A morte era obsessão para Nelson Rodrigues. Suburbano universal, criado no então longínqüo bairro de Aldeia Campista, no Rio, Nelson aproximava-se da morte com a curiosidade dos tempos de menino, quando assistia de calças curtas a velórios “sicilianos”, em que as viúvas agarravam-se aos caixões.
Nelson partiu aos 68 anos, em 21 de dezembro de 1980. Enquanto celebravam-se ainda os vinte e cinco anos de seu desaparecimento, no dia 22 do mesmo mês de 2005, há exatamente uma semana atrás, falecia prematuramente o diretor José Antônio Garcia, aos 50 anos de idade.
Além de “O Corpo” (1991), filme que sempre surge à tona quando se toca na produção cinematográfica de José Antônio, a trilogia formada por “O Olho Mágico do Amor” (1981), “Onda Nova” (1983) e “Estrela Nua” (1984) é particularmente saborosa. São obras da mais plena juventude e todas elas co-dirigidas em parceria com o amigo Ícaro Martins.
O roteiro de Garcia “Estrela Nua” traz também uma ponte interessante para o imaginário de Nelson Rodrigues – aspecto nem sempre diagnosticado por parte da crítica –, em um elo de ligação que reflete o entendimento artístico entre os dois.
Glória, dubladora escolhida para substituir Ângela (Cristina Aché) – estrela de cinema, vítima de um acidente de carro –, incorpora fantasmagoricamente a personagem vivida pela atriz. Incestuosa, a personagem de Ângela era adepta de um romance doentio com o pai, levado às últimas consequências com todas as fantasias do gênero.
“O Casamento” – livro célebre de Nelson, espécie de “Ritual dos Sádicos” da literatura nacional, em função dos problemas com a censura – tinha uma mesma personagem central chamada Glória, filha do Dr. Sabino, que sublimava o amor carnal pelo pai através de gestos e atenções. José Antonio e Ícaro colocam o pé no acelerador e em diálogos explícitos ou subentendidos, usam da mitologia rodrigueana combinada com a tendência de subversão da linguagem fílmica.
Mas este é apenas um dos fragmentos que encantam o espectador de “Estrela Nua”. São muitas as informações jogadas pela dupla e que vão se acumulando. Clarice Lispector – lida por Glória e recuperada na narrativa –; cigarros Hollywood – nem tanto pelo merchandising, mas pela lembrança do cinemão americano –; o poster de “Quelé do Pajeú” – filme maldito de Anselmo Duarte –; as músicas dos Mutantes – quando pairava sobre o grupo um certo ostracismo, nos anos oitenta –; Jean-Luc Godard de “Uma Mulher é Uma Mulher” – no apelo bastante feminino do filme.
Assim, a manipulação das regras do cinema – traço marcante em outro colega de “geração” da dupla, Guilherme de Almeida Prado – é um mote utilizado diversas vezes. Quando acaba a projeção, percebemos que na verdade assistimos a três filmes embalados em um único: o “Estrela Nua” de Garcia e Martins; o outro, dublado por Glória; e o terceiro, sonhado por Glória e Ângela, quando então percebemos que são amantes.
Outra característica da trilogia Garcia-Martins está nos personagens homossexuais – lésbicas e gays –, com a non-chalance de quem não via neles qualquer tabu que desmerecesse sua apresentação ao público brasileiro. Moralistas e conservadores devem ficar até hoje com os pêlos em pé ao acompanharem as andanças de Glória e Ângela, do casal Tamara (Vera Zimmerman) e Renée (Selma Egrei), além de Serginho (Patricio Bisso, na voz de Sérgio Mamberti), freqüentador de sauna gay.
Há também uma trupe de profissionais repetida nos filmes, o que os torna afetivamente próximos dos projetos que os diretores criavam. Camurati e Moreyra aparecem nos três, Bisso e Zimmerman em “Estrela Nua” e “Onda Nova”, Arrigo Barnabé – músico e ator em “O Olhar” e “Estrela Nua”. José Antônio e Ícaro surgem em aparições-relâmpago.
A capacidade de superação da dupla sofreria com a política czarista dos anos Collor. Separados, cada qual tocaria suas atividades, ampliando mesmo a atuação, dividida entre o cinema e o teatro. José Antônio dirigiu em 2005 a peça “A Pecadora Querimada e os Anjos Harmoniosos”, baseada uma vez mais nos escritos de Clarice Lispector – como havia sido “O Corpo” e as citações de “Estrela Nua”.
Para relembrá-lo, vale assistir seus divertidíssimos filmes, repletos de um humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida.
Nelson partiu aos 68 anos, em 21 de dezembro de 1980. Enquanto celebravam-se ainda os vinte e cinco anos de seu desaparecimento, no dia 22 do mesmo mês de 2005, há exatamente uma semana atrás, falecia prematuramente o diretor José Antônio Garcia, aos 50 anos de idade.
Além de “O Corpo” (1991), filme que sempre surge à tona quando se toca na produção cinematográfica de José Antônio, a trilogia formada por “O Olho Mágico do Amor” (1981), “Onda Nova” (1983) e “Estrela Nua” (1984) é particularmente saborosa. São obras da mais plena juventude e todas elas co-dirigidas em parceria com o amigo Ícaro Martins.
O roteiro de Garcia “Estrela Nua” traz também uma ponte interessante para o imaginário de Nelson Rodrigues – aspecto nem sempre diagnosticado por parte da crítica –, em um elo de ligação que reflete o entendimento artístico entre os dois.
Glória, dubladora escolhida para substituir Ângela (Cristina Aché) – estrela de cinema, vítima de um acidente de carro –, incorpora fantasmagoricamente a personagem vivida pela atriz. Incestuosa, a personagem de Ângela era adepta de um romance doentio com o pai, levado às últimas consequências com todas as fantasias do gênero.
“O Casamento” – livro célebre de Nelson, espécie de “Ritual dos Sádicos” da literatura nacional, em função dos problemas com a censura – tinha uma mesma personagem central chamada Glória, filha do Dr. Sabino, que sublimava o amor carnal pelo pai através de gestos e atenções. José Antonio e Ícaro colocam o pé no acelerador e em diálogos explícitos ou subentendidos, usam da mitologia rodrigueana combinada com a tendência de subversão da linguagem fílmica.
Mas este é apenas um dos fragmentos que encantam o espectador de “Estrela Nua”. São muitas as informações jogadas pela dupla e que vão se acumulando. Clarice Lispector – lida por Glória e recuperada na narrativa –; cigarros Hollywood – nem tanto pelo merchandising, mas pela lembrança do cinemão americano –; o poster de “Quelé do Pajeú” – filme maldito de Anselmo Duarte –; as músicas dos Mutantes – quando pairava sobre o grupo um certo ostracismo, nos anos oitenta –; Jean-Luc Godard de “Uma Mulher é Uma Mulher” – no apelo bastante feminino do filme.
Assim, a manipulação das regras do cinema – traço marcante em outro colega de “geração” da dupla, Guilherme de Almeida Prado – é um mote utilizado diversas vezes. Quando acaba a projeção, percebemos que na verdade assistimos a três filmes embalados em um único: o “Estrela Nua” de Garcia e Martins; o outro, dublado por Glória; e o terceiro, sonhado por Glória e Ângela, quando então percebemos que são amantes.
Outra característica da trilogia Garcia-Martins está nos personagens homossexuais – lésbicas e gays –, com a non-chalance de quem não via neles qualquer tabu que desmerecesse sua apresentação ao público brasileiro. Moralistas e conservadores devem ficar até hoje com os pêlos em pé ao acompanharem as andanças de Glória e Ângela, do casal Tamara (Vera Zimmerman) e Renée (Selma Egrei), além de Serginho (Patricio Bisso, na voz de Sérgio Mamberti), freqüentador de sauna gay.
Há também uma trupe de profissionais repetida nos filmes, o que os torna afetivamente próximos dos projetos que os diretores criavam. Camurati e Moreyra aparecem nos três, Bisso e Zimmerman em “Estrela Nua” e “Onda Nova”, Arrigo Barnabé – músico e ator em “O Olhar” e “Estrela Nua”. José Antônio e Ícaro surgem em aparições-relâmpago.
A capacidade de superação da dupla sofreria com a política czarista dos anos Collor. Separados, cada qual tocaria suas atividades, ampliando mesmo a atuação, dividida entre o cinema e o teatro. José Antônio dirigiu em 2005 a peça “A Pecadora Querimada e os Anjos Harmoniosos”, baseada uma vez mais nos escritos de Clarice Lispector – como havia sido “O Corpo” e as citações de “Estrela Nua”.
Para relembrá-lo, vale assistir seus divertidíssimos filmes, repletos de um humor sacana e gaiato que não existe mais. E acima de tudo, pensar na arte como o gigante que engole o mundo, e que despreza a barreira misteriosa da morte, eternizando a vida.
9 comentários:
Andréa, parece que os Deuses do Cinema conspiraram para que publicassemos posts sobre o Zé Antônio no mesmo dia!!! Essa ponte que você faz com o universo rodrigueano é inovadora, e ajuda a iluminar vários aspectos da trilogia. Eu penso que Estrela Nua também antecipa o Almodovar de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Belíssimo texto! Agora vou rever O Olho Mágico do Amor, aguardo sua resenha sobre ele hehehe! Beijão!!!
Andréa, bela homenagem. Assim como o Sérgio, também foi novidade para mim a ponte Rodrigueana. Sempre que pensava no Estrela Nua lembrava do Mulheres... do Almodóvar e do Mulholand Drive (sim, senhor!!!!) do David Lynch. Um dos melhores filmes feitos nessa primeira década do século 20 encontra eco, 20 anos antes, num filme brasileiro muito do bom.
Bela homenagem a esse grande diretor, Andréa! Fiquei embasbacado com o desprezo das publicações perante a partida de Zé Antônio. "O Corpo" é um ótimo filme, uma leitura um pouco mais ácida e divertida - mas sem perder o âmago - do conto de Clarice Lispector. Obrigado pelo recado deixado no meu blogue, um ótimo 2006 pra você e não pare nunca de escrever no Estranho Encontro, que figura entre os melhores blogues de cinema, totalmente dedicado à sétima arte brasileira com textos magistrais. Abraços!!
Quando fui presidente do cineclube da Unesp da minha cidade, em fins dos anos 80, projetamos, em 16mm, 'estrela nua' e 'olho mágico do amor', resultado de um convênio com a então Delegacia Regional de Cultura. Foi um sucesso! A grande maioria dos frequentadores destas sessões era formada por colegas que, como eu, cursava direito em outro faculdade que não a Unesp. Seguiu-se um debate bem legal e ainda hoje vivo na minha memória. Foi a única vez que assisti esses dois filmes. Vc encontra o filme do Pabst na www.laserland.com.br
Sergio, o amor pelo Cinema tem dessas coisas cabalísticas mesmo, cada vez mais me conscientizo disso... Falando no Almodóvar, acho até que o "Entre Tinieblas", filmado mais ou menos na mesma época, tem umas sacações anárquicas que lembram o "Estrela Nua". Ambos filmaços, com certeza. Beijão pra vc!!
Milton, sempre achei interessante as citações de Nelson na obra do José Antônio Garcia. O próprio argumento de "Estrela Nua" parece bastante com "A Vida Como Ela É". E não duvido do David Lynch ter assistido ao Zé Antônio, tem muita coisa inovadora feita em cinema brasileiro nos anos 70/80 que aparece nitidamente no cinema americano e europeu dos anos 90...Mas vai dizer isso a um povo que se atormenta com complexos de inferioridade...
Fernando, achei absurdo o jeito displicente com que a imprensa tratou a morte do Zé Antônio, um diretor original e importante, daí corri para rever os filmes e escrever esta pequena homenagem. Torço para que vc continue tb a nos brindar com seus textos no Focinho, vc escreve excepcionalmente bem e sabe assistir e dissecar um filme com talento ímpar :) Abração!!
Oi Walner, legal cada pessoa ter uma história de vida relacionada com os filmes do Zé Antônio. Quando eu era menina, o "Onda Nova" passou na tv e nós brincávamos no colégio falando de montar o Gaivota Futebol Clube rsrsrs Valeu pela dica do dvd :) Vc é advogado? Eu sou formada em Letras e agora curso Direito, estou quase terminando.
Olá, Andrea, sou advogado e procurador. Vc faz direito em qual faculdade?
Oi Walner, na Puc. Tb fiz Letras lá.
Duas coisas:
- Por que ninguém explica a cena em que Carla Camuratti fuma seus pelos pubianos? Aliás se eu fosse jornalista e a entrevistasse isso perguntaria se isso deu barato pra ela.
- Onda Nova merece também uma crítica do Estranho Encontro. Pois além da dupla de diretores também encontramos Camuratti e Cida Moreyra.
Aqui estou de novo,adoro o blog.
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