O delicioso star system da Boca do Lixo, em São Paulo, juntou legiões de atrizes. Algumas fugiam da roça, outras da classe média, outras subiam no primeiro trem da Fepasa que vissem pela frente, loucas de vontade para tremularem um tchauzinho à periferia.
Cada qual trouxe debaixo do braço os currículos e as histórias de vida absolutamente diferentes. Pode parecer contraditório, mas nem todas estavam ali porque amavam a idéia de uma quase-Hollywood brasileira.
Um contingente pouco estudado das atrizes foi cerebral: descolou uns bicos depois das aulas de teatro. Queriam agarrar as oportunidades, brilhar nos close-ups enquanto seu lobo dramatúrgico não vinha.
Selma Egrei ainda hoje diz amém a esta receita. Formada pela Escola de Artes Dramáticas da USP, Selma gosta de se definir como atriz de teatro em tempo integral. De cinema, às vezes.
E vejam vocês: estamos aqui com a primeira entrevistada que fala abertamente contra a Boca paulistana. Para mim, a experiência é apetitosa. A deixa para um confronto de gerações e entendimentos sobre o cinema, em um conversa regada a sinceridade extrema de ambas as partes.
De Selma já conhecia o olhar oblíquo, a beleza acachapante, o mistério, o fascínio. Descobri agora a mulher despida de qualquer traço de vaidade, o que não deixa de ser surpreendente. Há em Selma o entendimento sobre a fugacidade das coisas, o encanto com a arte, mesmo pagando o preço de soar politicamente incorreta.
Mais de 30 filmes, musa de Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, Cláudio Cunha, Antonio Calmon, passando pela irriquieta dupla new wave de José Antônio Garcia e Ícaro Martins. Selma Egrei fala.
ESTRANHO ENCONTRO – Selma, vamos direto ao ponto: você não gostava dos tempos na Boca do Lixo, não é?
SELMA EGREI – Não gostava, de jeito nenhum. “O Dia Que o Santo Pecou”, do Cláudio Cunha, por exemplo, é um filme muito bom, mas por um acaso. Porque a gente não tinha muita noção do que ia virar o filme. Era um roteiro muito mal... um resumo. Isso depois era manipulado pelos produtores, que botavam cenas extras. Eu estava gravando uma novela, em uma cidade aqui do interior de São Paulo, e durante uma pausa me falaram: “Olha o cinema aí do centro, tem uma cena com você”. Falaram o nome do filme, não reconheci. “Eu nunca fiz esse filme.” Fui à porta do cinema e tinha fotos minhas. Chegavam a colocar fotos tiradas de outros filmes, chamando para outros, sabe? Um horror. Mais ou menos nessa época, o [Aníbal] Massaini me convidou. Primeiro para fazer... o que era? Alguma coisa do José de Alencar. “Você vai tingir os seus cabelos de loiro”. “Acho que eu não vou tingir o meu cabelo de loiro nenhum. Eu não estou interessada.” “Nós vamos te lançar, vamos fazer matérias em revistas.” “Você está enganado, não estou interessada nisso.” “Vamos fazer a nossa sex symbol.” “Não. Pessoa errada...” [risos]
EE – [risos] Você queria fugir desse estereótipo.
SE – Total, total. Eu não tinha nada a ver com isso, mas acabei sendo bem manipulada. Até fotos na Playboy, coisas assim. Horrível. Fotos mal feitas, fotos de cena, encaminhadas pelo próprio produtor como contracapa de revistas de cinema. Nem recebi para fazer. Tinha horror a isso tudo. Era um contato profissional. Eu me relacionava com atores de teatro, não tinha nada a ver com aquilo. Me chamavam e eu trabalhava. E fiz muita porcaria. Total falta de conhecimento das coisas, falta de orientação.
EE – O que me dá a brecha para perguntar: como era ser atriz na Boca, naquele momento? É interessante saber esse lado das mulheres na Boca do Lixo.
SE – Era péssimo. Eu era ainda muito inexperiente, não tinha noção do que acontecia, estava saindo do teatro. Me chamavam para fazer cinema, e eu fiz vários filmes. Eu não tinha muita noção. Cinema era muito ruim nessa época, raramente tinha um roteiro.
EE – Então você considerava teatro uma coisa mais nobre?
SE – Teatro era o que eu queria. É o que eu quero. Na época, a gente era muito manipulada porque não havia nenhuma proteção. Manipulada pelos distribuidores, que eram os produtores, e que inventaram aquela Boca do Lixo, aquele comércio de cinema, horroroso. No meio disso tinha gente como o Carlão Reichenbach e o próprio [Walter Hugo] Khouri, mas aquilo era uma fábrica.
EE – Mas aí é que está o diferencial, e acho que esta entrevista está sendo esclarecedora para falar sobre isso justamente com alguém que não joga confete na Boca do Lixo. Se os filmes da Boca tinham um contexto na época, hoje em dia eles têm outro. As pessoas da minha geração vêem os filmes de uma maneira diferente da que a geração de vocês via. A gente gosta desses filmes. A gente aprecia o cinema da Boca, como uma coisa de cinema popular. No“A Noite do Desejo”, por exemplo, o Fauzi Mansur retrata o fenômeno da “Boca do Luxo”: as ruas Major Sertório, Bento Freitas, as garotas que vinham do interior para se prostituir.
SE – O Fauzi é uma pessoa muito séria, muito compenetrada, muito calado. Me lembro como foi o contato, como eu fui chamada para o filme. No “A Noite do Desejo” eu não tinha noção do que estava fazendo. A minha sorte é que meu companheiro de cena era o Ewerton de Castro, um grande ator, grande amigo. O filme foi todo feito à noite, todo in loco. Então era uma coisa assim: “Vamos lá, vamos lá, vamos lá” [risos]. Eu não sei o que eu fiz, nem lembro do filme. Não revejo, não tenho a menor noção [risos]. Das coisas com o Khouri eu tenho bem mais memória.
EE – Chegaremos no Khouri. Mas antes das memórias profissionais, vamos retomar a sua memória da infância...
SE – Eu lembro do meu pai, quando era bem criança, que lia muito para mim. Os livros, as revistas, tudo que tinha em casa. Esse deslumbramento de criança com o pai, com o mundo. Aos 4 anos ele começou a me levar ao cinema. Filha única, nós íamos muito ao cinema, eu via tudo. Predominava o cinema americano, como aliás até hoje, mas havia coisas mais interessantes, não era tão blockbuster. Havia os grandes musicais. Eu tinha fascínio pela Carmen Miranda...
EE – Olha só...
SE – ... É, agora eu vou lembrando... Fred Astaire, enfim, tudo aquilo. Assistíamos aos filmes todos. Infantis, Walt Disney e aos adultos também. Nessa época surgiu um circo no bairro aonde eu morava, a Mooca. Circo “Simplício”. Não era circo de bicho, mas também se havia bicho não sei, não me ligava nisso. O que me interessavam eram as montagens de teatro. O circo ficava um tempo, talvez alguns meses ali, com a tenda armada, com aqueles espetáculos. Foi assim que começou o meu fascínio pelo teatro. No colegial eu conheci o Ronaldo Ciambroni, autor de teatro e diretor. Ele trabalhava com um grupo de teatro amador e eu fiquei um tempo, acompanhei um pouco. Eu devia ter uns 15 anos, por aí. Quando terminei o colegial, conheci alguém, não me lembro como e nem o nome. Viu umas fotos minhas. Fotos comuns, nada especial. E essa pessoa era produtor de elenco para comerciais. Então me convidaram para fazer uma sequência de comerciais, bem interessantes.
EE – Ainda adolescente?
SE – Por volta dos 18 anos. Outros produtores de elenco me chamaram. Fiz vários comerciais por um tempo, muita foto de moda. Já na Escola de Artes Dramáticas, através de um trabalho que estava sendo realizado com alunos no departamento de tv, conheci o Walter Avancini. Era o coordenador. O Walter me convidou para a televisão, não me interessei, eu queria fazer teatro. Mas, paralelamente a isto, alguém buscou na Escola alunos para figuração em um filme do Roberto Santos, em uma cena com o [Gianfrancesco] Guarnieri. Esta foi a minha estreia no cinema.
EE – Quer dizer que você está no “O Grande Momento”? Pela descrição e pelo ano, deve ser. Você lembra qual a cena? Vou caçar você no filme... [risos]
SE – [risos] Deve ser um nada, um nada... Na hora em que eles estão pegando o trem. Depois foi o “Cordélia, Cordélia”, eu acho, com o Rodolfo Nanni. Eu estava na Escola e o Nanni me convidou. Fiz uma secretária, colega da Lilian [Lemmertz]. Durante a dublagem, ele me pediu para dublar alguns outros personagens. Nessa época, também na Escola, alguém me procurou para o filme do [Rubem] Biáfora, “A Casa das Tentações”. Daí por diante, deslanchou.
EE – Como foi a convivência com o Biáfora? Geralmente ele é descrito como uma pessoa temperamental...
SE – Eu não vi isso. A convivência foi muito pequena, uma noite de filmagem. Tive um pouco de contato depois do filme, e ele era sempre muito gentil. Nesse meio tempo, o Khouri estava procurando alguém para protagonizar “O Anjo da Noite”. O Biáfora comentou: “Assista a este take”. O Khouri, na mesma hora: “É ela!”. Eu trabalhava em teatro infantil, porque estudávamos à noite. Acabei indo para a televisão, com o Avancini, e participei da novela “Simplesmente Maria”. Antes de terminar a Escola, entrei para o grupo do Teatro São Pedro, comandado pelo Maurício Segall. O Segall formou um elenco e ali nós tínhamos leituras, encontros com escritores, cineastas. Começamos a montar uma peça, estávamos em cartaz, quando o Khouri me procurou para “O Anjo da Noite”. Eu falei: “Não, não quero, estou no teatro, eu quero teatro.” Ele insistiu, insistiu, insistiu. Foi um absurdo. Um pouco antes do Khouri chegar, quem também viu esse take foi o Fauzi Mansur, que ia dirigir “A Noite do Desejo”.
EE – E, na linha do cinema popular, você trabalhou com um ídolo: o Mazzaropi, em “O Jeca Macumbeiro”.
SE – Comigo ele foi maravilhoso, apesar de ser uma pessoa difícil. Para trabalhar com o Mazzaropi, você tinha que ir à fazenda dele, em que ele era o grande chefe. Mas fui muito bem tratada, tinha acesso inclusive à cozinha, algo que ninguém tinha. Eu já era adepta de uma alimentação natural, vegetariana, macrobiótica, então queria fazer o meu arroz integral. O Mazzaropi abriu a cozinha, me disse: “pode fazer o que você quiser.” Me tratou muito bem, foi muito gentil. Logo depois que a gente filmou eu estava no teatro e imagina: ele veio ao teatro, para me assistir. Tenho uma recordação de muito carinho por ele. Sei que ele teve por mim também. Mas é aquela coisa, aquele cinema dele. Aquela coisa mal acabada. E quem fazia direção e direção de fotografia era o Pio Zamuner.
EE – Aliás, o montador predileto do Mazzaropi era o Mauro Alice. Entrevistei o Mauro para o “Estranho Encontro”, um lorde.
SE – Mauro era uma figura fantástica. Eu fiz inclusive um curta dirigido por ele. Uma locução, algo assim. Mauro era uma figura maravilhosa, não era? Um homem que tinha uma cultura de cinema, de arte de um modo geral. Era muito amigo do Khouri, foi assim que eu conheci o Mauro também.
EE – O Khouri é presença marcante no seu trabalho em cinema. Vamos passar, então, para esse bloco de filmes. Começando pelo “O Anjo da Noite”, um clássico do horror no Brasil. Por sinal, também montado pelo Mauro.
SE – Como eu falei antes, o Khouri insistiu muito para que eu fizesse este papel. As filmagens seriam em Petrópolis e, por causa disso eu neguei. “Nem pensar! Eu estou fazendo teatro aqui, não vou!” Mas a maneira como ele me convenceu a participar foi muito interessante. Ele morava em um apartamento na rua Martins Fontes, aonde morou a vida toda. Conversamos sobre música, ele começou a ver as minhas preferências, colocou um Brahms, um Schubert. Foi por aí que ele me convenceu de que teria uma atmosfera teatral.
EE – Ah, entendi o gancho agora... [risos]
SE – [risos] É... Eu me envolvi com a história, com a ideia. Terminamos a nossa temporada no teatro e então eu fui para Petrópolis. Acho que um mês. Era a casa de um conde, algo assim. Um nobre, meio falido. A casa dele era a locação.
EE – Você está na casa, fechada, com o anjo da noite, que é o Eliezer Gomes. Enclausurados os dois. E tem umas cenas gravadas no subúrbio do Rio também, não é? Aparece a linha do trem...
SE – Tem, tem. A rodoviária. Isso foi feito depois.
EE – É bem anti-Khouri, não? [risos]
SE – Total. Era um horror para ele, gravar estas cenas. “Ai, meu Deus, a gente tem que ir para o Rio, para a rodoviária.” [risos] Por que inventa, então? [risos] Em Petrópolis a casa era próxima do local de onde nós ficamos hospedados. Eu não gostava dessa coisa de ficar em hotel. Eu sempre queria ficar com a equipe. Havia uma casinha pré-fabricada aonde me instalei com a equipe. Só a Lilian que ficava fora. No “O Anjo da Noite” eu sou a baby sitter. A Lilian vai embora e chama a baby sitter, tem uma cena na banheira, e vai embora. O Eliezer era uma pessoa muito discreta, mal falava. Nem sei muito como era o Eliezer. Não sei. O meu contato era com a camareira, com o fotógrafo. Filmávamos a maior parte do tempo à noite. Então, eu tinha a manhã, o dia inteiro livres. Ia pro lago, nadava, subia em árvore. Era isso o que eu queria. Eu dava um certo trabalho, na época. Com o Khouri então... Ele ficava escandalizado. “Você não pode tomar sol! Não pode!” E eu tomava sol [risos]. No intervalo, eu desaparecia. E não podia ver água. Qualquer água eu me atirava. O Khouri ficava doido: “Ai, meu Deus do céu!” [risos].
EE – [risos] É, realmente não combinaria um look saudável, bronzeado, para “O Anjo da Noite”...
SE – O Khouri era muito especial. Quando eu chegava na casa, ele me fechava numa sala, punha a música, saía e me deixava lá. Ouvindo música. Era Billie Holiday, a paixão dele. Era Schubert, a minha paixão. Brahms, Bach. Era assim. Ele falava um pouco sobre o personagem. Me trancava lá e ia embora. Essa era a preparação dele.
EE – Para cada dia.
SE – Sim, para o dia. O Khouri gostava de criar uma atmosfera.
EE – Fazia o roteiro na hora...
SE – Na hora. Ele não escrevia roteiro, era da cabeça dele. Além disso, o Toninho Meliande na câmera, ele dizia “Sai, Toninho” e assumia a câmera também.
EE – Na hora, inclusive, em que o Eliezer começa a rondar e fica em um círculo, totalmente em alucinação, é o Khouri que está na câmera, não é?
SE – Acho que sim, já não tenho mais esta noção. Algumas coisas era o Toninho mesmo que filmava, algumas coisas era o próprio Khouri. E como na época era dublado, ele ficava: “Vai, vai! Linda, linda, linda!” Ele deixava a gente numa atmosfera, sabe? De entusiasmo! “Roda, roda! Continua a rodar, continua a rodar!” Tem que fazer isso, isso aqui. “Não, não! Roda, roda, mais!” Era uma coisa na hora. Criar na hora. Eu aprendi a criar com o Khouri, no cinema. A única pessoa que, para mim, estabeleceu este contato. Eu sou muito intuitiva, mesmo no teatro. Sempre prefiro o trabalho mais intuitivo, sensorial, do que o racional. Mergulhar na história, no personagem e deixar acontecer. Teve o Khouri também, que me influenciou muito nisso. Me abriu esse espaço. E é uma pena, porque eu não consegui trabalhar assim mais com ninguém.
EE – Depois do “O Anjo da Noite” vem “O Desejo”, em que você trabalha de novo com a Lilian. Por sinal, foi gravado no apartamento dele, da rua Martins Fontes.
SE – No “O Anjo da Noite” foi muito melhor a parceria com o Khouri. Primeiro porque era uma coisa na natureza. Minha coisa era essa. “O Desejo” era um pouco mais da relação que o Khouri teve com a Lilian. Paixão e ódio. O filme acho que foi feito muito para ela, eu acho. Não consegui me envolver com aquele clima, pesado, de discussões e relação pessoal. Achava “ai, que bobagem”. O Khouri estava muito meticuloso... No “O Anjo da Noite” eu lembro que ele já vinha: “o cabelinho, o cabelinho”. E eu: “Pára, pára.” No “O Desejo” isso me incomodou, sabe? Era tudo muito estático, me sentia tão presa, tão boneca aqui. Não conseguia me envolver com aquela história. “O Desejo” foi o único, acho, que eu consegui rever algumas vezes. Eu falava “nossa, nada a ver”. Revi há uns anos, na mostra sobre o Khouri no Centro Cultural do Banco do Brasil em São Paulo. Eu estava lá, trabalhando, fui dar uma olhada.
EE – O Khouri estava em pessoa, nesta mostra. Foi em 2001, já faz 10 anos. “O Desejo” é outro desses filmes absurdamente raros, que só passam em mostras, nem mesmo no Canal Brasil...
SE – O que eu lembro mais, o que eu tenho mais memória é de quando a gente gravou as locações em Itu. Porque aí eu estava na minha, solta, outra vez no meio do mato. É o que eu mais tenho memória. No apartamento dele, embora eu gostasse, achasse muito interessante ali, enfim, me sentia tão presa. Em Itu, não. Conheci a Julinha Lemmertz. Como a Lilian tinha medo de água, a Julinha foi escalada para a cena do afogamento [risos].
EE – [risos] Ah é?
SE – Verdade... Aliás, uma coisa importante: “O Anjo da Noite” é um filme que eu gosto. E nunca revi. Tenho muito carinho e muito amor pelo filme. Mas a gente não consegue rever e não participa de nenhuma mostra do Khouri. Isso eu fico muito chateada. Porque eu acho que foi um cinema muito diferente dele, não é? Um momento diferente do Khouri, que fugiu dessa discussão de relações pessoais. As pessoas não gostavam do que ele fazia porque ele bateu direto com o Cinema Novo. Particularmente, ele enchia um pouco o saco. Aquela coisa de ficar cantando, cantando. Desagradável.
EE – Imagino...
SE – Às vezes eu ficava meio brava, brigava com ele. Mas era um doce, um doce total. Tirando esse lado dele, que queria comer todas as mulheres à volta. Acho que foi até depois de “As Filhas do Fogo” que eu fiquei um pouco brigada com ele. Mas adorava o Khouri. Quando trabalhei com ele, era quase sempre com a mesma equipe. O Toninho Meliande, a Isabel Amaral, continuísta. A Santa Isabel, mulher do fotógrafo de cena, o [José] Amaral. Eram sempre eles. E sempre o mesmo eletricista, que infelizmente não lembro mais o nome. Mais o Miro [Reis], que era o assistente. Era essa a equipe. Seis pessoas, todos se davam bem. E eu vivia com os técnicos. O Khouri era exigente demais, comandava tudo, cada detalhe. Escolheu um jeans meu, pegou uma camiseta dele.
EE – Era obsessivo. O que é ótimo para um diretor...
SE – Bastante, bastante. E em “O Anjo da Noite” foram dois produtores do Rio que depois desapareceram. Parece que eles detêm os direitos.
EE – Então a filmagem no Rio foi exigência desses produtores ou do Khouri mesmo? Pergunto isso porque o Khouri tinha uma ligação muito forte com o Rio de Janeiro. Ele morou na cidade, quando criança.
SE – Sim, mas também foi porque ele encontrou a casa ideal, os móveis. Tudo aquilo do filme era real. “O Anjo da Noite” não participa de nada, de nenhuma mostra. “O Anjo da Noite” teve uma única exibição que eu me lembro, na Globo, e todo mundo “oh!” Virou cult.
EE – “As Filhas do Fogo” também passou na tv aberta. É uma participação interessante a sua, porque você não diz nenhuma palavra...
SE – Não?
EE – Não. Você aparece como o vulto, a roupa vaporosa. Não fala e rouba o filme![risos]
SE – [risos]
EE – Somente a imagem...
SE – Não lembrava...
EE – E é uma história bastante intrincada...
SE – O Khouri adorava o tema, essa história das vozes do além, adorava isso. a gente foi para um festival de cinema, emendou e já rodou o filme. Em Canelas. Usamos uma casa que acabou virando museu. Na época ainda não era, a família morava lá e o local foi todo construído nos moldes germânicos. Não tem um prego, um parafuso.
EE – Um aspecto em especial chama a atenção: é um dos poucos filmes brasileiros em que neva. Devia ser junho, julho, quando vocês gravaram.
SE – E tem tudo a ver com o Khouri, não é? Eu passeava bastante por Canela, pegava o cavalo, ia andar. Lembro de uma pequena varanda, fechada, de inverno e o Khouri me levando para lá. Colocou o toca-discos dele, a Billie Holiday... Lembro da Karin Rodrigues, ela dizendo pro Khouri: “Khouri, eu não vou beijar ela, hein? Eu não vou beijar ela. Para com isso, hein!” [risos]
EE – [risos] Mas beija. Acabou beijando...
SE – Beijou, não é? [risos] Durante as gravações houve um episódio pitoresco. Eu não vi. Estavam filmando à noite, ligaram o gerador, iam começar. O Khouri de repente ficou alucinado: teve um disco voador! Várias vezes. Em Gramado, em Canela. Pá! O gerador parou! Eles olharam aonde estava o gerador e surgiu um clarão no céu. Nossa, o que essa história rendeu... Rendeu que rendeu, porque o Khouri estava lidando com vozes do além no filme... O Khouri era sempre muito rápido, nunca passava de um mês a filmagem. A equipe sempre pequena e ele comandando tudo.
EE – Saindo do “As Filhas do Fogo”, chegamos no “Eros”, seu último filme juntos. Lembro sempre de uma cena muito bonita, plasticamente. Aquele fundo negro, você se contorcendo, amarrada...
SE – Ah, já sei.
EE – É como se fosse o absoluto, a imensidão negra...
SE – No “As Filhas do Fogo” o Khouri havia me chamado. Eu não sei o que eu iria fazer, e ele queria uma atriz que morreu depois, enfim. Teve uma história assim. E na época já havia “as globais”. Quando não dava para ter uma global, chamavam a gente. No “Eros” foi isso. O Khouri me ligou, disse: “Eu quero que você faça uma revolucionária”. Mas depois foi cortado, quiseram colocar uma global.
EE – A Renée de Vielmond.
SE – Foi. E então Khouri falou: “Vamos inventar uma história aí [risos], porque eu chamei todas as mulheres que fizeram parte da minha vida e eu quero você no filme. Tenho uma ideia.” Na época eu trabalhava muito com dança, ele sabia. Dança do ventre. Ele me chamou, era de noite. Cheguei, estavam a Denise Dumont, as estrelas. Ai, uma coisa. Maquiagem, isso e aquilo. Fiquei quieta, esperando. Quando terminou o trabalho com ela, ele me disse: “Agora vamos. Uma cena de sadomasoquismo.” Com o Roberto Maya, com quem eu havia trabalhado. Enquanto ficou com a Denise Dumont tendo ataque de estrela, o Khouri me deixou numa sala e ligou a música. [risos]
EE – [risos] Sem perder tempo...
SE – Nenhum, tudo em uma madrugada, depois de ela ter ido embora. “Vamos lá, na cama!” E era assim mesmo: “Vamos inventar”. Ele, firme: “Vamos! Agora! Assim! Aqui, ali!” Assim que a gente filmou, inventamos na hora. E tinha essa foto, acho, no cartaz do filme. Ele comentou comigo. “Nossa, a mulherada está louca da vida com você. Elas não se conformam, estão me ligando direto. 'Por que que colocou ela no cartaz?' Eu coloquei porque eu quis, achei bonita a foto.” Ficaram alucinadas, doidas, querendo me matar [risos]...
EE – [risos] Você já reviu a cena?
SE – Raramente eu revejo. Tinha uma coisa também com o Khouri: a gente trabalhava sem maquiagem, preparação de elenco, nada. Carreguei isso comigo também, sempre que eu pude.
EE – Essa questão do estrelismo.
SE – Ai, essas coisas...
EE – Sempre existem histórias do arco da velha, essas rivalidades de praxe...
SE – Certa noite, a esposa de um roteirista pegou o carro e me jogou no precipício, quase que eu caí. No dia seguinte...
EE – Como assim? Você estava dentro do carro, com ela?
SE – Não, sozinha. No meu carro.
EE – Ela bateu no seu carro de propósito? Isso nem é mais rivalidade...
SE – Foi, me jogou.
EE – Um clima “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”...
SE – Depois eu fiquei sabendo da história. Ela e a namorada de um ator acharam que eu estava atrás do marido e do namorado. Eu estava totalmente isolada de tudo no set. Nem ficava com a equipe, não fazia nada. Pois veja você: elas encanaram e queriam me eliminar. No dia seguinte, o roteirista, que acompanhava a filmagem e também dirigia, me disse: “Olha, não posso mais falar com você, não posso mais te dirigir. Você me desculpe, mas a minha mulher está muito nervosa...” Foi assim. Nunca mais falou comigo. O filme depois fez sucesso, ganhei prêmio. Esse homem nunca me dirigiu a palavra, para falar “legal”. Poxa vida. Escapei, não sei nem como. Já tinha acontecido um qualquer coisa, o ator brigou lá com a namorada. Não lembro como foi, só me lembro disso: eu quase caindo do precipício. A namorada já tinha encanado, acho que foi encher a cabeça da outra.
EE – Não teve diálogo, foi logo para as vias de fato...
SE – Foi. Uma beleza [risos]...
EE – Na Boca, você chegou a trabalhar com o Cláudio Cunha também, não foi?
SE – No “O Dia que o Santo Pecou”. O Benedito Ruy Barbosa fez o roteiro e já havia me chamado para a televisão. Acabou não dando certo. Aí ele me procurou para esse filme. E eu acho um bom filme, gostei de ter feito. “A Carne” [de J. Marreco] também é um bom filme. Mas foi uma coisa muito estranha “O Dia Que o Santo Pecou”. O Benedito juntava a turminha dele, nós fomos para São Sebastião. A história se passa lá. Na primeira noite que eu cheguei, me botou em um quarto na casa de praia dele e da família. Ele tinha dois ou três filhos pequenos, mais uns sobrinhos. Me botou numa beliche, no meio da criançada, uma coisa, assim... [risos] No outro dia me mandaram para a casa de um amigo dele, numa outra praia. Uma casa meio isolada, meio vazia. “Você pode ficar lá. Tranquilo.” Aí fui, fiquei na casa. Passou um tempo, quem foi pra lá foi o Maurício do Valle. Ficou no outro quarto, era tão tranquilo.
EE – O Maurício do Valle era tranquilo? Não correspondeu à fama de doidão dele?
SE – Olha, eu já tinha trabalhado com o Maurício do Valle no “O Coronel e o Lobisomem”. Eu gosto, gostava muito do Maurício. Devia ter a loucura dele, mas comigo foi muito legal. E no “O Dia Que o Santo Pecou” eu saía dessa casa nessa praia, de manhã. Não me penteava, não me maquiava, não punha sapato, fazia meus exercícios na praia, o meu Tai-Chi. Subia o morro, descia o morro do outro lado e estava na praia, que era do Instituto Biológico. Ali foi construída a cabana, aonde era o set. Na época eu tinha um buggy. Então meu marido saiu de São Paulo e levou o buggy pra eu poder passear um pouco. Acabava a filmagem, eu ia até a casa, tomava banho, ia pro centro de São Sebastião, ver a equipe. Meus velhos conhecidos: o Miro, a Isabel, todo mundo outra vez.
EE – Um diretor bem problemático foi o Roberto Mauro...
SE – Ah, sim! Eu fiz um filme com ele, em que eu corria pelada.
EE – “O Poderoso Machão”. Na onda do “O Poderoso Chefão”, em 1974, 1975. O Roberto dirigiu o “Viagem ao Céu da Boca”, um filme ultra maldito. Em que você não está, fica tranquila... [risos]
SE – [risos] Eu fiz esse “O Poderoso Machão”? Será que é esse que eu entro, que foi rodado em uma cidade aqui perto de São Paulo? Nem lembro o que era, só lembro de uma hora em que eu saía correndo. A gente filmava em um prostíbulo. Não sei o que a gente estava fazendo nesse prostíbulo, mas durante uma cena ele falou: “Você tira a roupa e anda.” E eu, louca, pelada no meio da cidade, com todo mundo vendo, Tirava a roupa e saía correndo. Alguém lá, que era um cara da equipe, fazendo uma figuração no filme, falando: “Safra nova! Safra nova!” E saía atrás.
EE – [risos] E do“O Paraíso Proibido”, do Carlão? Para mim é interessante pegar também esse outro tipo de filmagem na Boca do Lixo. O Reichenbach era um cara mais erudito, mais sofisticado. Você estava bem garota, ainda. 1971.
SE – Também lembro muito pouco, muito pouco. Lembro que a gente filmou numa praia dessas. Praia Grande, Itanhanhém, algum lugar por aí. Também mesmo esquema de Boca do Lixo. A gente hospedado em um condomínio de praia. Tipo BNH, sabe como é? Muito mal acomodado. Eu já tinha trabalhado com o Carlão em alguma coisa em que ele dirigiu a fotografia. Não me lembro o quê. E aí, quando fez o filme dele, me chamou para essa participação. Carlão é aquilo mesmo que a gente conhece, é aquilo.
EE – E o “Aleluia, Gretchen”, do Sylvio Back?
SE – “Aleluia, Gretchen” foi uma pedra no caminho. O Sylvio Back era um amigo, por causa do Khouri, tal. A gente se encontrava no Festival de Gramado e em um desses festivais ele me convidou: “Vou fazer um filme e quero vocês, as mulheres do Khouri, comigo.” A Lilian, a Kate [Hansen]. “Olha, vai ser muito rápido”. Não tinha dinheiro, não tinha contrato, não tinha nada. Ele mandava a Lilian de avião e a Kate e eu íamos de ônibus. “Vão ser 3 finais de semana, hein? Vocês vêm na sexta, no domingo vão embora.” E não aconteceu isto. O filme não acabava nunca, a gente viajando de ônibus para Curitiba. Era final de semana mas acabava ficando a semana inteira. Começou a ficar insuportável. Apesar de o filme ser interessante, começou a ficar insuportável.
EE – Vocês iam e voltavam de ônibus?
SE – É. E a gente tinha o convite para ir ao festival do Irã. Nós 3. A Lilian, a Kate e eu. O filme parou, acabaram as filmagens em Curitiba, o restante para fazer em Blumenau. Mas não vinha nunca, a tal da filmagem. “O tempo está ruim, não tem avião.” Não vinha nunca. A Kate e eu perguntamos: “E aí, e o festival? Olha, nós vamos para o festival”. O Sylvio ficou puto da vida, processou a gente, foi uma história longa. Processou, não deixou a gente dublar o filme. Botou um dublador profissional, cortou a cena. “A gente filma na volta, o festival é rápido. É uma semana e a gente volta.” Cortou, fez a cena com desenho. Foram longos anos de o Sylvio indo no Estadão, no Jornal da Tarde. Eu encontrando com ele em festival de cinema e ele sempre chamando os jornalistas para falarem mal de mim. E teve o processo. Aí foi horrível, porque a Lilian testemunhou contra. A Miriam Pires também. Foi chato, foi chato. E ele adulterou... Tinha um contrato padrão da Boca do Lixo. Adulterou o contrato, colocando que era um mês e meio de filmagem, quando havia combinado 2 a 3 finais de semana.
EE – E depois, o que se resolveu no processou? Teve alguma consequência, alguém ganhou?
SE – Não. Que eu me lembre, deu em nada.
EE – Bom... além do Khouri houve algum diretor em quem você confiasse?
SE – Eduardo Escorel. Maravilhoso.
EE – Um grande clássico, o “Ato de Violência”. O que você lembra do filme?
SE – Nossa, foi tudo. Um filme de uma competência do Escorel, inclusive totalmente dependente do mesmo produtor de “As Filhas do Fogo” [César Memolo]. Mesmo estando nas mãos do produtor, ele conseguiu fazer um filme que eu acho maravilhoso. Ele é de uma delicadeza, sabe como lidar com o ator. Sabe conduzir uma cena. Fiquei encantada com o Escorel. Lembro da cena que fiz com o Sílvio Zilbert, um grande ator. Também lembro da gente filmando no presídio lá de não sei de onde. Terrível. Passamos o dia inteiro lá, filmando. Eu sozinha, naquele presídio [risos]...
EE – Você teve um hiato no Rio de Janeiro, trabalhando com o Antonio Calmon.
SE – O Calmon. Calmon foi um grande amigo. Conheci durante “A Carne”, em que ele apareceu para fazer assistência. A gente se deu muito bem e quando ele começou a filmar, fizemos “Os Embalos de Ipanema”, “Gente Fina É Outra Coisa”. Depois na televisão. Sempre que ele escrevia, me chamava.
EE – No “Os Embalos de Ipanema” você está no hotel com o André di Biasi. A mulher é meio louca, e ele com medo da mulher. Uma socialite paulista, aquelas...
SE –... que pegava menininho e tal [risos]... O Calmon era aquela cabeça mais de carioca. Mais loucura, produção maior, a Marília Carneiro responsável pelo figurino. No Rio eram equipes maiores. Fiz um outro filme no Rio, por essa época: “O Coronel e o Lobisomem”, que não deu certo. Um grande filme, uma pena. Não deu certo porque era som direto e não funcionou. Mas deveria ter sido um ótimo filme.
EE – E nos anos 80 você trabalhou com uma dupla muito querida, o José Antonio Garcia e o Ícaro Martins, no “A Estrela Nua”. Da Vila Madalena, outra vertente no cinema paulistano.
SE – Loucura total.
EE – Total?
SE – Total, total. Uma zona, uma confusão. O diretor sempre meio drogado. Uma noite foi preso [risos]...
EE – [risos] Qual deles, o José Antonio ou o Ícaro?
SE – O José Antonio. O Ícaro era todo certinho. Eles eram uma turma da USP que se formavam e começavam a fazer cinema. Era muita coisa, muita loucura.
EE – Porque na Boca não rolava droga, era bem careta nesse sentido. “Estrela Nua” já foi em 84...
SE – Super careta. Tinha mais uma coisa: a gente não sabia qual era a participação. Eu nem sabia muito bem o que estava acontecendo ali [risos]...
EE – [risos] Com a Tereza Trautman, em 1988 deve ter sido diferente. “Sonhos de uma Menina Moça”.
SE – Um trauma. Eu estava fazendo teatro no Rio, “Lilith, A Lua Negra. Em seguida já engatei uma novela. A Tereza foi no teatro, me convidou, e entre a temporada de teatro e a novela aconteceu o filme da Tereza. Não sei se ela estava em um momento difícil da vida dela. Reuniu um puta elenco, uma locação única, tinha tudo para dar certo. Ela chorava, parava a filmagem, não conseguia dirigir. Em uma cena nós estávamos na sala, praticamente o elenco inteiro, e ela não conseguia dirigir, chorava. Uma coisa assim...
EE – Então, na prática, pelo que eu percebi, teve poucos momentos em que você se sentiu plena nas telas. Ou é impressão minha?
SE – Foi. O Khouri dizia que eu era uma atriz que tinha uma relação direta com a câmera. Eu gostava disso, mas foi muito pouco, muito pouco. Talvez nesses momentos com o Khouri e com o Escorel. Com o Escorel a participação foi muito pequena. Essa relação com a câmera, esse tipo de coisa, esse criar na hora, eu tive com o Khouri. Não se repetiu. Fui me desinteressando totalmente de cinema. Comecei a achar um pequeno horror. Aqueles horrores na Boca do Lixo. Aquilo é lixo, não vale a pena.
EE – Mas você gostou das participações nos anos 2000, fora da Boca? “Nosso Lar”, “Chega de Saudade” e “O Signo da Cidade”.
SE – Eles me chamaram.
EE – Não teve nenhum envolvimento nesses filmes.
SE – Não, foi um dia de filmagem, ali.
EE – “Nosso Lar”, inclusive, tem um papel mais intenso. Em um filme espírita, você faz justamente a mãe que morreu.
SE – “Nosso Lar” foi uma novela. Demorou muito para realmente começar a ser filmado. Foi leitura e outra vez reunião, leitura. E agora aquela equipe enorme. Teste de não sei o quê, roupa, isso, aquilo. Teve preparação de elenco. Não sei como eu consegui escapar. Era muita coisa, muita gente, e não acontecia nunca a filmagem. Acabei brigando com a produção, pedi pra sair. Falei “Não posso ficar à disposição, 3 meses, sem saber quando filmar. Eu preciso trabalhar, imagina.” Pedi pra sair, briguei. “Por favor, chama outra pessoa.” E ele insistiu, queria que fosse eu. Queria porque queria. Eu fiz, mas assim, sabe? Ah, não dá pra ficar uma semana parada no Rio porque está chovendo. E sem filmar, a gente não ganha nada. Você ganha um cachê pro dia de filmagem. Não dá. Mas valeu, foi uma experiência legal. Tem uma coisa muito legal nisso que é a sinceridade do diretor. Ele realmente é espírita, fez aquele filme acreditando. E a sinceridade da produtora, que também é espírita. Sócia dele, estavam os dois juntos, acreditando naquilo, comandando aquela coisa enorme. Valeu.
EE – E é um tipo de estrutura de produção que você não tinha pego ainda.
SE – Acho que foi a maior que eu peguei.
EE – Porque mesmo no “Chega de Saudade” da [Laís] Bodanzky, existe uma coisa mais artesanal.
SE – Mais artesanal. Equipe grande também, só que mais artesanal. E eu filmei um dia, então não participei da loucura toda. Tem um filme que eu fiz agora, há dois anos, com o Chico César Filho, documentarista. Não sei o que aconteceu, ele não lançou o filme, que era dessa leva toda aí, que recebeu incentivo. Baixo orçamento, mas também com uma equipe enorme. Comecei a ver e pensei: “Nossa, o cinema quando eu fazia direto, era tão diferente.” O diretor comandava tudo, o diretor dirigia os atores. Agora não sei bem nem o que o diretor faz. Porque tem 2, 3 assistentes. Tem uma equipe enorme, uma coisa assim... Tem preparador de elenco. Eu não sei mais, muito bem, qual é a função de um diretor. “Nosso Lar”, não. Realmente era ali, o diretor dirigindo os atores na hora, muito legal.
EE – A Bodanzky também?
SE – Ela é de uma exigência! Eu saí arrasada do dia de filmagem. Coisas pequenas e eu fazia com o pé atrás, imagina. Ela é ótima, ótima. Dirigiu a dublagem no dia seguinte porque houve problemas. Tivemos que dublar também. Ela é ótima, ótima. Eu me distanciei muito de cinema. Eu acho muito interessante o que está acontecendo agora, tem ótimos filmes. Mas também tem acontecido de me chamarem e eu falo “ai, gente, estou fora”. Chamam para fazer teste, sabe como é? Porque agora qualquer pessoa que pela primeira vez vai dirigir um longa, você nem sabe quem é, chama várias atrizes para teste.
EE – É o que o Roberto Maya contou, em uma entrevista aqui no “Estranho Encontro”. Chamaram ele para teste, um cara que tem 40 anos de carreira...
SE – Acabaram de me chamar. Nem sei qual é o nome do filme. “Como assim, teste? Não acho legal.” Eu gosto de trabalhar com quem conhece o meu trabalho e quer trabalhar comigo. Aí a gente estabelece uma relação de respeito. Mas fazer teste? Não é questão de eu achar que eu sou o máximo Não. É que não faz muito sentido isso pra mim. Então eu me sinto muito distanciada do cinema. Muito mesmo. No teatro a gente tem mais espaço, de qualquer maneira. Período de experimentação, de ensaio, de criar, de exigir. No cinema é tudo muito rápido, muito estranho. Acho muito estranho ser preparada por alguém, depois ser dirigida por outro. Não acho muito orgânico. Você fica por um tempo lá, passando por uma experiência com um preparador de elenco, aquilo acaba e no dia de filmar é outra história. Então, não sei. Não tenho mais uma ligação profunda com o cinema. Na época, apesar de ter feito tanta porcaria, eu tinha mais.
EE – Uma pergunta paralela: nas novelas, você se entrega de corpo e alma?
SE – Não, acho que não, porque aí vira uma coisa mecânica. Uma novela atrás da outra. Embora tenha esse lado confortável de ter contrato e tal, mas acho que eu não me encaixo muito nisso. Mas, por outro lado, cinema eu acho que passei 10 anos sem fazer. Parei ali na Tereza Trautman. Que é isso, gente? Cinema nacional virou um subproduto da Globo. Tudo que é feito tem em vista ter os protagonistas da Globo, trabalhar essa grande divulgação global.
EE – Não te interessou mais?
SE – Não. Claro que se surgir alguma coisa interessante... 40 filmes, sabia? Fiz muita bobagem. Acho que fica meia dúzia daí [risos]...
EE – [risos] Dessa meia dúzia, o que você escolhe?
SE – Olha, “O Anjo da Noite” sobretudo. O “Ato de Violência”. Apesar da confusão com o Sylvio Back, também gosto de “Aleluia, Gretchen”. Aquele de São Sebastião, “O Dia Que o Santo Pecou”. Pinçando essa meia dúzia, eu senti que pude realizar um trabalho melhor.
Cada qual trouxe debaixo do braço os currículos e as histórias de vida absolutamente diferentes. Pode parecer contraditório, mas nem todas estavam ali porque amavam a idéia de uma quase-Hollywood brasileira.
Um contingente pouco estudado das atrizes foi cerebral: descolou uns bicos depois das aulas de teatro. Queriam agarrar as oportunidades, brilhar nos close-ups enquanto seu lobo dramatúrgico não vinha.
Selma Egrei ainda hoje diz amém a esta receita. Formada pela Escola de Artes Dramáticas da USP, Selma gosta de se definir como atriz de teatro em tempo integral. De cinema, às vezes.
E vejam vocês: estamos aqui com a primeira entrevistada que fala abertamente contra a Boca paulistana. Para mim, a experiência é apetitosa. A deixa para um confronto de gerações e entendimentos sobre o cinema, em um conversa regada a sinceridade extrema de ambas as partes.
De Selma já conhecia o olhar oblíquo, a beleza acachapante, o mistério, o fascínio. Descobri agora a mulher despida de qualquer traço de vaidade, o que não deixa de ser surpreendente. Há em Selma o entendimento sobre a fugacidade das coisas, o encanto com a arte, mesmo pagando o preço de soar politicamente incorreta.
Mais de 30 filmes, musa de Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, Cláudio Cunha, Antonio Calmon, passando pela irriquieta dupla new wave de José Antônio Garcia e Ícaro Martins. Selma Egrei fala.
ESTRANHO ENCONTRO – Selma, vamos direto ao ponto: você não gostava dos tempos na Boca do Lixo, não é?
SELMA EGREI – Não gostava, de jeito nenhum. “O Dia Que o Santo Pecou”, do Cláudio Cunha, por exemplo, é um filme muito bom, mas por um acaso. Porque a gente não tinha muita noção do que ia virar o filme. Era um roteiro muito mal... um resumo. Isso depois era manipulado pelos produtores, que botavam cenas extras. Eu estava gravando uma novela, em uma cidade aqui do interior de São Paulo, e durante uma pausa me falaram: “Olha o cinema aí do centro, tem uma cena com você”. Falaram o nome do filme, não reconheci. “Eu nunca fiz esse filme.” Fui à porta do cinema e tinha fotos minhas. Chegavam a colocar fotos tiradas de outros filmes, chamando para outros, sabe? Um horror. Mais ou menos nessa época, o [Aníbal] Massaini me convidou. Primeiro para fazer... o que era? Alguma coisa do José de Alencar. “Você vai tingir os seus cabelos de loiro”. “Acho que eu não vou tingir o meu cabelo de loiro nenhum. Eu não estou interessada.” “Nós vamos te lançar, vamos fazer matérias em revistas.” “Você está enganado, não estou interessada nisso.” “Vamos fazer a nossa sex symbol.” “Não. Pessoa errada...” [risos]
EE – [risos] Você queria fugir desse estereótipo.
SE – Total, total. Eu não tinha nada a ver com isso, mas acabei sendo bem manipulada. Até fotos na Playboy, coisas assim. Horrível. Fotos mal feitas, fotos de cena, encaminhadas pelo próprio produtor como contracapa de revistas de cinema. Nem recebi para fazer. Tinha horror a isso tudo. Era um contato profissional. Eu me relacionava com atores de teatro, não tinha nada a ver com aquilo. Me chamavam e eu trabalhava. E fiz muita porcaria. Total falta de conhecimento das coisas, falta de orientação.
EE – O que me dá a brecha para perguntar: como era ser atriz na Boca, naquele momento? É interessante saber esse lado das mulheres na Boca do Lixo.
SE – Era péssimo. Eu era ainda muito inexperiente, não tinha noção do que acontecia, estava saindo do teatro. Me chamavam para fazer cinema, e eu fiz vários filmes. Eu não tinha muita noção. Cinema era muito ruim nessa época, raramente tinha um roteiro.
EE – Então você considerava teatro uma coisa mais nobre?
SE – Teatro era o que eu queria. É o que eu quero. Na época, a gente era muito manipulada porque não havia nenhuma proteção. Manipulada pelos distribuidores, que eram os produtores, e que inventaram aquela Boca do Lixo, aquele comércio de cinema, horroroso. No meio disso tinha gente como o Carlão Reichenbach e o próprio [Walter Hugo] Khouri, mas aquilo era uma fábrica.
EE – Mas aí é que está o diferencial, e acho que esta entrevista está sendo esclarecedora para falar sobre isso justamente com alguém que não joga confete na Boca do Lixo. Se os filmes da Boca tinham um contexto na época, hoje em dia eles têm outro. As pessoas da minha geração vêem os filmes de uma maneira diferente da que a geração de vocês via. A gente gosta desses filmes. A gente aprecia o cinema da Boca, como uma coisa de cinema popular. No“A Noite do Desejo”, por exemplo, o Fauzi Mansur retrata o fenômeno da “Boca do Luxo”: as ruas Major Sertório, Bento Freitas, as garotas que vinham do interior para se prostituir.
SE – O Fauzi é uma pessoa muito séria, muito compenetrada, muito calado. Me lembro como foi o contato, como eu fui chamada para o filme. No “A Noite do Desejo” eu não tinha noção do que estava fazendo. A minha sorte é que meu companheiro de cena era o Ewerton de Castro, um grande ator, grande amigo. O filme foi todo feito à noite, todo in loco. Então era uma coisa assim: “Vamos lá, vamos lá, vamos lá” [risos]. Eu não sei o que eu fiz, nem lembro do filme. Não revejo, não tenho a menor noção [risos]. Das coisas com o Khouri eu tenho bem mais memória.
EE – Chegaremos no Khouri. Mas antes das memórias profissionais, vamos retomar a sua memória da infância...
SE – Eu lembro do meu pai, quando era bem criança, que lia muito para mim. Os livros, as revistas, tudo que tinha em casa. Esse deslumbramento de criança com o pai, com o mundo. Aos 4 anos ele começou a me levar ao cinema. Filha única, nós íamos muito ao cinema, eu via tudo. Predominava o cinema americano, como aliás até hoje, mas havia coisas mais interessantes, não era tão blockbuster. Havia os grandes musicais. Eu tinha fascínio pela Carmen Miranda...
EE – Olha só...
SE – ... É, agora eu vou lembrando... Fred Astaire, enfim, tudo aquilo. Assistíamos aos filmes todos. Infantis, Walt Disney e aos adultos também. Nessa época surgiu um circo no bairro aonde eu morava, a Mooca. Circo “Simplício”. Não era circo de bicho, mas também se havia bicho não sei, não me ligava nisso. O que me interessavam eram as montagens de teatro. O circo ficava um tempo, talvez alguns meses ali, com a tenda armada, com aqueles espetáculos. Foi assim que começou o meu fascínio pelo teatro. No colegial eu conheci o Ronaldo Ciambroni, autor de teatro e diretor. Ele trabalhava com um grupo de teatro amador e eu fiquei um tempo, acompanhei um pouco. Eu devia ter uns 15 anos, por aí. Quando terminei o colegial, conheci alguém, não me lembro como e nem o nome. Viu umas fotos minhas. Fotos comuns, nada especial. E essa pessoa era produtor de elenco para comerciais. Então me convidaram para fazer uma sequência de comerciais, bem interessantes.
EE – Ainda adolescente?
SE – Por volta dos 18 anos. Outros produtores de elenco me chamaram. Fiz vários comerciais por um tempo, muita foto de moda. Já na Escola de Artes Dramáticas, através de um trabalho que estava sendo realizado com alunos no departamento de tv, conheci o Walter Avancini. Era o coordenador. O Walter me convidou para a televisão, não me interessei, eu queria fazer teatro. Mas, paralelamente a isto, alguém buscou na Escola alunos para figuração em um filme do Roberto Santos, em uma cena com o [Gianfrancesco] Guarnieri. Esta foi a minha estreia no cinema.
EE – Quer dizer que você está no “O Grande Momento”? Pela descrição e pelo ano, deve ser. Você lembra qual a cena? Vou caçar você no filme... [risos]
SE – [risos] Deve ser um nada, um nada... Na hora em que eles estão pegando o trem. Depois foi o “Cordélia, Cordélia”, eu acho, com o Rodolfo Nanni. Eu estava na Escola e o Nanni me convidou. Fiz uma secretária, colega da Lilian [Lemmertz]. Durante a dublagem, ele me pediu para dublar alguns outros personagens. Nessa época, também na Escola, alguém me procurou para o filme do [Rubem] Biáfora, “A Casa das Tentações”. Daí por diante, deslanchou.
EE – Como foi a convivência com o Biáfora? Geralmente ele é descrito como uma pessoa temperamental...
SE – Eu não vi isso. A convivência foi muito pequena, uma noite de filmagem. Tive um pouco de contato depois do filme, e ele era sempre muito gentil. Nesse meio tempo, o Khouri estava procurando alguém para protagonizar “O Anjo da Noite”. O Biáfora comentou: “Assista a este take”. O Khouri, na mesma hora: “É ela!”. Eu trabalhava em teatro infantil, porque estudávamos à noite. Acabei indo para a televisão, com o Avancini, e participei da novela “Simplesmente Maria”. Antes de terminar a Escola, entrei para o grupo do Teatro São Pedro, comandado pelo Maurício Segall. O Segall formou um elenco e ali nós tínhamos leituras, encontros com escritores, cineastas. Começamos a montar uma peça, estávamos em cartaz, quando o Khouri me procurou para “O Anjo da Noite”. Eu falei: “Não, não quero, estou no teatro, eu quero teatro.” Ele insistiu, insistiu, insistiu. Foi um absurdo. Um pouco antes do Khouri chegar, quem também viu esse take foi o Fauzi Mansur, que ia dirigir “A Noite do Desejo”.
EE – E, na linha do cinema popular, você trabalhou com um ídolo: o Mazzaropi, em “O Jeca Macumbeiro”.
SE – Comigo ele foi maravilhoso, apesar de ser uma pessoa difícil. Para trabalhar com o Mazzaropi, você tinha que ir à fazenda dele, em que ele era o grande chefe. Mas fui muito bem tratada, tinha acesso inclusive à cozinha, algo que ninguém tinha. Eu já era adepta de uma alimentação natural, vegetariana, macrobiótica, então queria fazer o meu arroz integral. O Mazzaropi abriu a cozinha, me disse: “pode fazer o que você quiser.” Me tratou muito bem, foi muito gentil. Logo depois que a gente filmou eu estava no teatro e imagina: ele veio ao teatro, para me assistir. Tenho uma recordação de muito carinho por ele. Sei que ele teve por mim também. Mas é aquela coisa, aquele cinema dele. Aquela coisa mal acabada. E quem fazia direção e direção de fotografia era o Pio Zamuner.
EE – Aliás, o montador predileto do Mazzaropi era o Mauro Alice. Entrevistei o Mauro para o “Estranho Encontro”, um lorde.
SE – Mauro era uma figura fantástica. Eu fiz inclusive um curta dirigido por ele. Uma locução, algo assim. Mauro era uma figura maravilhosa, não era? Um homem que tinha uma cultura de cinema, de arte de um modo geral. Era muito amigo do Khouri, foi assim que eu conheci o Mauro também.
EE – O Khouri é presença marcante no seu trabalho em cinema. Vamos passar, então, para esse bloco de filmes. Começando pelo “O Anjo da Noite”, um clássico do horror no Brasil. Por sinal, também montado pelo Mauro.
SE – Como eu falei antes, o Khouri insistiu muito para que eu fizesse este papel. As filmagens seriam em Petrópolis e, por causa disso eu neguei. “Nem pensar! Eu estou fazendo teatro aqui, não vou!” Mas a maneira como ele me convenceu a participar foi muito interessante. Ele morava em um apartamento na rua Martins Fontes, aonde morou a vida toda. Conversamos sobre música, ele começou a ver as minhas preferências, colocou um Brahms, um Schubert. Foi por aí que ele me convenceu de que teria uma atmosfera teatral.
EE – Ah, entendi o gancho agora... [risos]
SE – [risos] É... Eu me envolvi com a história, com a ideia. Terminamos a nossa temporada no teatro e então eu fui para Petrópolis. Acho que um mês. Era a casa de um conde, algo assim. Um nobre, meio falido. A casa dele era a locação.
EE – Você está na casa, fechada, com o anjo da noite, que é o Eliezer Gomes. Enclausurados os dois. E tem umas cenas gravadas no subúrbio do Rio também, não é? Aparece a linha do trem...
SE – Tem, tem. A rodoviária. Isso foi feito depois.
EE – É bem anti-Khouri, não? [risos]
SE – Total. Era um horror para ele, gravar estas cenas. “Ai, meu Deus, a gente tem que ir para o Rio, para a rodoviária.” [risos] Por que inventa, então? [risos] Em Petrópolis a casa era próxima do local de onde nós ficamos hospedados. Eu não gostava dessa coisa de ficar em hotel. Eu sempre queria ficar com a equipe. Havia uma casinha pré-fabricada aonde me instalei com a equipe. Só a Lilian que ficava fora. No “O Anjo da Noite” eu sou a baby sitter. A Lilian vai embora e chama a baby sitter, tem uma cena na banheira, e vai embora. O Eliezer era uma pessoa muito discreta, mal falava. Nem sei muito como era o Eliezer. Não sei. O meu contato era com a camareira, com o fotógrafo. Filmávamos a maior parte do tempo à noite. Então, eu tinha a manhã, o dia inteiro livres. Ia pro lago, nadava, subia em árvore. Era isso o que eu queria. Eu dava um certo trabalho, na época. Com o Khouri então... Ele ficava escandalizado. “Você não pode tomar sol! Não pode!” E eu tomava sol [risos]. No intervalo, eu desaparecia. E não podia ver água. Qualquer água eu me atirava. O Khouri ficava doido: “Ai, meu Deus do céu!” [risos].
EE – [risos] É, realmente não combinaria um look saudável, bronzeado, para “O Anjo da Noite”...
SE – O Khouri era muito especial. Quando eu chegava na casa, ele me fechava numa sala, punha a música, saía e me deixava lá. Ouvindo música. Era Billie Holiday, a paixão dele. Era Schubert, a minha paixão. Brahms, Bach. Era assim. Ele falava um pouco sobre o personagem. Me trancava lá e ia embora. Essa era a preparação dele.
EE – Para cada dia.
SE – Sim, para o dia. O Khouri gostava de criar uma atmosfera.
EE – Fazia o roteiro na hora...
SE – Na hora. Ele não escrevia roteiro, era da cabeça dele. Além disso, o Toninho Meliande na câmera, ele dizia “Sai, Toninho” e assumia a câmera também.
EE – Na hora, inclusive, em que o Eliezer começa a rondar e fica em um círculo, totalmente em alucinação, é o Khouri que está na câmera, não é?
SE – Acho que sim, já não tenho mais esta noção. Algumas coisas era o Toninho mesmo que filmava, algumas coisas era o próprio Khouri. E como na época era dublado, ele ficava: “Vai, vai! Linda, linda, linda!” Ele deixava a gente numa atmosfera, sabe? De entusiasmo! “Roda, roda! Continua a rodar, continua a rodar!” Tem que fazer isso, isso aqui. “Não, não! Roda, roda, mais!” Era uma coisa na hora. Criar na hora. Eu aprendi a criar com o Khouri, no cinema. A única pessoa que, para mim, estabeleceu este contato. Eu sou muito intuitiva, mesmo no teatro. Sempre prefiro o trabalho mais intuitivo, sensorial, do que o racional. Mergulhar na história, no personagem e deixar acontecer. Teve o Khouri também, que me influenciou muito nisso. Me abriu esse espaço. E é uma pena, porque eu não consegui trabalhar assim mais com ninguém.
EE – Depois do “O Anjo da Noite” vem “O Desejo”, em que você trabalha de novo com a Lilian. Por sinal, foi gravado no apartamento dele, da rua Martins Fontes.
SE – No “O Anjo da Noite” foi muito melhor a parceria com o Khouri. Primeiro porque era uma coisa na natureza. Minha coisa era essa. “O Desejo” era um pouco mais da relação que o Khouri teve com a Lilian. Paixão e ódio. O filme acho que foi feito muito para ela, eu acho. Não consegui me envolver com aquele clima, pesado, de discussões e relação pessoal. Achava “ai, que bobagem”. O Khouri estava muito meticuloso... No “O Anjo da Noite” eu lembro que ele já vinha: “o cabelinho, o cabelinho”. E eu: “Pára, pára.” No “O Desejo” isso me incomodou, sabe? Era tudo muito estático, me sentia tão presa, tão boneca aqui. Não conseguia me envolver com aquela história. “O Desejo” foi o único, acho, que eu consegui rever algumas vezes. Eu falava “nossa, nada a ver”. Revi há uns anos, na mostra sobre o Khouri no Centro Cultural do Banco do Brasil em São Paulo. Eu estava lá, trabalhando, fui dar uma olhada.
EE – O Khouri estava em pessoa, nesta mostra. Foi em 2001, já faz 10 anos. “O Desejo” é outro desses filmes absurdamente raros, que só passam em mostras, nem mesmo no Canal Brasil...
SE – O que eu lembro mais, o que eu tenho mais memória é de quando a gente gravou as locações em Itu. Porque aí eu estava na minha, solta, outra vez no meio do mato. É o que eu mais tenho memória. No apartamento dele, embora eu gostasse, achasse muito interessante ali, enfim, me sentia tão presa. Em Itu, não. Conheci a Julinha Lemmertz. Como a Lilian tinha medo de água, a Julinha foi escalada para a cena do afogamento [risos].
EE – [risos] Ah é?
SE – Verdade... Aliás, uma coisa importante: “O Anjo da Noite” é um filme que eu gosto. E nunca revi. Tenho muito carinho e muito amor pelo filme. Mas a gente não consegue rever e não participa de nenhuma mostra do Khouri. Isso eu fico muito chateada. Porque eu acho que foi um cinema muito diferente dele, não é? Um momento diferente do Khouri, que fugiu dessa discussão de relações pessoais. As pessoas não gostavam do que ele fazia porque ele bateu direto com o Cinema Novo. Particularmente, ele enchia um pouco o saco. Aquela coisa de ficar cantando, cantando. Desagradável.
EE – Imagino...
SE – Às vezes eu ficava meio brava, brigava com ele. Mas era um doce, um doce total. Tirando esse lado dele, que queria comer todas as mulheres à volta. Acho que foi até depois de “As Filhas do Fogo” que eu fiquei um pouco brigada com ele. Mas adorava o Khouri. Quando trabalhei com ele, era quase sempre com a mesma equipe. O Toninho Meliande, a Isabel Amaral, continuísta. A Santa Isabel, mulher do fotógrafo de cena, o [José] Amaral. Eram sempre eles. E sempre o mesmo eletricista, que infelizmente não lembro mais o nome. Mais o Miro [Reis], que era o assistente. Era essa a equipe. Seis pessoas, todos se davam bem. E eu vivia com os técnicos. O Khouri era exigente demais, comandava tudo, cada detalhe. Escolheu um jeans meu, pegou uma camiseta dele.
EE – Era obsessivo. O que é ótimo para um diretor...
SE – Bastante, bastante. E em “O Anjo da Noite” foram dois produtores do Rio que depois desapareceram. Parece que eles detêm os direitos.
EE – Então a filmagem no Rio foi exigência desses produtores ou do Khouri mesmo? Pergunto isso porque o Khouri tinha uma ligação muito forte com o Rio de Janeiro. Ele morou na cidade, quando criança.
SE – Sim, mas também foi porque ele encontrou a casa ideal, os móveis. Tudo aquilo do filme era real. “O Anjo da Noite” não participa de nada, de nenhuma mostra. “O Anjo da Noite” teve uma única exibição que eu me lembro, na Globo, e todo mundo “oh!” Virou cult.
EE – “As Filhas do Fogo” também passou na tv aberta. É uma participação interessante a sua, porque você não diz nenhuma palavra...
SE – Não?
EE – Não. Você aparece como o vulto, a roupa vaporosa. Não fala e rouba o filme![risos]
SE – [risos]
EE – Somente a imagem...
SE – Não lembrava...
EE – E é uma história bastante intrincada...
SE – O Khouri adorava o tema, essa história das vozes do além, adorava isso. a gente foi para um festival de cinema, emendou e já rodou o filme. Em Canelas. Usamos uma casa que acabou virando museu. Na época ainda não era, a família morava lá e o local foi todo construído nos moldes germânicos. Não tem um prego, um parafuso.
EE – Um aspecto em especial chama a atenção: é um dos poucos filmes brasileiros em que neva. Devia ser junho, julho, quando vocês gravaram.
SE – E tem tudo a ver com o Khouri, não é? Eu passeava bastante por Canela, pegava o cavalo, ia andar. Lembro de uma pequena varanda, fechada, de inverno e o Khouri me levando para lá. Colocou o toca-discos dele, a Billie Holiday... Lembro da Karin Rodrigues, ela dizendo pro Khouri: “Khouri, eu não vou beijar ela, hein? Eu não vou beijar ela. Para com isso, hein!” [risos]
EE – [risos] Mas beija. Acabou beijando...
SE – Beijou, não é? [risos] Durante as gravações houve um episódio pitoresco. Eu não vi. Estavam filmando à noite, ligaram o gerador, iam começar. O Khouri de repente ficou alucinado: teve um disco voador! Várias vezes. Em Gramado, em Canela. Pá! O gerador parou! Eles olharam aonde estava o gerador e surgiu um clarão no céu. Nossa, o que essa história rendeu... Rendeu que rendeu, porque o Khouri estava lidando com vozes do além no filme... O Khouri era sempre muito rápido, nunca passava de um mês a filmagem. A equipe sempre pequena e ele comandando tudo.
EE – Saindo do “As Filhas do Fogo”, chegamos no “Eros”, seu último filme juntos. Lembro sempre de uma cena muito bonita, plasticamente. Aquele fundo negro, você se contorcendo, amarrada...
SE – Ah, já sei.
EE – É como se fosse o absoluto, a imensidão negra...
SE – No “As Filhas do Fogo” o Khouri havia me chamado. Eu não sei o que eu iria fazer, e ele queria uma atriz que morreu depois, enfim. Teve uma história assim. E na época já havia “as globais”. Quando não dava para ter uma global, chamavam a gente. No “Eros” foi isso. O Khouri me ligou, disse: “Eu quero que você faça uma revolucionária”. Mas depois foi cortado, quiseram colocar uma global.
EE – A Renée de Vielmond.
SE – Foi. E então Khouri falou: “Vamos inventar uma história aí [risos], porque eu chamei todas as mulheres que fizeram parte da minha vida e eu quero você no filme. Tenho uma ideia.” Na época eu trabalhava muito com dança, ele sabia. Dança do ventre. Ele me chamou, era de noite. Cheguei, estavam a Denise Dumont, as estrelas. Ai, uma coisa. Maquiagem, isso e aquilo. Fiquei quieta, esperando. Quando terminou o trabalho com ela, ele me disse: “Agora vamos. Uma cena de sadomasoquismo.” Com o Roberto Maya, com quem eu havia trabalhado. Enquanto ficou com a Denise Dumont tendo ataque de estrela, o Khouri me deixou numa sala e ligou a música. [risos]
EE – [risos] Sem perder tempo...
SE – Nenhum, tudo em uma madrugada, depois de ela ter ido embora. “Vamos lá, na cama!” E era assim mesmo: “Vamos inventar”. Ele, firme: “Vamos! Agora! Assim! Aqui, ali!” Assim que a gente filmou, inventamos na hora. E tinha essa foto, acho, no cartaz do filme. Ele comentou comigo. “Nossa, a mulherada está louca da vida com você. Elas não se conformam, estão me ligando direto. 'Por que que colocou ela no cartaz?' Eu coloquei porque eu quis, achei bonita a foto.” Ficaram alucinadas, doidas, querendo me matar [risos]...
EE – [risos] Você já reviu a cena?
SE – Raramente eu revejo. Tinha uma coisa também com o Khouri: a gente trabalhava sem maquiagem, preparação de elenco, nada. Carreguei isso comigo também, sempre que eu pude.
EE – Essa questão do estrelismo.
SE – Ai, essas coisas...
EE – Sempre existem histórias do arco da velha, essas rivalidades de praxe...
SE – Certa noite, a esposa de um roteirista pegou o carro e me jogou no precipício, quase que eu caí. No dia seguinte...
EE – Como assim? Você estava dentro do carro, com ela?
SE – Não, sozinha. No meu carro.
EE – Ela bateu no seu carro de propósito? Isso nem é mais rivalidade...
SE – Foi, me jogou.
EE – Um clima “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”...
SE – Depois eu fiquei sabendo da história. Ela e a namorada de um ator acharam que eu estava atrás do marido e do namorado. Eu estava totalmente isolada de tudo no set. Nem ficava com a equipe, não fazia nada. Pois veja você: elas encanaram e queriam me eliminar. No dia seguinte, o roteirista, que acompanhava a filmagem e também dirigia, me disse: “Olha, não posso mais falar com você, não posso mais te dirigir. Você me desculpe, mas a minha mulher está muito nervosa...” Foi assim. Nunca mais falou comigo. O filme depois fez sucesso, ganhei prêmio. Esse homem nunca me dirigiu a palavra, para falar “legal”. Poxa vida. Escapei, não sei nem como. Já tinha acontecido um qualquer coisa, o ator brigou lá com a namorada. Não lembro como foi, só me lembro disso: eu quase caindo do precipício. A namorada já tinha encanado, acho que foi encher a cabeça da outra.
EE – Não teve diálogo, foi logo para as vias de fato...
SE – Foi. Uma beleza [risos]...
EE – Na Boca, você chegou a trabalhar com o Cláudio Cunha também, não foi?
SE – No “O Dia que o Santo Pecou”. O Benedito Ruy Barbosa fez o roteiro e já havia me chamado para a televisão. Acabou não dando certo. Aí ele me procurou para esse filme. E eu acho um bom filme, gostei de ter feito. “A Carne” [de J. Marreco] também é um bom filme. Mas foi uma coisa muito estranha “O Dia Que o Santo Pecou”. O Benedito juntava a turminha dele, nós fomos para São Sebastião. A história se passa lá. Na primeira noite que eu cheguei, me botou em um quarto na casa de praia dele e da família. Ele tinha dois ou três filhos pequenos, mais uns sobrinhos. Me botou numa beliche, no meio da criançada, uma coisa, assim... [risos] No outro dia me mandaram para a casa de um amigo dele, numa outra praia. Uma casa meio isolada, meio vazia. “Você pode ficar lá. Tranquilo.” Aí fui, fiquei na casa. Passou um tempo, quem foi pra lá foi o Maurício do Valle. Ficou no outro quarto, era tão tranquilo.
EE – O Maurício do Valle era tranquilo? Não correspondeu à fama de doidão dele?
SE – Olha, eu já tinha trabalhado com o Maurício do Valle no “O Coronel e o Lobisomem”. Eu gosto, gostava muito do Maurício. Devia ter a loucura dele, mas comigo foi muito legal. E no “O Dia Que o Santo Pecou” eu saía dessa casa nessa praia, de manhã. Não me penteava, não me maquiava, não punha sapato, fazia meus exercícios na praia, o meu Tai-Chi. Subia o morro, descia o morro do outro lado e estava na praia, que era do Instituto Biológico. Ali foi construída a cabana, aonde era o set. Na época eu tinha um buggy. Então meu marido saiu de São Paulo e levou o buggy pra eu poder passear um pouco. Acabava a filmagem, eu ia até a casa, tomava banho, ia pro centro de São Sebastião, ver a equipe. Meus velhos conhecidos: o Miro, a Isabel, todo mundo outra vez.
EE – Um diretor bem problemático foi o Roberto Mauro...
SE – Ah, sim! Eu fiz um filme com ele, em que eu corria pelada.
EE – “O Poderoso Machão”. Na onda do “O Poderoso Chefão”, em 1974, 1975. O Roberto dirigiu o “Viagem ao Céu da Boca”, um filme ultra maldito. Em que você não está, fica tranquila... [risos]
SE – [risos] Eu fiz esse “O Poderoso Machão”? Será que é esse que eu entro, que foi rodado em uma cidade aqui perto de São Paulo? Nem lembro o que era, só lembro de uma hora em que eu saía correndo. A gente filmava em um prostíbulo. Não sei o que a gente estava fazendo nesse prostíbulo, mas durante uma cena ele falou: “Você tira a roupa e anda.” E eu, louca, pelada no meio da cidade, com todo mundo vendo, Tirava a roupa e saía correndo. Alguém lá, que era um cara da equipe, fazendo uma figuração no filme, falando: “Safra nova! Safra nova!” E saía atrás.
EE – [risos] E do“O Paraíso Proibido”, do Carlão? Para mim é interessante pegar também esse outro tipo de filmagem na Boca do Lixo. O Reichenbach era um cara mais erudito, mais sofisticado. Você estava bem garota, ainda. 1971.
SE – Também lembro muito pouco, muito pouco. Lembro que a gente filmou numa praia dessas. Praia Grande, Itanhanhém, algum lugar por aí. Também mesmo esquema de Boca do Lixo. A gente hospedado em um condomínio de praia. Tipo BNH, sabe como é? Muito mal acomodado. Eu já tinha trabalhado com o Carlão em alguma coisa em que ele dirigiu a fotografia. Não me lembro o quê. E aí, quando fez o filme dele, me chamou para essa participação. Carlão é aquilo mesmo que a gente conhece, é aquilo.
EE – E o “Aleluia, Gretchen”, do Sylvio Back?
SE – “Aleluia, Gretchen” foi uma pedra no caminho. O Sylvio Back era um amigo, por causa do Khouri, tal. A gente se encontrava no Festival de Gramado e em um desses festivais ele me convidou: “Vou fazer um filme e quero vocês, as mulheres do Khouri, comigo.” A Lilian, a Kate [Hansen]. “Olha, vai ser muito rápido”. Não tinha dinheiro, não tinha contrato, não tinha nada. Ele mandava a Lilian de avião e a Kate e eu íamos de ônibus. “Vão ser 3 finais de semana, hein? Vocês vêm na sexta, no domingo vão embora.” E não aconteceu isto. O filme não acabava nunca, a gente viajando de ônibus para Curitiba. Era final de semana mas acabava ficando a semana inteira. Começou a ficar insuportável. Apesar de o filme ser interessante, começou a ficar insuportável.
EE – Vocês iam e voltavam de ônibus?
SE – É. E a gente tinha o convite para ir ao festival do Irã. Nós 3. A Lilian, a Kate e eu. O filme parou, acabaram as filmagens em Curitiba, o restante para fazer em Blumenau. Mas não vinha nunca, a tal da filmagem. “O tempo está ruim, não tem avião.” Não vinha nunca. A Kate e eu perguntamos: “E aí, e o festival? Olha, nós vamos para o festival”. O Sylvio ficou puto da vida, processou a gente, foi uma história longa. Processou, não deixou a gente dublar o filme. Botou um dublador profissional, cortou a cena. “A gente filma na volta, o festival é rápido. É uma semana e a gente volta.” Cortou, fez a cena com desenho. Foram longos anos de o Sylvio indo no Estadão, no Jornal da Tarde. Eu encontrando com ele em festival de cinema e ele sempre chamando os jornalistas para falarem mal de mim. E teve o processo. Aí foi horrível, porque a Lilian testemunhou contra. A Miriam Pires também. Foi chato, foi chato. E ele adulterou... Tinha um contrato padrão da Boca do Lixo. Adulterou o contrato, colocando que era um mês e meio de filmagem, quando havia combinado 2 a 3 finais de semana.
EE – E depois, o que se resolveu no processou? Teve alguma consequência, alguém ganhou?
SE – Não. Que eu me lembre, deu em nada.
EE – Bom... além do Khouri houve algum diretor em quem você confiasse?
SE – Eduardo Escorel. Maravilhoso.
EE – Um grande clássico, o “Ato de Violência”. O que você lembra do filme?
SE – Nossa, foi tudo. Um filme de uma competência do Escorel, inclusive totalmente dependente do mesmo produtor de “As Filhas do Fogo” [César Memolo]. Mesmo estando nas mãos do produtor, ele conseguiu fazer um filme que eu acho maravilhoso. Ele é de uma delicadeza, sabe como lidar com o ator. Sabe conduzir uma cena. Fiquei encantada com o Escorel. Lembro da cena que fiz com o Sílvio Zilbert, um grande ator. Também lembro da gente filmando no presídio lá de não sei de onde. Terrível. Passamos o dia inteiro lá, filmando. Eu sozinha, naquele presídio [risos]...
EE – Você teve um hiato no Rio de Janeiro, trabalhando com o Antonio Calmon.
SE – O Calmon. Calmon foi um grande amigo. Conheci durante “A Carne”, em que ele apareceu para fazer assistência. A gente se deu muito bem e quando ele começou a filmar, fizemos “Os Embalos de Ipanema”, “Gente Fina É Outra Coisa”. Depois na televisão. Sempre que ele escrevia, me chamava.
EE – No “Os Embalos de Ipanema” você está no hotel com o André di Biasi. A mulher é meio louca, e ele com medo da mulher. Uma socialite paulista, aquelas...
SE –... que pegava menininho e tal [risos]... O Calmon era aquela cabeça mais de carioca. Mais loucura, produção maior, a Marília Carneiro responsável pelo figurino. No Rio eram equipes maiores. Fiz um outro filme no Rio, por essa época: “O Coronel e o Lobisomem”, que não deu certo. Um grande filme, uma pena. Não deu certo porque era som direto e não funcionou. Mas deveria ter sido um ótimo filme.
EE – E nos anos 80 você trabalhou com uma dupla muito querida, o José Antonio Garcia e o Ícaro Martins, no “A Estrela Nua”. Da Vila Madalena, outra vertente no cinema paulistano.
SE – Loucura total.
EE – Total?
SE – Total, total. Uma zona, uma confusão. O diretor sempre meio drogado. Uma noite foi preso [risos]...
EE – [risos] Qual deles, o José Antonio ou o Ícaro?
SE – O José Antonio. O Ícaro era todo certinho. Eles eram uma turma da USP que se formavam e começavam a fazer cinema. Era muita coisa, muita loucura.
EE – Porque na Boca não rolava droga, era bem careta nesse sentido. “Estrela Nua” já foi em 84...
SE – Super careta. Tinha mais uma coisa: a gente não sabia qual era a participação. Eu nem sabia muito bem o que estava acontecendo ali [risos]...
EE – [risos] Com a Tereza Trautman, em 1988 deve ter sido diferente. “Sonhos de uma Menina Moça”.
SE – Um trauma. Eu estava fazendo teatro no Rio, “Lilith, A Lua Negra. Em seguida já engatei uma novela. A Tereza foi no teatro, me convidou, e entre a temporada de teatro e a novela aconteceu o filme da Tereza. Não sei se ela estava em um momento difícil da vida dela. Reuniu um puta elenco, uma locação única, tinha tudo para dar certo. Ela chorava, parava a filmagem, não conseguia dirigir. Em uma cena nós estávamos na sala, praticamente o elenco inteiro, e ela não conseguia dirigir, chorava. Uma coisa assim...
EE – Então, na prática, pelo que eu percebi, teve poucos momentos em que você se sentiu plena nas telas. Ou é impressão minha?
SE – Foi. O Khouri dizia que eu era uma atriz que tinha uma relação direta com a câmera. Eu gostava disso, mas foi muito pouco, muito pouco. Talvez nesses momentos com o Khouri e com o Escorel. Com o Escorel a participação foi muito pequena. Essa relação com a câmera, esse tipo de coisa, esse criar na hora, eu tive com o Khouri. Não se repetiu. Fui me desinteressando totalmente de cinema. Comecei a achar um pequeno horror. Aqueles horrores na Boca do Lixo. Aquilo é lixo, não vale a pena.
EE – Mas você gostou das participações nos anos 2000, fora da Boca? “Nosso Lar”, “Chega de Saudade” e “O Signo da Cidade”.
SE – Eles me chamaram.
EE – Não teve nenhum envolvimento nesses filmes.
SE – Não, foi um dia de filmagem, ali.
EE – “Nosso Lar”, inclusive, tem um papel mais intenso. Em um filme espírita, você faz justamente a mãe que morreu.
SE – “Nosso Lar” foi uma novela. Demorou muito para realmente começar a ser filmado. Foi leitura e outra vez reunião, leitura. E agora aquela equipe enorme. Teste de não sei o quê, roupa, isso, aquilo. Teve preparação de elenco. Não sei como eu consegui escapar. Era muita coisa, muita gente, e não acontecia nunca a filmagem. Acabei brigando com a produção, pedi pra sair. Falei “Não posso ficar à disposição, 3 meses, sem saber quando filmar. Eu preciso trabalhar, imagina.” Pedi pra sair, briguei. “Por favor, chama outra pessoa.” E ele insistiu, queria que fosse eu. Queria porque queria. Eu fiz, mas assim, sabe? Ah, não dá pra ficar uma semana parada no Rio porque está chovendo. E sem filmar, a gente não ganha nada. Você ganha um cachê pro dia de filmagem. Não dá. Mas valeu, foi uma experiência legal. Tem uma coisa muito legal nisso que é a sinceridade do diretor. Ele realmente é espírita, fez aquele filme acreditando. E a sinceridade da produtora, que também é espírita. Sócia dele, estavam os dois juntos, acreditando naquilo, comandando aquela coisa enorme. Valeu.
EE – E é um tipo de estrutura de produção que você não tinha pego ainda.
SE – Acho que foi a maior que eu peguei.
EE – Porque mesmo no “Chega de Saudade” da [Laís] Bodanzky, existe uma coisa mais artesanal.
SE – Mais artesanal. Equipe grande também, só que mais artesanal. E eu filmei um dia, então não participei da loucura toda. Tem um filme que eu fiz agora, há dois anos, com o Chico César Filho, documentarista. Não sei o que aconteceu, ele não lançou o filme, que era dessa leva toda aí, que recebeu incentivo. Baixo orçamento, mas também com uma equipe enorme. Comecei a ver e pensei: “Nossa, o cinema quando eu fazia direto, era tão diferente.” O diretor comandava tudo, o diretor dirigia os atores. Agora não sei bem nem o que o diretor faz. Porque tem 2, 3 assistentes. Tem uma equipe enorme, uma coisa assim... Tem preparador de elenco. Eu não sei mais, muito bem, qual é a função de um diretor. “Nosso Lar”, não. Realmente era ali, o diretor dirigindo os atores na hora, muito legal.
EE – A Bodanzky também?
SE – Ela é de uma exigência! Eu saí arrasada do dia de filmagem. Coisas pequenas e eu fazia com o pé atrás, imagina. Ela é ótima, ótima. Dirigiu a dublagem no dia seguinte porque houve problemas. Tivemos que dublar também. Ela é ótima, ótima. Eu me distanciei muito de cinema. Eu acho muito interessante o que está acontecendo agora, tem ótimos filmes. Mas também tem acontecido de me chamarem e eu falo “ai, gente, estou fora”. Chamam para fazer teste, sabe como é? Porque agora qualquer pessoa que pela primeira vez vai dirigir um longa, você nem sabe quem é, chama várias atrizes para teste.
EE – É o que o Roberto Maya contou, em uma entrevista aqui no “Estranho Encontro”. Chamaram ele para teste, um cara que tem 40 anos de carreira...
SE – Acabaram de me chamar. Nem sei qual é o nome do filme. “Como assim, teste? Não acho legal.” Eu gosto de trabalhar com quem conhece o meu trabalho e quer trabalhar comigo. Aí a gente estabelece uma relação de respeito. Mas fazer teste? Não é questão de eu achar que eu sou o máximo Não. É que não faz muito sentido isso pra mim. Então eu me sinto muito distanciada do cinema. Muito mesmo. No teatro a gente tem mais espaço, de qualquer maneira. Período de experimentação, de ensaio, de criar, de exigir. No cinema é tudo muito rápido, muito estranho. Acho muito estranho ser preparada por alguém, depois ser dirigida por outro. Não acho muito orgânico. Você fica por um tempo lá, passando por uma experiência com um preparador de elenco, aquilo acaba e no dia de filmar é outra história. Então, não sei. Não tenho mais uma ligação profunda com o cinema. Na época, apesar de ter feito tanta porcaria, eu tinha mais.
EE – Uma pergunta paralela: nas novelas, você se entrega de corpo e alma?
SE – Não, acho que não, porque aí vira uma coisa mecânica. Uma novela atrás da outra. Embora tenha esse lado confortável de ter contrato e tal, mas acho que eu não me encaixo muito nisso. Mas, por outro lado, cinema eu acho que passei 10 anos sem fazer. Parei ali na Tereza Trautman. Que é isso, gente? Cinema nacional virou um subproduto da Globo. Tudo que é feito tem em vista ter os protagonistas da Globo, trabalhar essa grande divulgação global.
EE – Não te interessou mais?
SE – Não. Claro que se surgir alguma coisa interessante... 40 filmes, sabia? Fiz muita bobagem. Acho que fica meia dúzia daí [risos]...
EE – [risos] Dessa meia dúzia, o que você escolhe?
SE – Olha, “O Anjo da Noite” sobretudo. O “Ato de Violência”. Apesar da confusão com o Sylvio Back, também gosto de “Aleluia, Gretchen”. Aquele de São Sebastião, “O Dia Que o Santo Pecou”. Pinçando essa meia dúzia, eu senti que pude realizar um trabalho melhor.
13 comentários:
Andrea, que bom ler esta entrevista com a Selma Egrei. Uma senhora atriz! Muito direta, sincera e simples em suas colocações. Parabéns pela entrevista.
Márcio/MG
Ótima entrevista, mas farei o papel do advogado do Diabo. Porque, no resumo da ópera, parece que a Selma foi uma borboleta que, na boca do lixo, foi caçada por terroristas da floresta. Não sabe e não lembra de nada a moça, hoje senhoura... Quer dizer que quando é o Khoury a falta de um roteiro é apenas recurso, mas quando é na boca vira ruindade mesmo? Seria bom assumir a obra que fez, seja ela boa ou ruim. Fez, não fez? Então, está feito! E, se possível, assuma com o bom humor que, hoje, estes filmes, muitas vezes horrorosos, merecem. Como aquele personagem de Ugo Tognazi em Quinteto Irreverente. Pobre, mas com postura, ahahah! Abraços!
foi um grande presente da Andrea a entrevista com essa grande atriz. E não acho que cabe a nós julgar como a Selma se sente em relação ao passado e ao seu próprio trabalho. Ela tem arrependimentos, uma certa sensação de desconforto que vem da maturidade, do distanciamento. Ela que saiu correndo pelada, então tem todo o direito de ter achado tudo aquilo uma merda. Gostei desse senso crítico aguçado, dessa desglamurização do que nunca foi glamuroso, se é que isto é possível. Seria mais comôdo agora que a Boca é cult assumir seu papel de diva. Preferiu ser honesta.
Os belos olhos de Selma Egrei são hipnotizantes. Eles parecem tragar o espectador, sugá-lo para dentro dela.
Como de hábito, excelente entrevista.
Muito interessante a entrevista, Andrea. Vale lembra que, apesar do Khouri usar com freqüência a mesma equipe (o citado Antonio Meliande, grande Diretor de Fotografia, citado pela Selma, foi um constante colaborador), no filme AS FILHAS DO FOGO-rodado em Canela, de onde eu digito nesse exato momento-, tbm do Khouri e com a Egrei, quem fotografou foi o veterano operador de câmera-ocupou essa função no clássico NOITE VAZIA, tbm do Walter Hugo- Geraldo Gabriel.
Egrei tbm esteve esplêndida na ótima telenovela da Band, no início dos anos 80, OS ADOLESCENTES.
que blog maravilhoso, parabéns!
Obrigada, Márcio. Especialmente no "O Anjo da Noite" a Selma Egrei faz jus ao título de criatura cinematográfica. O mistério, a atuação, tudo ali está em harmonia.
Pois é, Roberto, a Selma tem uma visão bem pessoal sobre o assunto, por vários motivos que deve ter colecionado por aí, ao longo dos anos. Durante a entrevista isto me chamou a atenção e parti diretamente para esse aspecto. Tive a experiência de conversar com alguém que não se fez de rogada e falou abertamente contra o passado na Boca, mesmo sabendo que estava conversando com uma defensora dessa indústria imensa. Abraços!
Rodrigo, a Selma teve essa coragem e essa naturalidade extrema de falar o que passava pela cabeça. Discordamos mas mesmo assim concordamos em alguns pontos (em relação ao Khouri, por exemplo). Não teve rodeios, exatamente como deve ser um bate-papo que vale a pena ser lido depois.
Obrigada, Setaro. O olhar realmente lembra aqueles "oceanos não pacíficos", do Bandeira. Não precisam de qualquer adereço.
Marco Antonio, a convivência com a equipe do Khouri, lembrada pela Selma, joga luzes sobre o lado afetivo da produção. Gosto de ver os entrevistados dando os rostos e a alma do que ocorria durante as filmagens. Sem parar para pensarem, tudo em um fluxo de consciência. Os trabalhos em televisão conseguiram trazer a Selma para um público maior, com o passar do tempo.
Panda Lemon: obrigada!
nossa, que mulher sincera...outro dia vi um filme legal até com ela e com o Ewerton de Castro, que ela fica gravida dele e fala que é do marido ..achei bem dirigido e bem interpretado...acho que era do Geraldo Vietri. Ela me lembrou muito a atriz Judy Davis, australiana sem papas na língua...agora qto o quesito global, ela já é uma, não? mesmo não sendo contratada ela cada vez mais faz novelas, para nossa alegria rssss
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Selma Egrei é belíssima e também uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos. Ela é muito linda, talentosa, ilustre e carismática assim como Monique Lafond, Kate Hansen, Aldine Muller, Patrícia Scalvi e a eterna musa nacional Vera Fischer.
Outra musa brasileira igualmente belíssima, ilustre e muito talentosa é a maravilhosa Juliana Carneiro Da Cunha que inclusive interpretou a irmâ da própria Selma Egrei na antiga novela da extinta Rede Manchete De Televisão "Carmem" estrelada pela irreverente Lucélia Santos. Bons Tempos aqueles.
Também me esqueci de citar a esplêndida Sônia Clara que também atuou na novela "Carmem." E Selma Egrei também esteve linda em "Emmanuelle Tropical" onde contracenou com grandes atores nacionais como Monique Lafond, Matilde Mastrangi, Tânia Alves e Marcos Wainberg. Adoro todos eles.
Uma canção que sempre me faz lembrar de Selma Egrei é Por Um Triz do Lulo Scroback assim como Enrosca de Guilherme Lamounier na voz de Sandy e Júnior é a melodia que sempre me faz lembrar de Kate Hansen. Ambas essas canções fizeram parte da trilha sonora da antiga novela global Estrela Guia com a própria Sandy no papel da protagonista Cristal.
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