“Hoje é aniversário do diabo. Estou dando uma festinha aqui em casa.” Ana Laura Steiner (Priscila Rozenbaum) despeja uma fileira de pó em cima da mesa. O nariz acompanha a estrada branca, faz um movimento que chupa do rabo até o talo. 39 aninhos, mau caráter, insuportável, Ana Laura tem a pele encarquilhada de sol e a fleugma da mulher lebloniana. Foi recebida pela Zona Sul do Rio, cumpriu a rota migratória dos pássaros da espécie e abandonou a cidade do interior.
As
câmeras não mostram, mas atrás de Ana Laura vemos Domingos de
Oliveira, o diretor-roteirista que ousou amar as mulheres. Lembrem-se
de “A Culpa” (1971), quando no close
up
final Matilde (Dina Sfat) enfrenta o maior delírio de todos: a
própria imagem no espelho. Já o clássico “Todas As Mulheres do
Mundo” (1967) acabaria estrelado por Leila Diniz. Esposa e musa, um
duplo papel, semelhante ao de Priscila Rozembaum em “Carreiras”
(2005).
Para
“Todas As Mulheres do Mundo”, Domingos mirou no peixe e acertou
no gato. Era ao mesmo tempo “hermético” e popular. “Cinema
Novo” e chanchada. Sem querer, inspirou a franquia de “Os
Paqueras” (1969) e inúmeros filmes. Por outro lado, Paulo (Paulo
José) e Maria Alice (Leila Diniz) deixaram as vanguardas suspirando
por um chicabon no colo da namorada, ao invés de um Nordeste
aborrecido e utópico.
Teatrólogo
de berço, em “Carreiras” encontramos o Oliveira de sempre:
valsando entre o teatro e o cinema. Não à toa, fez questão de
colocar um prólogo em que explica a produção do filme, o baixo
orçamento, o espírito de cooperativismo. Em seguida, encaixa outro
esquete. Amigos e ele próprio jogando conversa fora em um bar.
Elucubram os desvãos do teatro, o mundo menor do cinema. Inauguram a
noite pura e vaporosa, no momento em que a filosofia cristaliza o
chopp e ouvem-se estrelas.
Faltou
na mesa um quase-irmão, Oduvaldo Vianna Filho. Morto décadas antes,
é figura recorrente na geração dos dois. Vianinha escreveu “Corpo
a Corpo”, peça em que “Carreiras” se baseia de longe. Em
“Corpo a Corpo”, a artista plástica encarna o confronto entre “a
arte” e “o sistema”. No filme, Ana Laura encarna o drama entre
a vida longe e fora da televisão. Quando está fora, ataca “o
sistema”. Quando está dentro, esquece todo o resto.
Ana
Laura acaba de saber que uma patrícia vai tirá-la do noticiário
noturno. A repórter idosa cansou os telespectadores. Decide, então,
escrever um livro contando os podres do “sistema” e escolhe
encher a paciência dos colegas, em telefonemas desagradáveis. Grita
com o chefe. Aluga o porteiro. Xinga os vizinhos. Chuta a paciência
do garotão que pegou para criar.
É
a epifania da coca, o discurso siderado, violento, odiado. É
apoteose da narrativa que marca Domingos e Vianinha. Analisando-se a
estrutura de “Carreiras”, percebe-se que a construção dos
personagens acontece por atos e por frases que recitam sobre o meio.
Aqui, a palavra constrói. A imagem é mera consequência e não a
razão de ser. O teatro diz um alô, apesar de embalado em formato
devocional e cinematográfico.
Quem
se acostumou à economia de raciocínio das últimas duas décadas,
terá dificuldades imensas em gostar do filme. Azar. Se o espectador
fechar os olhos, a música de Joaquim Assis conseguirá levá-lo a um
outro umbral. Poderia ter sido criada por Remo Usai ou Carlos
Moletta, o parceiro de David Neves. No entanto, sai a Rua Prado
Júnior de David – prima da Avenida Nossa Senhora de Copacabana,
decorada pelas mesas queridas do Restaurante Cirandinha – e eis o
Baixo Leblon, o serpentário das atividades.
Aspecto
positivo em “Carreiras”, o bom-mocismo não se mete a besta. Fica
quietinho e não aparece. A heroína não precisa se redimir. Ela
pula de galho em galho, no cangote de quem oferece ajuda, mesmo que
momentânea. O ex-marido Esteves (Domingos de Oliveira) tenta ser o
fiel da balança. Explica os erros da mulher, puxa daqui, puxa pra
cá, mas estoura rápido. Não aguentam se falar. Solitária, pirada
nos dramas da família e do trabalho, garotinha e mulherão. Ana
Laura revela as tramóias shakesperianas da TV, defende sempre o
próprio lado, permanece cheirada demais para uma auto-crítica. E,
no final das contas, para que tê-la? O mal talvez vença e cavuque a
ferida eterna.
Exatamente
pela pretensão de contar uma história de bizarra verossimilhança,
“Carreiras” coloca mais um pé na obra de Domingos de Oliveira,
acostumado a desprezar o óbvio. Sabe-se que não foi morar no Cinema
Novo, teve apenas uma estadia rápida, de poucas horas. Enfrentou e
enfrenta as batalhas dos editais, morgando planos deixados pela
metade. Pode ficar tranquilo, ciente do dever cumprido. A histérica
Ana Laura caminhou triunfalmente na galeria de tipos do diretor e –
bem provável – deve sentir um prazer sexual incrível em arrancar
a cabeça de quem pense tirá-la de lá.
Um comentário:
Que demais ver você falando desse filme, Andrea!
Quando assisti, pensei: porque esse não poderia ser um respiro pra esse cineminha sempre igual & global?
A discussão no bar é um prólogo muito legal. Já a Priscila me passou uma verdade no filme... Fiquei querendo vê-la em muito mais coisas!
E a cena da praia (desesperada ao telefone)? Achei muito boa.
Você como sempre, certeira ao afirmar: "Quem se acostumou à economia de raciocínio das últimas duas décadas, terá dificuldades imensas em gostar do filme. Azar."
Azar mesmo.
beijão pra você :)
Pedro
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