Ângela Diniz foi morta
com três tiros na cabeça. Desfigurada, de biquíni e t-shirt. Ficou
estendida de bruços, na varanda da casa de praia. Homens ciumentos
estrangulam ou esfaqueiam. Mulheres ciumentas matam a bala, para
contornarem a força física. No caso de Ângela, a “Pantera de
Minas”, as previsões falharam. Raul “Doca” Street deu os três
tiros, como se estivesse em um surto narcísico de inveja – esta
outra pantera –, arruinando a beleza alheia, que era semente de
tudo.
O assassinato de
Ângela, nas bordas do réveillon de 1977, estampou livros e
livros e livros. Sob os muitos ângulos possíveis, escolho
apenas um: o da loucura do casal. Pode-se falar também da
chata explicação econômica (um playboy rico matando uma cocota).
Pode-se fazer uma condenação ao consumo de drogas (que rolava
solto). O fim dos tempos, o Armagedom, a falta de modos da mulher.
Advogado de Doca, o
socialista Evandro Lins e Silva (ex-ministro do STF, cassado pelos
militares em 1969) bateu firme na tese de que a moça se entregava a
qualquer um. “Quem ama não mata”, diriam outros. Na versão de
alguns gatos pingados, Doca foi um cordeiro do demo. Ofereceu-se ao
sacrifício para apagá-la. Desta maneira, escondeu interesses
escusos e internacionais, “muito maiores do que possamos imaginar”.
O caso Ângela revela
um fascínio doentio: cabe nele toda sorte de firulas. O mesmo
aconteceu, em menor escala, no sequestro de Carlinhos. O garoto
também galgou o patamar de lenda urbana e pavor das famílias
aflitas. Se Carlinhos ganhou “O Sequestro” (1981), Ângela ganhou
este: “Os Amores da Pantera” (1977). Dirigido por Jece Valadão,
trata-se de mais um filé da Magnus, concorrente da Vidya de Carlo
Mossy, produtora de “O Sequestro”. Outra coincidência: em ambos
os casos, o roteirista José Louzeiro. Uma diferença: em “O
Sequestro”, argumento de Valério Meinel, repórter que saíra
feito cão perdigueiro atrás de Carlinhos e publicara o livro
homônimo.
Seguindo a bíblia de
todo exploitation, “Os Amores da Pantera” chuta o balde da
beleza física e da cafajestagem. Não tentem vê-lo com os olhos de
2012. Não dá certo. Até mesmo as inclinações moralistas de
Louzeiro se curvam diante da câmera despudorada, que não ligava a
mínima para cortes ou observações enrustidas.
Durante uma longa cena,
o grupo de amigos cheira papelotes de cocaína. Deitam e rolam, se
pegam, a orgia corre solta. Vultos do além começam a persegui-los.
Eis a pororoca do filme: o tesão da orgia versus o roteiro
que atribui ao consumo de drogas a condição de pecado. Existe a
explicação sociológica de que a alta classe é mau caráter e se
submete a esse tipo de ato vazio, sem sentido. O conceito é anti
contracultura e parece não
entender as folias momescas da época. Algo como Rachel de Queiroz
escrevendo sobre Pervitin.
No entanto, cumpre-se a
sutileza do cinema brasileiro setentista: o pecado é mostrado. Jece
Valadão opera nesta hora, insidioso que só. Leva o absurdo até as
últimas consequências e que se exploda o resto, sem a auto censura
da imagem. Nas produções atuais, um garoto bonzinho, um jovem
esforçado, um adulto bocó vencem as injustiças e melhoram a
espécie. Cenas consideradas “fortes” dançam no limbo, ficam no
Index e proibidas aos olhos do espectador.
Em “Os Amores da
Pantera”, não. O filme vence feito uísque caubói, sem gelo.
Mesmo que o discurso tenha aquela perversidade “exploitística”:
a trama é um alerta para a sociedade (os ricos são cruéis, nossos
filhos estão sujeitos a esse tipo de gente). Tudo baseado em um
estudo seríssimo (a morte de Ângela foi determinada pelos motivos
“escusos e internacionais”). Na prática, apesar do aparato
ideológico CDF, o que se percebe é uma fita politicamente incorreta
e cínica.
Outro detalhe chama
atenção: por que, em todo filme brasileiro, no momento em que
cafungavam cocaína as pessoas ficavam pastosas, deprimidas? Não
pulavam, não trincavam os dentes, não se achavam o centro do
universo. É um mistério. Provavelmente para não assustar a classe
média, fiel compradora de ingressos, e que já havia se acostumado à
(lombra da) maconha como o genérico de todas as drogas.
O recurso de “os
fatos são mera coincidência” também aparece com força total. A
protagonista (Tamara) recebe o carão de Vera Gimenez, esposa de
Jece. Parece gato, mia feito gato, tem rabo de gato e não é o gato.
Querem convencer-nos de que ela não é Ângela Diniz, a história
não tem nada a ver com Doca Street e muito menos Ibrahim Sued. Sim,
Ibrahim Sued, o ex-amigo íntimo de Ângela, que o trocou por Street.
Este perhaps o
roteiro omite, colocando o duplo de Sued (Jaime Barcellos) como mero
pedinte de dinheiro a Tamara. O clima de Agatha Christie do Posto 6
dá piruetas. Reviravoltas, mauriçolas, aparição de Adele Fátima
em motel e música de um tal Chico
Xavier, sabe-se lá homônimo ou o próprio médium multimídia
mineiro.
Os versos de “Anjo”
contam que a morta está no altar de Nossa Senhora e que “quem te
causou o ferimento/ chora de arrependimento/ mas perdeu a liberdade”.
“Aquele homem foi preso/ levado ao desprezo/ para viver isolado”.
A letra é dúbia, morde e assopra. Fulana morreu, mas quem matou é
igualmente coitado. Os golfejos lembram a canção de Elymar Santos
para Ayrton Senna, escrita no calor do acidente de 1994: uma elegia
popular, que capturou o momento, rasgado e histriônico.
O momento de 77, aliás, era oportuno. Em breve, outro drama colocaria Valério Meinel e José Louzeiro no olho do crime. Sai a Pantera, entra Cláudia Lessin Rodrigues. Estudante, morta em julho, no Rio de Janeiro. “O Caso Cláudia” (1979) faz pouco do livro de Meinel, “Porque Cláudia Lessin Vai Morrer” e se limita a uma adaptação anódina, sem gosto e calibre. Deste erro “Os Amores da Pantera” não cai. Mesmo não atingindo a perfeição, supera em muito os rivais e brinca nas auréolas da trepidante Magnus, que como tudo de bom neste mundo maravilhoso, brotou de Copacabana e saiu dali para dominar o planeta.
O momento de 77, aliás, era oportuno. Em breve, outro drama colocaria Valério Meinel e José Louzeiro no olho do crime. Sai a Pantera, entra Cláudia Lessin Rodrigues. Estudante, morta em julho, no Rio de Janeiro. “O Caso Cláudia” (1979) faz pouco do livro de Meinel, “Porque Cláudia Lessin Vai Morrer” e se limita a uma adaptação anódina, sem gosto e calibre. Deste erro “Os Amores da Pantera” não cai. Mesmo não atingindo a perfeição, supera em muito os rivais e brinca nas auréolas da trepidante Magnus, que como tudo de bom neste mundo maravilhoso, brotou de Copacabana e saiu dali para dominar o planeta.
6 comentários:
Fez algum sucesso na época por conta do Crime de Buzios.O sumido ator Reinaldo Gonzaga no "papel" do Doca Street....foi brincadeira.
que bom q você voltou a escrever mais. Sinto falta. Quando dá tempo corro sempre aqui pra respirar um pouquinho da brabeira do trabalho. beijo
Carlos, no "O Caso Cláudia", o papel do assassino Michel Frank ficaria com o Jonas Bloch. O Bloch pelo menos tentou salvar o filme...
Obrigada, Daniel. Você é leitor das antigas, fico feliz de te ver por aqui. Bjs
Estou vendo o filme,ótima resenha.
Na época Doca Street não era rico, vivia de explorar mulheres, um gigõlo. Matou A Pantera porque iria perder a "boa vida".
Doca Street
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