segunda-feira, maio 27, 2013

O Homem do Ano


“O Matador” foi publicado em 1995, ano de penúria no cinema brasileiro. Como se trata de um livro, não sofreu naquele Círio de Nazaré gigantesco, repleto de chibatadas e correntes de zumbis definhando em praça pública. A indústria autossustentável da Boca do Lixo já havia acabado muito antes, nos anos 80. A extinção da Embrafilme, em 1990, apenas compartilhou o caos para outras estratosferas.

Quando é levado para o cinema, “O Matador” transforma-se em “O Homem do Ano”. 2003, após os fenômenos de “Central do Brasil” (1998) e “Cidade de Deus” (2002). Sai a autora, Patrícia Mello, entra no córner o roteirista, Rubem Fonseca. Àquela altura, Rubem já adquirira o confortável status de unanimidade reclusa, que o enfeita desde muito, além de fonte de inspiração (e soluções fáceis) para multidões que desejem praticar literatura urbana ao saírem da puberdade. Dentre todos os seus famigerados imitadores (competentes ou não), a paulista Patrícia Melo sempre pareceu a escolhida, a preferida do escritor. Em 2001, Melo inclusive adaptava “Buffo & Spalanzani” de Fonseca, ao lado do próprio ídolo.

“O Homem do Ano” deixou a zona sul de São Paulo e caiu na Baixada Fluminense. Rubem Fonseca preferiu navegar em território conhecido. As referências, obviamente, também mudaram. Ao invés do Mappin, do Palmeiras e de semelhantes, temos os arquétipos metropolitanos cariocas. Território de sinistra afetividade, onde Fonseca já circulara, por exemplo, no irônico “O Jogo do Morto”, conto publicado em 1979.

Peguemos outro exemplo: “República dos Assassinos”. O livro (de Agnaldo Silva) e o filme (de Miguel Faria Jr.) passam-se por lá. Homicidas, bicheiros, cultos evangélicos, periguetes. “República dos Assassinos” ainda transita pelo centro do Rio e faz outras baldeações, como no universo gay. O mesmo não acontece em “O Homem do Ano”. Máiquel reside ad eternum no purgatório.

Máiquel (Murilo Benício) é o herói por acidente. Perde uma aposta, pinta o cabelo de loiro, conhece Cirlei (Cláudia Abreu), mata um vacilão (Suel, Wagner Moura) pelas costas. Se Mariel Mariscott tornou-se o galã-bedel de Copacabana – e, depois, da Guanabara –, Máiquel torna-se um aparvalhado benemérito. Recebe abraços, ganha presentes por ter matado Suel. Um porquinho é deixado na soleira da porta e apelida-o de Bill, em homenagem ao presidente norte-americano, charuteiro amigo de Monica Lewinsky.

Com manias e tiques nervosos, o protagonista quer deixar clara a sua qualidade de esquisitão. Não é bom de cama, não é cool e nem o carisma na Terra. Tudo acontece por acaso. Até mesmo o triângulo com Érica (Natália Lage) caiu dos céus. A garota foi a antiga protegida de Suel e pede a continuação dos préstimos. Praticamente uma herança bendita. Máiquel não tem testosterona suficiente. Vai resolvendo situações e colocando os amigos para debaixo de sua asa, numa liderança movida a pó – que, por sinal, também desconhecia e adere pelas circunstâncias.

Percebam que o filme compõe uma tríade (as duas mulheres e o porco) fazendo com que Máiquel a destrua. Bill, Érica e Cirlei rodam na cabeça do pistoleiro. O amor ao rosáceo animal supera o que é  devotado à Cirlei. A sacada é típica do processo de despersonalização. O argumento do filme leva sempre ao improvável: o bandido se deixa dominar, mata uma das mulheres (Cirlei), perde-se em contradições com a outra (Érica). Para piorar, Cirlei sacrifica Bill no prato, à pururuca, na festa de aniversário do rapaz.

Um outro núcleo é formando por Marcão (Lázaro Ramos), Robinson (Perfeito Fortuna), Enoque (Paulinho Moska) e Galego (André Gonçalves). Eles se misturam com Érica e Máiquel. Poderiam servir de filme dentro do filme, que talvez respirasse melhor. A bandidália feminina junto da masculina, debochando-se de igual para igual. “O Homem do Ano” dá a impressão de que vai por esse caminho, mas volta ligeiro ao itinerário de partida. O homem de joelhos, manietado pelos inescrupulosos.

Máiquel é quase um nerd da Baixada. Daqueles que Mr. Catra (em uma ponta, como ator) chamaria de bundão, estendendo o farto jererê. Há uma originalidade nesse aspecto, compensando o ódio sociochanchadesco de Máiquel, um clima entre “O Cobrador” e “Feliz Ano Novo”, manifesto quando aditivado pela cocaína. Aí entram em cena Dr. Carvalho (Jorge Dória), Zilmar (Agildo Ribeiro) e Sílvio (José Wilker), que o catapultam à glória do crime, abençoados pelo Delegado Santana (Carlo Mossy). Mossy retornava ao cinema após longo auto exílio na Pavuna, bairro nos glaciares do Rio, próximo à Baixada. E, talvez por isso, seja o que melhor desfrute a liberdade do lugar.

Traições são previsíveis, mas o final em aberto conspira a favor. Além dele, o microcosmo suburbano com nova participação de luxo: Paulo César Pereio, dono de uma loja de bichos e recitador de tiradas jocosas. É o comerciante bonachão e barrigudo, que se contrapõe ao mundo asqueroso de Santana. Um capitalista chulé, aos trancos e barrancos.

José Henrique Fonseca, filho de Rubem, dirigiu “O Homem do Ano” na pista derrapante de estreia. Em “Heleno” (2012) conseguiu a obra-prima, facilitado mais uma vez pelo roteiro do Fonseca primevo. Não se pode medir a distância entre Heleno e Máiquel, sobretudo porque Heleno se esboroou no ar, cruzando o real e o imaginário, como um épico. Máiquel apenas oscila, ganha espaço em um filme competente e devidamente calibrado.

6 comentários:

Renan Esteves disse...

Pois é Andreia, este filme tem algumas curiosidades: o lugar da biaxada fluminense em que é gravada boa parte do filme é lá em Nilópolis, lugar do qual morei durante toda minha juventude. Aliás, outro filme que também foi gravado lá foi Com licença, vou à luta, de 1986. Ambos são ótimos. O matador ainda não vi, mas filmes como Cabra cega e Ação entre amigos também são excelentes. Adoro filmes que abordam a ditadura, violência e caos urbano misturado com miséria e outras circinstâncias, como marca o Homem do ano, junto com as pornochanchadas, que também adoro. Enfim, gostei dos últimos posts seus. Aliás, faz tempo que não vejo posts seguidos, como você fez neste e no praça sans pena. Andreia, muito bom você colocar alguns filmes que retratam o universo carioca e também o paulista. Bem que você poderia colocar no próximo post o filme Jogo Subterrâneo (2005). Excelente película para ser retratada com suas palavras. Abraço e até a próxima.

Renan Esteves disse...

Mais uma observação: gosto muito dos contos do Rubem Fonseca, como Lúcia McCartney, o Cobrador, Feliz Ano Novo. Pena que o Chorão faleceu, pois gstaria de ver muito O Cobrador nas telas de cinema, principalmente com o Lázaro Ramos no papel principal.Até mais.

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostei muito da resenha.A propósito Renan,o que tem haver a morte do Chorão com o futuro do cinema nacional?

Renan Esteves disse...

È que o Chorão estava responsável pela conclusão do filme O Cobrador, que estava para sair e não foi concluído.

Andrea Ormond disse...

Renan, gosto bastante do "Com licença, vou à luta", principalmente pelo tempo e pelo lugar que ele retrata. A Baixada sempre rendeu bons frutos para o imaginário nacional. A adaptação do "O Matador" pelo Rubem Fonseca é um ótimo exemplo: saiu de SP e veio parar no Rio. Da safra dos filmes de 2003 "O Homem do Ano" se destaca com louvor. Publiquei agora um post sobre "A Concepção", que é perto historicamente (2005), mas vai em um sentido totalmente contrário, tanto na proposta quanto nas soluções que nós vemos na tela. É importante para os leitores essa reflexão sobre as fases e os componentes do cinema brasileiro da primeira década do século. Sugestão anotada, a do "Jogo Subterrâneo". Pelo que li, o filme do Chorão não tinha a ver com o Rubem Fonseca, mas de qualquer maneira, agora é que o projeto deve ter parado de vez. Um abraço!

Ricardo P. Sanchez ( Highlander ). disse...


Hola Andrea..!! Gostei muito mesmo desta Brilhante adaptação da Obra da Escritora Patrícia Melo.
Quanto á lembrança do Notório Policial Mariel Mariscott de Mattos em comparação ao patético perdedor maiquel foi realmente ótimo.

Um abraço..!!