domingo, agosto 28, 2011

Nós, os Canalhas


Jece Valadão entrou nos embalos dos thrillers, levando junto a produtora Magnus, que cuidava a pires de leite nos escritórios da Avenida Princesa Isabel. Conseguiu colocar em “Nós, Os Canalhas” (1975) a atmosfera que é a cara do cinema policial brasileiro, encharcada de uma copacabanice universal, ainda que escolha ficar praticamente na base dos estereótipos.

Imaginem a boazuda interesseira (Shirley, Vera Gimenez) seduzindo um malfeitor de terno de panamá (Tatá, Rubens de Falco). Por sua vez, o protagonista José Cláudio (Jece) escapa praticamente incólume de uma chacina, sem a tortura mental (interiorizada) que explode na cabeça de um sobrevivente.

A transformação é física. Jece utiliza o mote da troca de rostos, uma obsessão de folhetim, que o diretor Roberto Pires aproveitou de certa forma em “A Máscara da Traição” (1969).

José Cláudio vai para o hospital, sofre uma cirurgia, a plástica que o deixa com a cara de Jece Valadão. Antes, José Cláudio era interpretado por Celso Faria, que também faz as honras do irmão de José, o Cláudio José. “Nós, Os Canalhas” não se dá ao trabalho de investigar a solidão, os conflitos do pobre coitado depois da tragédia. Nem o coloca numa espiral ensandecida, como era praxe nos exploitations do período.

E, no entanto, feitas estas observações e colocados estes poréns, é preciso que se diga: “Nós, Os Canalhas” mostra as suas cores sem as patrulhas do politicamente correto ou do pragmatismo das vinganças norte-americanas.

Podemos lamber os beiços vendo um José Cláudio soltinho, soltinho. O “galã” manipula questões latinas (como a macheza, a cornice) e dá um jeito de levar vantagem, ainda que escorregue de vez em quando para o paternalismo (ajuda um simpático casal de velhos).

Engraçado que o bom moço não o é sempre, pois dá soco em mulher – que presumidamente gosta, espantada com o golpe. Por sinal, o amigo gay de Shirley assiste ao rebu, histérico, estando aí uma parte suculenta do roteiro, para a qual Jece não atentou.

Shirley incorpora a diva. O amigo, Grace Kelly (Benedito Corsi), fica na posição de escudeiro, amado pela mistress. Percebam que nem tudo são flores. Os dois se precisam, estão juntos, mas não há mar de rosas. Grace Kelly trai por dinheiro, apanha, é perdoado. A certa altura, queimam fumo com Cláudio José (Celso Faria), ouvindo “El Día Que Me Quieras”, enquanto Vera Gimenez se transtorna, vermelha, com os olhos esbugalhados, bem distante do look “mãe da Luciana”, que ostenta nos dias de hoje.

Grace Kelly ainda agarra a cantora decadente Maria Helena (Zélia Hoffman), que os abriga no cafofo. Tenta estrangulá-la dizendo, impotente, ser bailarina (?). Realiza-se como “mulher” através de Shirley e talvez odeie Maria Helena por lhe parecer mais fraca do que a outra. Walter Hugo Khouri arrumaria uma casa na serra, meia dúzia de tapetes persas e faria uns três filmes somente com as duas personagens, Shirley e Grace.

Ex-ator de westerns italianos, Celso Faria não dá o tostão de sua voz. Aparece dublado, o que não era característico em seus mais de cinquenta trabalhos no cinema. Digladia com o irmão José Cláudio, à distância, até cair o pano da revanche de mil séculos. Um tom de tragédia grega, filme de máfia, dramaturgia suburbana, tudo misturado.

Nas praias com clima de sal, sol, céu, sul, a trilha sonora – do compositor Beto Strada – vêm à tona. Segundo a música, o Rio é cidade indolente, uma comunhão de prazeres. Mas logo, logo, uma grávida leva chute na barriga, o bas fond mostra o show “Cinelândia Muito Louca” no Teatro Rival, em que o letreiro avisa: “Não é espetáculo de travesti”. Mastigando o Angu do Gomes, aquele da carrocinha, à merencória luz da lua, “Nós, Os Canalhas” revira na corda bamba, dando todas as piruetas da sublime cafajestice.

“Nós não temos mais nada a perder. Toca pra Prado Júnior!”, é frase que contém uma verdade carioca tremenda. Comessem rollmops na Adega Pérola, fabricariam o ethos perfeito. Jece, o fálico, sabia das coisas, e sua linguagem popular sobrevive ora como cinema curioso, ora como picardia antropológica, varando gerações.

4 comentários:

Sergio Andrade disse...

Andrea sempre descobrindo pérolas de nosso cinema :)

Bjs

Fofão disse...

Não vi esse, mas se essas duas personagens dão três filmes do Khoury, então deve ser bom de ver.

(sensacional essa dos tapetes, estou rindo até agora.)

Andrea Ormond disse...

E sabe que até passou na mostra da Magnus na Caixa Cultural-RJ, Sergio? Bela mostra, por sinal. Bjs

Por incrível que pareça, Fofão. Uma trilogia cheia de tempos mortos, tapetes, Billie Holiday, mas transferida de SP para os arredores de Copacabana rs

ADEMAR AMANCIO disse...

Vou ver o filme no OK.RU,parece que eu já vi trechos.