A charada é verdadeira, e nem todos conhecem. O que tem em comum Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Tim Maia e Jorge Ben? Além da mesma geração musical, os quatro dividiram um bairro. O bosque das certezas suburbanas cariocas, a Penny Lane brasileira, o vale frondoso e adorável: a Tijuca.
Tijuca
é a prima ancestral da classe média no Rio de Janeiro. Por lá
tremula o pavilhão do América Futebol Club, as digressões do
chope, a corrida de gato e rato, imprensada nos morros superlotados
do tempo. O contestado tijucano é forte. Engloba Grajaú, Vila
Isabel, Estácio, Rio Comprido (na versão maximizada), ou apenas as
colinas da Praça Saens Peña e adjacências (na versão
minimalista).
No
bairro, dormem as lendas. Os garotos do primeiro parágrafo (que se
reuniam na rua do Matoso) ou Milton Nascimento (que debutou no mundo
em plácido lar
tijucano).
Também batem perna Aldir Blanc, as normalistas
do Instituto de Educação,
o DOI-CODI da Barão de Mesquita, o Café
Palheta.
É a capital chique da Zona Norte. Afirma ter olhos para si, mas os
inclina para trás, rumo à Zona Sul, admirada e vencedora na
distância, em permanente queda de braço.
“Praça
Saens Peña” (2009),
de Vinícius Reis, carrega no título um marco: a praça, que se abre
marota na janela de Paulo (Chico Dias). Professor, escritor, homem
correto e saliente. Marido de mulher bonita (Teresa, Maria Padinha) e
pai de garota de 16 anos (Bel, Isabela Meirelles).
Vinícius
Reis escolheu uma família comum. Escolheu, sobretudo, a dimensão
eterna do lugar. Encheu-a de fitas, coloridas, atravessando as ruas e
explodindo nos canteiros, perto do chafariz. Acompanhamos Paulo,
Teresa e Bel entre fevereiro de 2003 e junho de 2003. Surgem daí as
referências didáticas à guerra no Golfo e uma (oxalá!) rápida
pregação de Paulo contra o rebu bélico.
Paulo
é convidado a escrever um livro sobre a Tijuca. Manifesta-se então
a alma do artista (um dos aspectos tijucanos). Precisa entregar o
livro até maio, conta com o apoio da esposa. Teresa enlouquece e tem
a vontade (comezinha, burrinha) de comprar apartamento. Talvez,
enriquecer (outro aspecto do bairro).
A
insônia de Paulo leva o filme à madrugada na Saens Peña. Passam as
horas e o sol leva às tardes na praia. E a praia, apesar de não
existir no bairro, vira uma rotina que adere à pele como o café e o
pão na chapa. Bel se encarrega da praia, curtindo o bêtise
com a amiguinha de colégio. Paulo se encarrega do expresso na
padaria (que Vinícius captura na displicência matutina das mínimas
coisas). Já o amor por um apartamento e o caso com o proprietário,
sobram para Teresa.
No
filme, pululam as teses sociológicas de Paulo, o ufanismo sério e
debochado, a instituição familiar. Permeia-se tudo com os
comentários sobre os morros (assunto que é tão local quanto as
conversas sobre o tempo em Londres). A parábola sobre a convivência
asfalto-e-morro esconde na Tijuca outro tempero, diferente de “Terror
e Êxtase”, o elixir violento de José Carlos de Oliveira. Aldir
Blanc aparece em pessoa e desfila o rosário tijucano para Paulo.
Ouve-se a liturgia, a malícia, o bate-papo que lembra o diretor
David Neves ao tratar com carinho (e aparente facilidade) o cotidiano
dos personagens.
Macedo
(Guti Fraga) pode até contar que teve o filho assassinado pelo
tráfico de drogas. Chega a convidar Paulo para morar na favela e
abandonar a Praça. Fosse o filme uma chanchada politicamente
correta, Paulo aceitaria outro conselho: espancar Teresa quando a
mulher se recusa a deitar com o marido. Há um limite civilizatório
entre Paulo e Macedo. E que não se mede pela mera condição
econômica.
É
curiosa a relação entre Paulo e Tereza. Parte de um princípio
bastante negado atualmente: os dois se amam. Como um homem e uma
mulher. Adultos, ao invés de quarentões molóides sujando as
calças. Em “Praça
Saens Peña”, a verdade é construída pela história do casal.
Eis
que aparece o livro e Teresa cai de quatro. A deliciosa MILF acha que
Paulo será best-seller
ou coisa do gênero. Quer comprar um apartamento e, no frenesi, acaba
seduzindo o proprietário (João, Gustavo Falcão). No entanto, o
acting
out
de Teresa termina na mesma hora em que acaba o apartamento. João
consegue vendê-lo e muda-se para o Leblon. O interesse não era pelo
rapaz, mas pelo que ele representava (a independência financeira). A
devoção continuará direcionada a Paulo, apesar de ter erguido o
graal
no quintal do vizinho.
A
atuação dos atores, impecáveis, se acerta com o filme. Vinícius
Reis entendeu aquelas vidas incongruentes, como o bicho humano deve
ser. Teresa histérica: vazia e cheia, representante da fauna de
Stanislaw Ponte Preta. Paulo entre o pé-no-chão de professor e o
sonho narcísico do artista. Bel reclamando, como convém aos
adolescentes. Quer e não quer ser acariciada, dormir manso no colo
do pai e da mãe.
Para
variar, em se tratando de bom cinema brasileiro, temos que perseguir e laçar "Praça Saens Peña", antes que desapareça de nossas possibilidades. Mas, acreditem, entra em qualquer lista honesta dos
melhores da primeira década do século XXI. Sobrevive na memória de
todos: brasileiros, cariocas ou tijucanos.
4 comentários:
Andrea: vi esse filme quando foi lançado numa sessão do Espaço Unibanco em SP, com pouquíssima gente. Trata-se de um belo filme e lembra muito o cinema do David Neves como você bem salientou. Acho a atuação do Chico Diaz excelente, não tanto nessa coisa do artista mas naquela velha coisa do intelectual brasileiro que não consegue transformar seus sonhos em realidade. Um negócio meio Policarpo Quaresma. É um filme interessante e um dos melhores da atual safra como você bem salientou
Matheus, entendo o que você quer dizer, mas isto tambem é algo bem típico da alma idealizada da Tijuca. A hora em que o personagem do Chico Diaz conversa com o Aldir Blanc (a personificação do bon vivant tijucano), ele parece entrar em êxtase.
Me parece que a turma do primeiro paráfrafo também integraram um grupo musical,na pré história da música pop brasileira.Quanto ao filme nem sabia que existia.
Protelando até hoje para assistir. Aproveitarei o lançamento de "Noite de Reis" para fazer sessão dupla.
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