Até hoje não é possível entendermos por que raios “O Gato de Botas Extraterrestre” (1990) é de fato extraterrestre e nem o motivo de levar nas costas um teclado colorido, provavelmente roubado do Genius – aquela rodela com botões, parente próxima do Pac Man, o Beato Salu da infância 80.
Entupido de maquiagem, tremendo chiquê de Hollywood, o bichano não nega as origens e apesar da máscara preparada pelos Burman Studios, acaba sendo tão dadaísta quanto a Boca do Lixo.
Heitor Gaiotti (o gato, que não revela o rosto) havia estrelado os mimosos “Corrupção de Menores” (1984) e “Bobeou... Entrou” (1984). Como não existia ficha limpa para as adaptações de contos infanto-juvenis, o diretor Wilson Rodrigues engrossou o coro de maledicências e realizou “Masculino... Até Certo Ponto” (1986), logo depois de “No Mundo da Carochinha Volume I: Chapeuzinho Vermelho” (1984).
Na realidade, “O Gato de Botas Extraterrestre” se limita a um veículo para a criançada, cheio de bons modos e intenções calmíssimas. É nítido que a integridade psicofísica do gato foi respeitada durante toda a filmagem, privando-o de orgias interraciais ou mesmo da companhia de Jack, o cãozinho bom de bola em “24 Horas de Sexo Explícito” (1985).
O gato corre, pula, trota de um lado para o outro, atravessa as pradarias da cidade de Gramado. Acaba apresentando um arremedo de Brasil, Europa medieval e efeitos visuais cenozóicos que, acreditem, atordoam pela incrível vagareza.
Se já é difícil ter a exata dimensão de tanta engenhosidade, os leitores podem se preparar para um pequeno surto e lamber os beiços: a adaptação do conto de Charles Perrault é assinada por Rubens Francisco Lucchetti. O próprio. Co-autor de algumas das insânias de José Mojica Marins, incluindo “Finis Hominis” (1971) e “Exorcismo Negro” (1974).
Psicose total, além de Lucchetti o próprio Mojica em pessoa aparece em “O Gato de Botas Extraterrestre” com as capas e as cores de Josefel Zanatas (vulgo Zé do Caixão), sua criatura mais famosa. Apesar disso, o personagem recebe o nome de “Príncipe Renini”. E, sem a agressividade e o ímpeto de “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967), o Príncipe é apenas mais uma das criaturas enfeitiçadas pelo Mago Mau (Jofre Soares).
Renini tem um comportamento absolutamente contrário à identidade pagã de Josefel. Chega ao cúmulo de se dizer produto de uma crença religiosa, um “Moon Ha”, forma decadente, criada pelo podre mago. Aqui já se pode ver o Zé do Caixão fashion, o biscuit centro da moda, paródia de si mesmo. Os pimpolhos rebolavam de medo e, bem provável, papais e mamães não tenham votado no Tio Zé para deputado federal, em 1982.
Como a inspiração não baixou no terreiro extraterrestre, a chance de Príncipe Renini/Zé do Caixão salvar o filme acaba sendo jogada fora. Renini dilui-se antes de transformar “O Gato de Botas Extraterrestre” em um veículo para o caboclo alucinado, que debochasse da pompa e da circunstância.
E isto porque nem as sebosas unhas de Zé nem mesmo a tarimba de Lucchetti controlam Wilson Rodrigues. Morno e arrastado, o diretor apela para a dupla de starlets (Maurício Mattar e Flávia Monteiro), em um clima de Walt Disney levado a sério. Tonia Carrero (avó da garotinha para quem conta a história) tem uma participação inesperada no ouriço.
“O Gato de Botas Extraterrestre” lembra um preparatório para as filmagens em vhs que se multiplicaram durante a década. Algo como o aniversário da tia ou da prima, em que se jogavam os letreiros e se admirava a tecnologia, com os olhos arregalados diante do computador TK 3000.
O próprio Lucchetti parece cansado. Além da escolha canhestra de um lado Roswell – que permanece mal explicado e poderia ter sido uma tacada interessante –, o ex-quadrinista pouco altera o enredo original. Curiosamente, Lucchetti ganhou prestígio nos anos 60 com “O Gato”, em HQs desenhados por Eugenio Colonnese. Já a versão de botas incorpora somente um tipo malandreco, que se contorce e, no alto da histeria, delira feito pastor do Cinema Novo: “Cada cidadão de meu amo é um guarda de si mesmo!”.
No final das contas, o gatinho é minguado. Os verdadeiros acertos ocorrem sem querer. Principalmente nos closes em castelos de brinquedo e nos figurantes que parecem refugiados do holocausto de “As Histórias que Nossas Babás Não Contavam” (1979). Créditos como “Thankfulnes [sic] in Brazil", olhados daqui do futuro, parecem tirados de canções do Supla.
Enquanto Tony Tornado (guarda do Rei) dá um passo de Jackson Five na “BR-3” e a "spatial scene" de um bólido cruza os ares, a maçaroca musical escolhe a trilha sonora de “Blade Runner”. Bem faria o peludo felino se tivesse calçado tênis, aderido às modas do Dr. Cooper e num bestial conjunto de calça e top da Adidas – com listras brancas – corresse pelo mato afora. Quem sabe retirando o walkman das orelhas, para melhor ouvir o querido amo.
Entupido de maquiagem, tremendo chiquê de Hollywood, o bichano não nega as origens e apesar da máscara preparada pelos Burman Studios, acaba sendo tão dadaísta quanto a Boca do Lixo.
Heitor Gaiotti (o gato, que não revela o rosto) havia estrelado os mimosos “Corrupção de Menores” (1984) e “Bobeou... Entrou” (1984). Como não existia ficha limpa para as adaptações de contos infanto-juvenis, o diretor Wilson Rodrigues engrossou o coro de maledicências e realizou “Masculino... Até Certo Ponto” (1986), logo depois de “No Mundo da Carochinha Volume I: Chapeuzinho Vermelho” (1984).
Na realidade, “O Gato de Botas Extraterrestre” se limita a um veículo para a criançada, cheio de bons modos e intenções calmíssimas. É nítido que a integridade psicofísica do gato foi respeitada durante toda a filmagem, privando-o de orgias interraciais ou mesmo da companhia de Jack, o cãozinho bom de bola em “24 Horas de Sexo Explícito” (1985).
O gato corre, pula, trota de um lado para o outro, atravessa as pradarias da cidade de Gramado. Acaba apresentando um arremedo de Brasil, Europa medieval e efeitos visuais cenozóicos que, acreditem, atordoam pela incrível vagareza.
Se já é difícil ter a exata dimensão de tanta engenhosidade, os leitores podem se preparar para um pequeno surto e lamber os beiços: a adaptação do conto de Charles Perrault é assinada por Rubens Francisco Lucchetti. O próprio. Co-autor de algumas das insânias de José Mojica Marins, incluindo “Finis Hominis” (1971) e “Exorcismo Negro” (1974).
Psicose total, além de Lucchetti o próprio Mojica em pessoa aparece em “O Gato de Botas Extraterrestre” com as capas e as cores de Josefel Zanatas (vulgo Zé do Caixão), sua criatura mais famosa. Apesar disso, o personagem recebe o nome de “Príncipe Renini”. E, sem a agressividade e o ímpeto de “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967), o Príncipe é apenas mais uma das criaturas enfeitiçadas pelo Mago Mau (Jofre Soares).
Renini tem um comportamento absolutamente contrário à identidade pagã de Josefel. Chega ao cúmulo de se dizer produto de uma crença religiosa, um “Moon Ha”, forma decadente, criada pelo podre mago. Aqui já se pode ver o Zé do Caixão fashion, o biscuit centro da moda, paródia de si mesmo. Os pimpolhos rebolavam de medo e, bem provável, papais e mamães não tenham votado no Tio Zé para deputado federal, em 1982.
Como a inspiração não baixou no terreiro extraterrestre, a chance de Príncipe Renini/Zé do Caixão salvar o filme acaba sendo jogada fora. Renini dilui-se antes de transformar “O Gato de Botas Extraterrestre” em um veículo para o caboclo alucinado, que debochasse da pompa e da circunstância.
E isto porque nem as sebosas unhas de Zé nem mesmo a tarimba de Lucchetti controlam Wilson Rodrigues. Morno e arrastado, o diretor apela para a dupla de starlets (Maurício Mattar e Flávia Monteiro), em um clima de Walt Disney levado a sério. Tonia Carrero (avó da garotinha para quem conta a história) tem uma participação inesperada no ouriço.
“O Gato de Botas Extraterrestre” lembra um preparatório para as filmagens em vhs que se multiplicaram durante a década. Algo como o aniversário da tia ou da prima, em que se jogavam os letreiros e se admirava a tecnologia, com os olhos arregalados diante do computador TK 3000.
O próprio Lucchetti parece cansado. Além da escolha canhestra de um lado Roswell – que permanece mal explicado e poderia ter sido uma tacada interessante –, o ex-quadrinista pouco altera o enredo original. Curiosamente, Lucchetti ganhou prestígio nos anos 60 com “O Gato”, em HQs desenhados por Eugenio Colonnese. Já a versão de botas incorpora somente um tipo malandreco, que se contorce e, no alto da histeria, delira feito pastor do Cinema Novo: “Cada cidadão de meu amo é um guarda de si mesmo!”.
No final das contas, o gatinho é minguado. Os verdadeiros acertos ocorrem sem querer. Principalmente nos closes em castelos de brinquedo e nos figurantes que parecem refugiados do holocausto de “As Histórias que Nossas Babás Não Contavam” (1979). Créditos como “Thankfulnes [sic] in Brazil", olhados daqui do futuro, parecem tirados de canções do Supla.
Enquanto Tony Tornado (guarda do Rei) dá um passo de Jackson Five na “BR-3” e a "spatial scene" de um bólido cruza os ares, a maçaroca musical escolhe a trilha sonora de “Blade Runner”. Bem faria o peludo felino se tivesse calçado tênis, aderido às modas do Dr. Cooper e num bestial conjunto de calça e top da Adidas – com listras brancas – corresse pelo mato afora. Quem sabe retirando o walkman das orelhas, para melhor ouvir o querido amo.
12 comentários:
Andrea, voce esta para o cinema brasileiro como o Paulo Cesar Araujo está pra música popular. É uma reordenadora de visões. Eu queria muito ver sua interpretação revisionista, arguta e generosa sobre o cinema nacional transformada num livro como eu não sou cachorro não. A cultura brasileira ganharia tanto com isto.
Vou caçar o filme, Andrea, mas duvido que seja mais divertido que o seu texto. Essa calça adidas, então...
Nada melhor que ler esse blog tomando uma latinha no happy-hour doméstico de sexta.
Juro por Deus que dias atrás eu pensei nesse filme e a falta de uma resenha no "Estranho...".
Agora fico aguardando ansiosamente os textos, Andreia, sobre "Pinóquio 2000", "As aventuras de Sérgio Mallandro" e "Fofão e a nave sem rumo".
bjs
João Cavalheiro
Obrigada, Rodrigo. Acredito nesta necessidade de recontar o cinema brasileiro, através de outras informações que não sejam míopes, idiotizantes. O projeto do livro já está em andamento.
Fofão, este filme transcende. Quando acabou me deu saudade rs E assim o imaginei correndo, numas de Dr. Cooper...
João, mataste a charada. "O Gato de Botas Extraterrestre" foi o primeiro de uma série de infantis que programei para o "Estranho Encontro".
Andrea, achei fantástico o primeiro resultado com o nome dele no Google. Farto material digitalizado.
http://heitorgaiotti.blogspot.com/
Mas o que é aquilo pregado na parede, no still que ilustra a resenha? Uma mezuzá avantajada e deslocada do umbral de entrada?
Lembro quando vi o filme em vhs (não pirata!), há uns 20 anos, um dos créditos listava "The Rodri Group" como empresa produtora.
Loquei pois sabia que o talentoso make-up expert Tom Burman (TEEN WOLF-O GAROTO DO FUTURO, com Michael J. Fox) e a grande Carmem Silva haviam trabalhado no ambicioso projeto.
Belo texto, Andrea.
Luiz, legal o blog do Gaiotti. Acho que eles quiseram fingir um aparador de tocha e não ficou muito bom rsrs
Marco Antonio, gostei da ponte entre o Michael J. Fox e "O Gato de Botas Extraterrestre". Cinema brasileiro tem dessas coisas...
Deste filme,salva-se a grande atriz Carmen Silva,o resto é o resto.Inacreditável.
Filme que causa uma estranha sensação,inesplicável,diferente,absurdo,deveria ser estudado.
O elenco é muito bom e quase todo já foi da Globo,Tony Tornado,Flávia Monteiro,Maurício Mattar,Tônia Carrero,Zezé Motta,Carmen Silva,Felipe Levi,Jofre Soares...
Tem até o Zé do Caixão.
Só assistindo mesmo.
Andrea,
Eu estava lá durante a produção. Na época, fazia assessoria de imprensa. Todo projeto do Wilson -este, em especial- começava com tudo para dar certo. Imagina, Luccheti como roteirista e aquele elenco. Uau! Mas conhecendo Wilson, era fácil adivinhar que nada seria como se esperava. Rodri (do Rodri Group), era uma americana que, sim, possibilitou a confecção da máscara e esteve no Brasil orientando, principalmente, a caracterização do gato. Lucchetti e Mojica são pessoas do início da carreira de Wilson. Nomes que ele admirava e que, naquele momento, não estando bem (aliás, ninguém da Boca estava) Wilson sempre incluía em tudo o que fazia. Os filmes infantis, sempre achei que eram uma forma de incluir o Lucchetti (adorável!).
Até a metade da produção, acho que o gato não era extraterrestre. rsrs
Passou a ser. Não me lembro como, Wilson conheceu um garoto que fazia naves espaciais com sucatas para filmagens, eram fantásticas... Wilson estava num delírio hollywoodiano e quase no final da produção é que soubemos a origem do gato: ele era um extraterrestre... Boquiabertos, vimos o filme, que seria um história da carochinha, transformar-se em ficção (nada) científica.
Wilsont tinha estado nos "States" numa feira de vídeos. Comprou montes daqueles pacotes que têm de tudo, com um ou dois carros-chefes, e o resto vinha de balde. Era o início da era das locadoras. E tudo que se trouxesse vendia. Nessa ida, conheceu e a trouxe para conhecer a WR Cinema e Vídeo a americana Melissa Parker, que trabalhava com viabilização de produções. Foi Melissa, com tive ótimos papos e boas risadas, quem apresentou ao Wilson a Rodri, com quem tive quase nenhum contato.
Bons tempos. De todos do elenco, a presença de Tônia Carreiro me impressionou mais. Não me pergunte como ele conseguia envolvê-la. Fato é que muitos deles gravavam suas cenas sem ver outras sendo gravadas. No final, Waltinho, o montador, cuja moviola ficava na sede da WR, sempre costurava tudo, por mais absurdos que fossem os delírios de Wilson. Para mim, tais delírios eram, em parte, sacadas de olho nas vendas. Extraterrestres e naves, ampliariam o público. Do roteiro, pouco restava quando se chegava à finalização.
Bons tempos de Largo do Paissandu. Início da era do vídeo. Wilson, com um super faro para tendências, foi empresário bem sucedido nesse setor, antes da chegada das grandes distribuidoras. Abriu portas, deu emprego, sua equipe varou o Brasil levando títulos da WR às locadoras mais distantes.
Tenho carinho pelo período que estive por lá. Aprendi a conhecer e admirar aquele homem sem berço, sem escolaridade, mas bom de mercado. Aprendi muito ali. Convivi com o povo da Boca, longe do glamour do Rio e do suporte da Embrafilme. Cinema morto para quem quer sala de exibição. As casas do centro transformadas em espaços pornôs, 24h.
"Façamos produtos vídeo, por que não?" Esta a grande sacada, depois de transformar todos os longas próprios e de quem mais quisesse vender, em fitas videocassete. Por trás do homem destemido, empreendedor muitas vezes truculento e cheio de ideias (dizíamos "ideiúdo") havia um menino (às vezes birrento) cheio de sonhos e de autoconfiança que amava cercar-se das pessoas, quase todos com uma vida mínima ou miserável, com quem conviveu ali no iniciozinho de sua trajetória na Boca.
Que bom você ter levantado a tampa deste baú de memórias.
Sabe por onde anda Wilson? Não encontro nada atual sobre ele na internet, o que é praticamente impossível...Estará vivo? atuante?
Grande abraço, Andrea.
Melânia, muito obrigada por seu testemunho, bastante enriquecedor para a história do filme e para o blog! A Boca do Lixo foi, como disse Helena Ramos, a Boca dos Sonhos, um espaço de criação e criatividade em que muita gente se realizou. Sorte sua ter passado por lá. Para a minha geração, resta a oportunidade de resgatar os filmes, como venho tentando fazer há onze anos neste espaço. Também tenho curiosidade de saber por onde anda o Wilson Rodrigues. O "Gato de Botas" foi seu último filme como diretor... Bjs
Postar um comentário