Outro importante filme brasileiro na primeira década do século XXI, “A Concepção” (2005) acreditou demais na posteridade. Herdeiro do vate Neném Prancha, mordeu voraz cada minuto e avançou com a disposição de quem ataca um prato de comida.
“A Concepção” exala um espírito de insurgência, um chamado à liderança naquela geração, pré-“Tropa de Elite” (2007). Mas liderança não se impõe, se costura. E o segundo longa-metragem de José Eduardo Belmonte sofre de fenômeno comum: o propósito é superior à execução.
Alex (Juliano Cazarré), Lino (Milhem Cortaz) e Liz (Rosanne Mulholland) dividem um apartamento em Brasília. Conhecem “X” (Matheus Nachtergaele), o homem sem nome, sem passado, sem futuro. O bedel espirituoso da tribo. Apelidam o grupo de “A Concepção”, sendo eles, é claro, os “concepcionistas”.
A cada dia se metem em uma quimera nova, cheia de variações do “princípio do prazer”. Alex, Lino, Liz e X fazem então o abre-te sésamo e o apartamento transforma-se na Xanadu das orgias (bem pior do que o famoso abatedouro de Carlos Imperial na rua Miguel Lemos).
Escrevem um manifesto. Em resumo, as tábuas da lei baseiam-se na “morte ao ego”: sim, o mesmo slogan das vanguardas sessentistas, leitoras do “Livro Tibetano dos Mortos”. E é exatamente a morte ao ego que explica o cartaz do filme. A carteira de identidade (o “eu”) queimada, destruída. Assim como as outras identidades, os outros CPFs e os outros cartões de crédito que o grupo cria, usa e destrói. Para atingir o desbunde, cedem ao estelionato – uma guinada materialista no desbunde. O próprio “X” é a exemplificação do ego desprendido. Afinal, é a lenda que surge do nada e para o nada retorna, como uma promessa.
Se fossem decadentistas, os concepcionistas comeriam ópio, cheirariam éter, rodariam por Paris nos jograis do século XIX. Como são brasileiros e vidrados no material, rodam pelo inferno nativo: Brasília. E em uma data indefinida, grande sacada do roteiro de Luís Carlos Pacca e Breno Alex.
Isto porque “A Concepção” parece um filme contemporâneo e, no entanto, opera o bem estudado samba do crioulo doido. Punks que soam mobs, Renato Russo com Dino Cazzola, Noriel Vilela e The Factory. “A esquizofrenia não é doença, é arte!”, falam no filmete que lembra as charadas de Andy Warhol. Quebras temporais e de lógica deixam claro que X e os pussycats são junkies, beberrões de líquidos coloridos, engolidores de deliciosos doces (com fotinhos do gatinho Félix).
Como se trata de uma uma seita, “A Concepção” opera o fanatismo. Imaginem Charles Manson ou Jim Jones, sem o aspecto religioso e de açougue. Quem se interessa pelo assunto, sabe que é nitroglicerina pura. Meninas e meninos (entediados) de classe média alcançam o nirvana, subjugados em uma relação de escravidão. Quase bondage, para os íntimos.
O único personagem que combate X é, por isto mesmo, o mais interessante do filme. Ariane (Gabrielle Lopez), a cética. Fala em alto e bom som que aquilo tudo não passa de “teatrinho”. Talvez molestada na infância pelo pai, Ariane dá papinha para o velho, agora embrulhado em um fraldão e entrevado na cadeira de rodas. Na prática, a mulher consegue ser mais raçuda e diáfana do que os filhos de diplomata – que, honestamente, vocês não esperavam que ficassem de fora de um drama no Distrito Federal.
Na dupla com Liz, Ariane ouve da ficante um “não tô a fim de ser honesta”. É interessante notar que a cética se contrapõe à otimista, em um núcleo alternativo da história. Enquanto X, Lino e Alex se fusionam, Liz embarca de cabeça nos delírios da tribo. Entre uma chuchada e outra em Ariane, parece acreditar de verdade na possibilidade de liberação, prometida pelo pastor lisérgico.
As atividades de “A Concepção” (o filme) utilizam esses dois focos de narrativa. No cômputo geral, ainda caberá a Liz a missão de dar à luz o filho perfeito, como uma esposa de Josefel Zanatas. Liz continua o rebanho meio sem querer. Se estivesse na Globo Filmes, a esta altura já teria estrelado o segundo volume da franquia.
Percebam que “A Concepção” serve a uma bandeira histérica. Gritada, vociferada, emulando o que ficou cristalizado na cultura brasileira como cantos de contestação ideológica – vide a antropofagia. Esqueceram que Walter Hugo Khouri sabia falar de um modo bem mais convincente sobre as patologias humanas. E, como dormia na ressaca de 2005, “A Concepção” derrapa no falso moralismo. O grupo patina e cede ao universo dos fracos, recebendo punições e culpas. Belmonte jogou fora a oportunidade de ser tão inconsequente e poderoso quanto poderia ter sido. Ao invés de um filme acima do bem e do mal, torna-se mediano, com encantos que chamam a atenção.
Está repleto de miscelâneas inexistentes em 2005 e que ainda fazem falta hoje em dia: amor livre, trepadas homossexuais, a desconstrução do tabu da nudez masculina. Porém, o que deveria ser o epicentro da trama desgasta-se rápido demais nas pistas do roteiro. X tem cara de vilão, bigode de vilão, rabo de vilão e não encanta como condutor dos destinos da massa. “A Concepção” também poderia ter sido politicamente incorreto em alguns momentos: X dedura Liz e imaginamos que o enrosco fosse fruto de misoginia. Mas como ele segue o mesmo procedimentos com outros colegas, impede a elegante ilação.
Certas cenas tem achados clássicos, como o happening que lembra uma missa negra, satânica, entoada por Noriel Vilela. Datas de nascimento e de morte nos rostos dos passantes, como se a droga trouxesse o poder da premonição – o quarto mundo, a consciência transcendente. Noves fora, a audácia de “A Concepção” seria conquistada com maior rigor por José Eduardo Belmonte em “Se Nada Mais Der Certo” (2008) e “Meu Mundo em Perigo” (2007). Aqui, o cântico excepcional ao amor e à solidão coloca nas chinelas os talismãs de Aleister Crowley e Timothy Leary.
“A Concepção” exala um espírito de insurgência, um chamado à liderança naquela geração, pré-“Tropa de Elite” (2007). Mas liderança não se impõe, se costura. E o segundo longa-metragem de José Eduardo Belmonte sofre de fenômeno comum: o propósito é superior à execução.
Alex (Juliano Cazarré), Lino (Milhem Cortaz) e Liz (Rosanne Mulholland) dividem um apartamento em Brasília. Conhecem “X” (Matheus Nachtergaele), o homem sem nome, sem passado, sem futuro. O bedel espirituoso da tribo. Apelidam o grupo de “A Concepção”, sendo eles, é claro, os “concepcionistas”.
A cada dia se metem em uma quimera nova, cheia de variações do “princípio do prazer”. Alex, Lino, Liz e X fazem então o abre-te sésamo e o apartamento transforma-se na Xanadu das orgias (bem pior do que o famoso abatedouro de Carlos Imperial na rua Miguel Lemos).
Escrevem um manifesto. Em resumo, as tábuas da lei baseiam-se na “morte ao ego”: sim, o mesmo slogan das vanguardas sessentistas, leitoras do “Livro Tibetano dos Mortos”. E é exatamente a morte ao ego que explica o cartaz do filme. A carteira de identidade (o “eu”) queimada, destruída. Assim como as outras identidades, os outros CPFs e os outros cartões de crédito que o grupo cria, usa e destrói. Para atingir o desbunde, cedem ao estelionato – uma guinada materialista no desbunde. O próprio “X” é a exemplificação do ego desprendido. Afinal, é a lenda que surge do nada e para o nada retorna, como uma promessa.
Se fossem decadentistas, os concepcionistas comeriam ópio, cheirariam éter, rodariam por Paris nos jograis do século XIX. Como são brasileiros e vidrados no material, rodam pelo inferno nativo: Brasília. E em uma data indefinida, grande sacada do roteiro de Luís Carlos Pacca e Breno Alex.
Isto porque “A Concepção” parece um filme contemporâneo e, no entanto, opera o bem estudado samba do crioulo doido. Punks que soam mobs, Renato Russo com Dino Cazzola, Noriel Vilela e The Factory. “A esquizofrenia não é doença, é arte!”, falam no filmete que lembra as charadas de Andy Warhol. Quebras temporais e de lógica deixam claro que X e os pussycats são junkies, beberrões de líquidos coloridos, engolidores de deliciosos doces (com fotinhos do gatinho Félix).
Como se trata de uma uma seita, “A Concepção” opera o fanatismo. Imaginem Charles Manson ou Jim Jones, sem o aspecto religioso e de açougue. Quem se interessa pelo assunto, sabe que é nitroglicerina pura. Meninas e meninos (entediados) de classe média alcançam o nirvana, subjugados em uma relação de escravidão. Quase bondage, para os íntimos.
O único personagem que combate X é, por isto mesmo, o mais interessante do filme. Ariane (Gabrielle Lopez), a cética. Fala em alto e bom som que aquilo tudo não passa de “teatrinho”. Talvez molestada na infância pelo pai, Ariane dá papinha para o velho, agora embrulhado em um fraldão e entrevado na cadeira de rodas. Na prática, a mulher consegue ser mais raçuda e diáfana do que os filhos de diplomata – que, honestamente, vocês não esperavam que ficassem de fora de um drama no Distrito Federal.
Na dupla com Liz, Ariane ouve da ficante um “não tô a fim de ser honesta”. É interessante notar que a cética se contrapõe à otimista, em um núcleo alternativo da história. Enquanto X, Lino e Alex se fusionam, Liz embarca de cabeça nos delírios da tribo. Entre uma chuchada e outra em Ariane, parece acreditar de verdade na possibilidade de liberação, prometida pelo pastor lisérgico.
As atividades de “A Concepção” (o filme) utilizam esses dois focos de narrativa. No cômputo geral, ainda caberá a Liz a missão de dar à luz o filho perfeito, como uma esposa de Josefel Zanatas. Liz continua o rebanho meio sem querer. Se estivesse na Globo Filmes, a esta altura já teria estrelado o segundo volume da franquia.
Percebam que “A Concepção” serve a uma bandeira histérica. Gritada, vociferada, emulando o que ficou cristalizado na cultura brasileira como cantos de contestação ideológica – vide a antropofagia. Esqueceram que Walter Hugo Khouri sabia falar de um modo bem mais convincente sobre as patologias humanas. E, como dormia na ressaca de 2005, “A Concepção” derrapa no falso moralismo. O grupo patina e cede ao universo dos fracos, recebendo punições e culpas. Belmonte jogou fora a oportunidade de ser tão inconsequente e poderoso quanto poderia ter sido. Ao invés de um filme acima do bem e do mal, torna-se mediano, com encantos que chamam a atenção.
Está repleto de miscelâneas inexistentes em 2005 e que ainda fazem falta hoje em dia: amor livre, trepadas homossexuais, a desconstrução do tabu da nudez masculina. Porém, o que deveria ser o epicentro da trama desgasta-se rápido demais nas pistas do roteiro. X tem cara de vilão, bigode de vilão, rabo de vilão e não encanta como condutor dos destinos da massa. “A Concepção” também poderia ter sido politicamente incorreto em alguns momentos: X dedura Liz e imaginamos que o enrosco fosse fruto de misoginia. Mas como ele segue o mesmo procedimentos com outros colegas, impede a elegante ilação.
Certas cenas tem achados clássicos, como o happening que lembra uma missa negra, satânica, entoada por Noriel Vilela. Datas de nascimento e de morte nos rostos dos passantes, como se a droga trouxesse o poder da premonição – o quarto mundo, a consciência transcendente. Noves fora, a audácia de “A Concepção” seria conquistada com maior rigor por José Eduardo Belmonte em “Se Nada Mais Der Certo” (2008) e “Meu Mundo em Perigo” (2007). Aqui, o cântico excepcional ao amor e à solidão coloca nas chinelas os talismãs de Aleister Crowley e Timothy Leary.
3 comentários:
Estamos no terceiro milênio, e a homossexualidade (beijo e trepada gay) e o nu frontal masculino,continuam sendo tabus, é isso aí.
"Aqui, o cântico excepcional ao amor e à solidão coloca nas chinelas os talismãs de Aleister Crowley e Timothy Leary.". Perfeito!
Ademar, faço questão de insistir sempre nesse tema. Em 2013, o máximo da ousadia ainda parece ser colocar mulher pelada no cinema, para desafiar-o-machismo-da-sociedade.
Obrigada, Sergio! Não é raro a psicodelia ganhar na arte, mas nos filmes do Belmonte isso não ocorreu.
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