Ao contrário de Arnaldo Jabor, que partiu da experiência de condensar “O Casamento” – romance de mais de 200 páginas –, Neville D’Almeida teve que expandir o enredo de “A Dama do Lotação” (1978) – pequeno conto originalmente publicado em “A Vida Como Ela É...”, coluna assinada por Nelson Rodrigues em “A Última Hora” entre 1951 e 1961.
Antes de virar série de televisão nos anos 90, “A Vida Como Ela É...” aproximou o escritor de um publico heterogêneo, acostumado tanto a Dostoievski quanto a embrulhar peixe no jornal da véspera.
Essa frugalidade do material jornalístico – assumida sem traumas por outro mestre da literatura, Rubem Braga – não impediu o refinamento cada vez maior dos textos de Nelson, um jovem senhor àquela época, no auge dos seus quarenta e tantos anos de idade, acostumado a teclar na máquina Remington com os dois dedos indicadores.
Em “A Dama do Lotação” Solange e Carlinhos, namorados de infância, casam-se e o marido começa a suspeitar da esposa. Ficamos sabendo detalhes das famílias, do melhor amigo de Carlos, Assunção, e das rotinas de Solange, interessada a entregar-se todos os dias ao primeiro homem que visse no “lotação” – sinônimo antigo para os ônibus do perímetro urbano da antiga capital federal.
Frágil e recatada com Carlos, Solange recusa-se a deitar com ele. Acreditando-se pura, sem qualquer indício de culpa, preserva o amor de Carlos acima de todas as coisas, deixando a parte “suja” aos homens quaisquer.
Na versão adaptada e dirigida por Neville D’Almeida, há a intenção clara de dar caras e corpos aos conflitos subentendidos por Nelson, narrados no tempo em que não havia motéis, pílulas anticoncepcionais e o máximo de bestialidade que chegava ao público eram as curras de jovens consumidores de lança-perfume.
Assim, a atmosfera ultra-naturalista do filme, de suor, calor e sexo, está refletida em muitas criações do diretor. O episódio em que Assunção (Paulo César Peréio) e Solange (Sônia Braga) flertam com os pés debaixo da mesa do jantar, é ambientado no show das mulatas de Sargentelli, o “Oba-Oba”. Na crônica, o momento servia de mero gancho, no qual Carlos (Nuno Leal Maia) percebia o algo mais entre os dois.
Idem a clássica cena do banho de cachoeira com o motorista de ônibus, Bacalhau (Roberto Bonfim) – amigo do trocador Mosquito (o impagável e saudoso Ivan Setta) –; o psicanalista entediado (Cláudio Marzo) –; o affair com pai de Carlos (Jorge Dória), chicoteado pelas roupas da nora; os coitos no meio do cemitério – enquanto passa o cortejo de sepultamento –, na praia, com um vadio (Paulo Villaça) ou no mato, com um ex-funcionário do marido.
O caso entre a falecida mãe de Carlos e uma amiga de colégio (Yara Amaral), merece consideração especial. No filme a carta bombástica, escrita pela última e entregue ao viúvo, parece ter saído das páginas de “Suzana Flag” – pseudônimo de Nelson, nos tempos de conselheiro sentimental –, apesar de não existir no conto original de “A Dama do Lotação”.
Mas quando Carlos descobre as aventuras de Solange e declara-se morto para o mundo, trajado de cadáver sobre a cama, as mãos fixas, entrelaçadas sobre o peito, voltamos às sensações do texto em estado bruto. O fim revela o realismo quase-fantástico de Nelson, na imagem da morte imponderável, carregada nas tintas até para o próprio recreamento do escritor.
Na ocasião do filme, a estrela Sônia Braga estampava as telenovelas, as revistas “Amiga”, e os produtos de exportação internacional, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Encarou o desafio de encarnar a neurótica com grande talento, a ser considerado sem os preconceitos que rondam atrizes bem fornidas. Delicada ou fora do eixo, uivando no encontro com Dória, transtornada entre os bancos do ônibus, a Solange de Sônia Braga não é diminuída na comparação com a ficcional. Ressalte-se também a qualidade da trilha sonora de Caetano Veloso, assobiada por dez entre dez pessoas depois da projeção.
Se Neville D’Almeida empenhasse uma porcentagem da energia gasta em suas produções, para a consagração como diretor “sério”, poderia se deitar em berço esplêndido, com medalhões de louvor. O trabalho em “A Dama do Lotação” deve ser visto com calma por suas referências inter e extra-textuais, além de alcançar a sexualidade feérica, objetivo óbvio.
Nelson co-produziu “A Dama do Lotação” – como de praxe nas adaptações de seus filmes nos anos 70, levando consigo a família Rodrigues, irmã e filho, para participar da equipe técnica. Nas entrevistas, repetia a máxima conhecidíssima, rebatendo comentários sobre o excesso de cenas picantes em adaptações para sua obra. Ouçam ao fundo aquela voz inconfundível, emitida num fiapo de força, antes de cair o pano: “Mas afinal o que vocês queriam do filme? Meu doce de coco, um filme não é um bombom de cereja!”.
9 comentários:
Maravilha de texto! E isso que nem sou muito fã do filme. Não sabia essa da famíla do Nelson produzir os filmes. A frase dele que tu citou no fim é genial. E a Sônia Braga está MA-RA-VI-LHO-SA. Desculpe-me a liberdade, Andréa, mas você não sabe o que ver a Sônia nesse filme faz com a cabeça de um garoto de 16 anos.
Cara Andréia, prefiro sinceramente OS SETE GATINHOS sinceramente como filme que este DAMA DO LOTAÇÃO. Mas acho que o Neville aproveitou a conhecidência do texto do Nelson com A BELA DA TARDE do Buñuel e chamou a Sônia pra estrelar o filme. Ela foi realmente muito corajosa, em fazer um filme como esse quando era muito famosa e no auge da beleza. Mas o Nelson ajudou no roteiro também, pelo que sei em uma entrevista que o Neville deu ao Canal Brasil recentemente no "Tarja Preta". O Doria, está perfeito. O elenco é realmente genial, uma geração extraordinária que o cinema brasileiro produziu. Quando o cara entra no cemitério com ela e ela diz "adoro o cemitério, ás vezes leio as lápides, procurando a minha" é genial !!
Que blog legal, Andréa!
Grata surpresa.
Adoro cinema brasileiro e certamente voltarei aqui mais vezes!
Um abraço.
Márcio.
Milton, o filme remete muito à adolescência pra mim. Por isso, pode ficar tranquilo que entendo o furor que a Sonia Braga causava nos adolescentes em geral rs A maior prova era a quantidade de reprises na tv, o tempo todo.
Matheus, o bom das adaptações da obra do Nelson dos anos 70 é que a produção podia contar com os pitacos do mestre em pessoa. E quando acabava o enredo do texto que ele tinha escrito, já ia acrescentando essas tiradas geniais. É por essas outras que foi uma maravilha de geração mesmo, as coisas não pareciam requentadas, superficiais. Só a atuação do Lima Duarte no "Os Sete Gatinhos", por exemplo, diz tudo, não me canso de rever!
Márcio, muito obrigada, Visitei seu blog e tb gostei muito. Por coincidência faço Direito, como vc :) Um abraço.
Porra Andrea, genial seu blog, e acerca do Neville penso que ele cometeu atentados sérios á cabeça dos jovens que assitiam seus belos filmes como meros filmes eroticos, porque ele conseguiu ir muito fundo nas paranoias que o Nelson criou ao relatar, as coisas que atravessam o cotidiano dos homens e mulheres médios, fazendo passar coisas capazes de destruir os mais belos modelitos de conduta....
Salve, a andrea, o Nelson e o Neville....
Abraços sinceros, Danilo
Assim como "Os Sete Gatinhos",
foi um filme ousado para a época.
Embora não seja um filme de autor,
pois Sônia Braga no auge da beleza
e da fama herdada de "Dona Flor"
domina a cena - e entrando nua na
piscina do motel, então hein? -
e faz desse filme um sucesso,
inclusive de bilheteria.
Andreia,
Leio todas as suas resenhas antes de ver um filme no Canal Brasil. Todas são geniais.
Contudo, com relação a Dama do Lotação, já te passou a idéia de que, na verdade, ela sonhava com as transas, não realizando-as?
Se você prestar atenção, antes de cada transa aparecia uma cena com o casal dormindo no quarto.
O final do filme, com o psicanalista dizendo que aquilo era 'normal', pra mim, deixa isso bem claro.
Abs.
Curiosidades desse filme:
1 milhão de espectadores: Foi o primeiro filme a, no Brasil, alcançar a marca de um milhão de espectadores em apenas uma semana.
Grande público: É o 3º maior público do cinema brasileiro, com 6,5 milhões de espectadores. Acima dele estão apenas Tropa de Elite 2 (2010) e Dona Flor e seus Dois Maridos (1976).
Censura: Teve uma cena cortada pela Censura, na qual personagens fumavam um cigarrinho "que não é o convencional", diz o parecer.
A resenha e até os comentários foram clonados no blog ''Papo de Cinema'',por um comentarista,não pelo crítico.
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