Primeiro longa-metragem do documentarista Chico Teixeira na ficção, “A Casa de Alice” (2007) é um dos vários subestimados filmes nacionais. Jogado na fogueira dos coadjuvantes, quando de fato não o é.
Para princípio de conversa, temos aqui uma versão do povo cockney brasileiro. Sem os lps de Roberto Carlos ou a bravura indômita das mulheres de Carlos Reichenbach. Nem sinal das outras borboletas da Boca do Lixo. “A Casa de Alice” é tristeza e inferno. Ninguém tem vocação para sorrir.
Imaginem que “A Dama do Lotação” pegou uma gripe, entrou no ônibus e sarrou-se no imemorial afro-brasileiro. Chocha e sedenta de sexo. Alice (Carla Ribas) é uma versão distímica da mulher rodrigueana. Há uma cena que inclusive relembra o clássico de Nelson, filmado por Neville de Almeida em 1978. Alice macambúzia, entorpecida nas brumas do cinza paulistano. Atrás dela, o gigantesco deus de ébano.
“A Casa de Alice” acompanha a mulher, o marido, a mãe e os três filhos. Poucos dias na vida da quarentona, jogada às traças pelo taxista Lindomar (Zécarlos Machado). Poucas vezes os dois praticaram o coito e então deram a luz a Lucas (Vinícius Zinn), Edinho (Ricardo Villaça) e Junior (Felipe Massuia).
Com a assessoria da mãe (Jacira, Berta Zemmel), Alice tenta praticar um protetorado feminino no meio do gang bang existencial. Conviver com quatro bestas-feras do sexo oposto.
A construção do filme não abre muitas externas para os filhos e para o marido. Apenas Alice é quem sai do apartamento e volta para ele, diariamente. Lixa as unhas das clientes em um salão precário, no qual bate ponto. A casa de Alice é, portanto, o escoadouro e o centralizador dos problemas da família.
No quesito do horror familiar, os filhos externalizam a boçalidade do pai. Lucas, militar, idolatra o velho. Junto com ele, fala aqueles jargões de capados, misóginos, até mesmo para se distraírem. Nada da saudável picuinha entre os sexos. Ódio bestial mesmo.
Acontece que Lucas é michê. E espancador. E apaixonado pelo irmão. Em momento inteligentíssimo do roteiro de Teixeira, Lucas investe para cima do caçula e, se não concretiza o ato, pelo menos o deixa no ar, no meio dos escombros. O quase contemporâneo “Do Começo Ao Fim” (2009) aborda a questão e inverte a câmera: os irmãos ficam no centro e a partir deles é que a trama se irradia.
O irmão do meio, Edinho, poderia ser o queridinho da vovó Jacira. Mas entendam: trata-se de um filme para adultos. Nem sempre existem queridinhos da vovó. Vovó é um apêndice, enviado carinhosamente para o asilo. Talvez Jacira cantasse um “Free At Last”, se tivesse a vibe de Mahalia Jackson, em uma choupana batista no Mississippi. Libertada porque sozinha, ouve rádio AM e o silêncio sepulcral do sanatório. Acontece que o deus de Jacira não é de ébano. Preconceituosa, sempre desprezou as amizades da filha com negros.
“A Casa de Alice” demonstra o ritual das classes baixas, as delícias psicanalíticas da família. Os intrincados corredores mentais do grupo não nos deixam mentir. Vejam também em Alice o aspecto da mulher antiga – que todos achavam morta e enterrada desde o “Relatório Hite”, lido com vozeirão de barítono por senhoras prafentex.
Quem teria a audácia de fazer da heroína uma mulher bamba, covarde, que não se preocupa com a mais valia econômica ou com os traumas da ditadura militar? Chico Teixeira conseguiu. E, acreditem, mulheres assim existem. Se o cinema brasileiro não quer retratá-las, problema. Nem todas as mulheres sonham grande, nem todas se preocupam com o bem-estar dos filhos ou com a vocação para a eternidade.
Em “Casa de Alice”, a História e os vultos maravilhosos somem do mapa. A satisfação de Alice é pequenina, cabe no próprio umbigo. E, por total incompetência, nem mesmo um naco de satisfação ela consegue. Podem anotá-lo sem medo na lista dos filmes dos 2000 que precisam ser vistos.
Para princípio de conversa, temos aqui uma versão do povo cockney brasileiro. Sem os lps de Roberto Carlos ou a bravura indômita das mulheres de Carlos Reichenbach. Nem sinal das outras borboletas da Boca do Lixo. “A Casa de Alice” é tristeza e inferno. Ninguém tem vocação para sorrir.
Imaginem que “A Dama do Lotação” pegou uma gripe, entrou no ônibus e sarrou-se no imemorial afro-brasileiro. Chocha e sedenta de sexo. Alice (Carla Ribas) é uma versão distímica da mulher rodrigueana. Há uma cena que inclusive relembra o clássico de Nelson, filmado por Neville de Almeida em 1978. Alice macambúzia, entorpecida nas brumas do cinza paulistano. Atrás dela, o gigantesco deus de ébano.
“A Casa de Alice” acompanha a mulher, o marido, a mãe e os três filhos. Poucos dias na vida da quarentona, jogada às traças pelo taxista Lindomar (Zécarlos Machado). Poucas vezes os dois praticaram o coito e então deram a luz a Lucas (Vinícius Zinn), Edinho (Ricardo Villaça) e Junior (Felipe Massuia).
Com a assessoria da mãe (Jacira, Berta Zemmel), Alice tenta praticar um protetorado feminino no meio do gang bang existencial. Conviver com quatro bestas-feras do sexo oposto.
A construção do filme não abre muitas externas para os filhos e para o marido. Apenas Alice é quem sai do apartamento e volta para ele, diariamente. Lixa as unhas das clientes em um salão precário, no qual bate ponto. A casa de Alice é, portanto, o escoadouro e o centralizador dos problemas da família.
No quesito do horror familiar, os filhos externalizam a boçalidade do pai. Lucas, militar, idolatra o velho. Junto com ele, fala aqueles jargões de capados, misóginos, até mesmo para se distraírem. Nada da saudável picuinha entre os sexos. Ódio bestial mesmo.
Acontece que Lucas é michê. E espancador. E apaixonado pelo irmão. Em momento inteligentíssimo do roteiro de Teixeira, Lucas investe para cima do caçula e, se não concretiza o ato, pelo menos o deixa no ar, no meio dos escombros. O quase contemporâneo “Do Começo Ao Fim” (2009) aborda a questão e inverte a câmera: os irmãos ficam no centro e a partir deles é que a trama se irradia.
O irmão do meio, Edinho, poderia ser o queridinho da vovó Jacira. Mas entendam: trata-se de um filme para adultos. Nem sempre existem queridinhos da vovó. Vovó é um apêndice, enviado carinhosamente para o asilo. Talvez Jacira cantasse um “Free At Last”, se tivesse a vibe de Mahalia Jackson, em uma choupana batista no Mississippi. Libertada porque sozinha, ouve rádio AM e o silêncio sepulcral do sanatório. Acontece que o deus de Jacira não é de ébano. Preconceituosa, sempre desprezou as amizades da filha com negros.
“A Casa de Alice” demonstra o ritual das classes baixas, as delícias psicanalíticas da família. Os intrincados corredores mentais do grupo não nos deixam mentir. Vejam também em Alice o aspecto da mulher antiga – que todos achavam morta e enterrada desde o “Relatório Hite”, lido com vozeirão de barítono por senhoras prafentex.
Quem teria a audácia de fazer da heroína uma mulher bamba, covarde, que não se preocupa com a mais valia econômica ou com os traumas da ditadura militar? Chico Teixeira conseguiu. E, acreditem, mulheres assim existem. Se o cinema brasileiro não quer retratá-las, problema. Nem todas as mulheres sonham grande, nem todas se preocupam com o bem-estar dos filhos ou com a vocação para a eternidade.
Em “Casa de Alice”, a História e os vultos maravilhosos somem do mapa. A satisfação de Alice é pequenina, cabe no próprio umbigo. E, por total incompetência, nem mesmo um naco de satisfação ela consegue. Podem anotá-lo sem medo na lista dos filmes dos 2000 que precisam ser vistos.
6 comentários:
Andrea... você, como de praxe, me tira um peso do peito. Dá vontade de qual louco ir para a rua com cartazes e cara mascarada, mas com escritos para que as pessoas assistam a este filme.
Obrigado por você existir.
Assisti este filme faz um tempo e ainda me lembro dele.
Bonito filme.a intenção homoafetiva entre os irmãos poderia ter sido um pouquinho mais insinuante,ou picante sei lá.
Luis, agradeço, e muito, o seu comentário. Escrevo para ser lida. Saber que existem na outra ponta da tela leitores de sensibilidade extrema como você deixam o ofício ainda mais imprescindível para mim. Digo e repito: "A Casa de Alice" precisa sair urgentemente das trevas e tomar o lugar que é de direito no cinema brasileiro dos anos 2000.
Blogmonky, o "Casa de Alice" tem uma aura forte, realmente. Um clima depressivo, que nos faz guardar as imagens com o tempo.
Ademar, o diretor quis focar na Alice mesmo, nas idas e vindas da casa. Concordo. Se a relação dos irmãos fosse mais concretizada, teríamos atingido um outro patamar no filme.
Olá Andrea. Conheci teu blog recentemente e adorei teus textos. Já recomendei aos amigos. Continue este ótimo trabalho. Abçs.
...produção até notável do cinema nosso!
Onde pairam vários questionamentos.
Não sabia que haveria uma relação incestuosa entre os irmãos; há uma cena destes bem baixa onde até constrange - e outra por volta de 15:00 que causa um troço, uau.
E como fumam/numa época onde o TABAGISMO deveria nem aparecer mais _ ou no caso NUNCA TER EXISTIDO.
* Nunca entendi se foi rodado em SP ou no RJ.
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