto de várias adaptações do Nelson Rodrigues, mas essa aqui é horrível!
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