Em 1947, o sumo sacerdote Jean Manzon convidou um novato para a redação de “O Cruzeiro”. Precisava ter desenvoltura, ser ágil, alguém que agüentasse a Rolleiflex no ritmo frenético da revista. José Medeiros aceitou.
Mais tarde, tornou-se conhecido por igualar ou superar o mestre, além de migrar para o cinema. Dirigiu quatro curtas-metragens e um único longa, “Parceiros da Aventura” (1979). O número pequeno nem de longe se compara com a quantidade de participações que teve no métier original, o de fotógrafo.
Entre os seus maiores vôos estão “Rainha Diaba” (1974), “Ódio” (1977), “Chuvas de Verão” (1978). Sempre com pouca luz e contenção de excessos. Tirava engenhosidade do bolso, operava ínfimos watts.
De tanto mexer na fotografia para os outros, José Medeiros dizia que já tinha visto gente com menos talento se metendo na direção. Aí a curiosidade bateu. Durante as filmagens de “Xica da Silva” (1977), de Cacá Diegues, conversou com o historiador João Felício dos Santos. Chamou José Louzeiro, jantava na casa do escritor e finalmente – depois de tudo matutado – “Parceiros da Aventura” foi para a Lapa, Rio de Janeiro, jogar suas plumas.
Entre a zona central do Rio e a zona sul, “Parceiros da Aventura” surge como um cântico da boemia e das pequenas coisas. A violência vai separando as tribos que, no início, parecem uma só. Um grupo coeso em que há a prostituta (Ana Maria, Isabel Ribeiro), o desempregado (Benedito, Milton Gonçalves), o malandro (Vaselina, Marcus Vinícius), o músico (Paulo, Paulo Moura), o funcionário público (Erva Doce, Procópio Mariano).
As rodadas de chope, o clarinete de Paulo Moura – dando uma palhinha de ator –, as mesas que de repente são invadidas por um molecote vendedor de jornal, flores aleatórias, o cheiro esotérico de botequim que quase se pode sentir a 30 anos de distância. No mesmo ano, “Muito Prazer”, de David Neves, operava nesse registro de amor carioca. Vide a cena de Nelson Cavaquinho dedilhando o violão e unindo um dos arquitetos aos pivetes.
Ana Maria e Vaselina têm um namoro interracial. Desses que ainda hoje são tabu e que apareceriam em poucos filmes. Moram juntos no cafofo de paredes cor-de-rosa, um colega se masturba levemente ao ouvi-los em ação.
Apesar de toda a malícia do sexo, Ana pede, por favor, que o malaco se case com ela. Oficializar a relação, vejam vocês. Humanidades que o cinema brasileiro um dia contou, num vazio tremendo, demasiado humano, porque o amor não é só amor. Também pode ser utilidade, entrega, ciúme, interesse próprio. Ana Maria está no bando de Vaselina, gosta dele, trafica pó com ele, mas também opera com o rival.
Papel complicado, a mulher troca um olhar definidor com Benedito. Sem dizer nenhuma palavra, torce para que o motorista de ônibus, íntegro e honesto, não se junte ao grupo de Vaselina. O diretor parece ter confiado imensamente nos dois, Isabel Ribeiro e Milton Gonçalves, a ponto de entregar-lhes a força da trama. É a partir deles que saem os motores do filme, a partir deles que os enredos se originam.
Benedito escorrega, não fura a greve que outros motoristas estavam tocando na cidade. Um detalhe verídico, pois a greve foi enxertada no filme e acontecia em tempo real no Rio de Janeiro. Benedito não assina contrato com uma empresa de ônibus que queria demitir os grevistas e continua a morgar meses de atraso no aluguel. Atende ao chamado de Vaselina: puxa um carro de madame. Não percebe na hora, mas a filhinha da madame estava no banco de trás – aspecto fundamental no roteiro.
A surpresa de encarar a menina piora o sofrimento de Benedito. O que era assalto passa a sequestro. E o que é sequestro transforma o grupo. Antes traficantes, agora sobem um degrau na escala do crime. Por outro lado, a onipotência de Vaselina, movido a pó, o faz acreditar estupidamente na vitória, mal sabendo que o corvo negro – confuso e amoroso – de Ana Maria estava na emboscada.
Os três ficam pajeando a garota. Uma vira mãe sem querer (Ana), um vira tio atormentado de culpa (Benedito), outro vira chefe sonhando rios de dinheiro (Vaselina). Mundo paralelo que Paulo e Erva Doce nem imaginam que exista, nem sabem aonde os idolatrados amigos estão se metendo.
Esse gato e rato vai tirando as máscaras da amizade. O carinho até continua, mas sem água com açúcar, sem versão Walt Disney. Paira o egoísmo por todos os lados. Talvez um pouco menos em Benedito e Paulo que, de tão sonhador, acaba sendo engrupido por um escritório multinacional de música. Apesar de a dicção de Moura não ajudar às vezes, ainda assim a atuação é desconcertante: Paulo Moura era, de fato, o personagem. Como se Pixinguinha tomasse uns copos de frente para as câmeras, naquela fidalguia de nobre.
Enquanto isso, Erva Doce vive o burocrata falastrão. O fulano que conseguiu emprego porque conhece Beltrano e um monte de siglas de departamentos. A fauna de mulheres que cruzam as pernas ou são azedas, os homens puxa-sacos que invejam o chefe. Esse vazio de gente pequena, a total mediocridade de repartição aonde se penduram paletós e se bebem copinhos sujos de café.
E esperando a filha, a mamãe apetitosa (Louise Cardoso) segura a mão da colega idem (Maria Zilda). Deus, o que será da pequerrucha? No tempo em que policial espancava bandido na frente de jornalistas, todos estão loucos para mostrarem serviço. Correm às pampas para encontrarem os sequestradores.
Circulando entre eles, a penca de figurantes como Stepan Nercessian, Reginaldo Faria, Cosme dos Santos – a trinca de “Barra Pesada” (1977), que Medeiros fotografou. Rodolfo Arena, Maurício do Valle, Flávio Migliaccio, Camila Amado, Luthero Luiz, Isabella, Wilson Grey, Zózimo Bulbul, Leovegildo “Radar” Cordeiro. Participações carinhosas, que pipocam aleatoriamente.
O desfecho da história nem importa tanto, senão pela mistura entre a crônica do cotidiano e a estética da violência. Desejar progredir, enganar, ser enganado, com a grosseria de tiro explodindo na frente da menina que olha para tudo, sem ser protegida, no estilo amoral dos anos 70. Noite caindo atormentada, as luzes na janela da vizinha, mudando de cor. Essas delicadezas deixam na obra de José Medeiros um martírio doce, de solidão.
Mais tarde, tornou-se conhecido por igualar ou superar o mestre, além de migrar para o cinema. Dirigiu quatro curtas-metragens e um único longa, “Parceiros da Aventura” (1979). O número pequeno nem de longe se compara com a quantidade de participações que teve no métier original, o de fotógrafo.
Entre os seus maiores vôos estão “Rainha Diaba” (1974), “Ódio” (1977), “Chuvas de Verão” (1978). Sempre com pouca luz e contenção de excessos. Tirava engenhosidade do bolso, operava ínfimos watts.
De tanto mexer na fotografia para os outros, José Medeiros dizia que já tinha visto gente com menos talento se metendo na direção. Aí a curiosidade bateu. Durante as filmagens de “Xica da Silva” (1977), de Cacá Diegues, conversou com o historiador João Felício dos Santos. Chamou José Louzeiro, jantava na casa do escritor e finalmente – depois de tudo matutado – “Parceiros da Aventura” foi para a Lapa, Rio de Janeiro, jogar suas plumas.
Entre a zona central do Rio e a zona sul, “Parceiros da Aventura” surge como um cântico da boemia e das pequenas coisas. A violência vai separando as tribos que, no início, parecem uma só. Um grupo coeso em que há a prostituta (Ana Maria, Isabel Ribeiro), o desempregado (Benedito, Milton Gonçalves), o malandro (Vaselina, Marcus Vinícius), o músico (Paulo, Paulo Moura), o funcionário público (Erva Doce, Procópio Mariano).
As rodadas de chope, o clarinete de Paulo Moura – dando uma palhinha de ator –, as mesas que de repente são invadidas por um molecote vendedor de jornal, flores aleatórias, o cheiro esotérico de botequim que quase se pode sentir a 30 anos de distância. No mesmo ano, “Muito Prazer”, de David Neves, operava nesse registro de amor carioca. Vide a cena de Nelson Cavaquinho dedilhando o violão e unindo um dos arquitetos aos pivetes.
Ana Maria e Vaselina têm um namoro interracial. Desses que ainda hoje são tabu e que apareceriam em poucos filmes. Moram juntos no cafofo de paredes cor-de-rosa, um colega se masturba levemente ao ouvi-los em ação.
Apesar de toda a malícia do sexo, Ana pede, por favor, que o malaco se case com ela. Oficializar a relação, vejam vocês. Humanidades que o cinema brasileiro um dia contou, num vazio tremendo, demasiado humano, porque o amor não é só amor. Também pode ser utilidade, entrega, ciúme, interesse próprio. Ana Maria está no bando de Vaselina, gosta dele, trafica pó com ele, mas também opera com o rival.
Papel complicado, a mulher troca um olhar definidor com Benedito. Sem dizer nenhuma palavra, torce para que o motorista de ônibus, íntegro e honesto, não se junte ao grupo de Vaselina. O diretor parece ter confiado imensamente nos dois, Isabel Ribeiro e Milton Gonçalves, a ponto de entregar-lhes a força da trama. É a partir deles que saem os motores do filme, a partir deles que os enredos se originam.
Benedito escorrega, não fura a greve que outros motoristas estavam tocando na cidade. Um detalhe verídico, pois a greve foi enxertada no filme e acontecia em tempo real no Rio de Janeiro. Benedito não assina contrato com uma empresa de ônibus que queria demitir os grevistas e continua a morgar meses de atraso no aluguel. Atende ao chamado de Vaselina: puxa um carro de madame. Não percebe na hora, mas a filhinha da madame estava no banco de trás – aspecto fundamental no roteiro.
A surpresa de encarar a menina piora o sofrimento de Benedito. O que era assalto passa a sequestro. E o que é sequestro transforma o grupo. Antes traficantes, agora sobem um degrau na escala do crime. Por outro lado, a onipotência de Vaselina, movido a pó, o faz acreditar estupidamente na vitória, mal sabendo que o corvo negro – confuso e amoroso – de Ana Maria estava na emboscada.
Os três ficam pajeando a garota. Uma vira mãe sem querer (Ana), um vira tio atormentado de culpa (Benedito), outro vira chefe sonhando rios de dinheiro (Vaselina). Mundo paralelo que Paulo e Erva Doce nem imaginam que exista, nem sabem aonde os idolatrados amigos estão se metendo.
Esse gato e rato vai tirando as máscaras da amizade. O carinho até continua, mas sem água com açúcar, sem versão Walt Disney. Paira o egoísmo por todos os lados. Talvez um pouco menos em Benedito e Paulo que, de tão sonhador, acaba sendo engrupido por um escritório multinacional de música. Apesar de a dicção de Moura não ajudar às vezes, ainda assim a atuação é desconcertante: Paulo Moura era, de fato, o personagem. Como se Pixinguinha tomasse uns copos de frente para as câmeras, naquela fidalguia de nobre.
Enquanto isso, Erva Doce vive o burocrata falastrão. O fulano que conseguiu emprego porque conhece Beltrano e um monte de siglas de departamentos. A fauna de mulheres que cruzam as pernas ou são azedas, os homens puxa-sacos que invejam o chefe. Esse vazio de gente pequena, a total mediocridade de repartição aonde se penduram paletós e se bebem copinhos sujos de café.
E esperando a filha, a mamãe apetitosa (Louise Cardoso) segura a mão da colega idem (Maria Zilda). Deus, o que será da pequerrucha? No tempo em que policial espancava bandido na frente de jornalistas, todos estão loucos para mostrarem serviço. Correm às pampas para encontrarem os sequestradores.
Circulando entre eles, a penca de figurantes como Stepan Nercessian, Reginaldo Faria, Cosme dos Santos – a trinca de “Barra Pesada” (1977), que Medeiros fotografou. Rodolfo Arena, Maurício do Valle, Flávio Migliaccio, Camila Amado, Luthero Luiz, Isabella, Wilson Grey, Zózimo Bulbul, Leovegildo “Radar” Cordeiro. Participações carinhosas, que pipocam aleatoriamente.
O desfecho da história nem importa tanto, senão pela mistura entre a crônica do cotidiano e a estética da violência. Desejar progredir, enganar, ser enganado, com a grosseria de tiro explodindo na frente da menina que olha para tudo, sem ser protegida, no estilo amoral dos anos 70. Noite caindo atormentada, as luzes na janela da vizinha, mudando de cor. Essas delicadezas deixam na obra de José Medeiros um martírio doce, de solidão.
11 comentários:
fiquei curioso pra ver esse filme depois do seu texto. Nunca tinha nem ouvido falar.
Ando atras também de um filme passado na estrada durante a queda de uma barreira ou algo asism que deixa os personagens na chuva com vários conflitos se estabelecendo. Vi um trecho uma vez no Canal Brasil mas estava de saida e ai nunca mais. Voce conhece esse filme, Andrea?
Rodrigo, o "Parceiros da Aventura" é uma das maravilhas desconhecidas do cinema brasileiro. E, pelo que você comentou do outro filme, deve ser o "Jorge, um brasileiro", do Paulo Thiago. Estrelado pelo Carlos Alberto Ricelli.
não é não, Andrea. Jorge, um Brasileiro eu vi. Dei uma de detetive. È Sete dias de Agonia do Denoy de Oliveira que fez Amante muito louca. Eu lembro que quando assisti um trecho estava no auge da tal retomada e eu fiquei impressionado com a visceralidade do filme em contraste com aquele cinema de plástico que vinha sendo desovado, aquele tédio temático, aquelas situações com a mesma dramaturgia previsivel. Nem sei se é um grande filme. Mas quando apareceu na tela aquelas imagens, daquelas pessoas em situação limite, tão contrastante com aquela pasmaceira bem comportada das leis de incentivo parecia que eu tinha recebido uma brisa de vento. Tipo, ai que alivio..quero mais..rss
curiosamente o único comentário sobre o filme que eu li no IMDB estava em inglês:"This film is a pride of Brazilian film industry. Certainly the best work from the great director Denoy de Oliveira (now deceased), it was based on a novel from the celebrated writer Domingos Pellegrini, "O Encalhe dos 300". It tells the story of a group of people who find themselves bogged down in a muddy highway situated in a remote forest after a rainstorm. This miscellaneous group consists of people so different as truck drivers and a wealthy businessman, nuns and prostitutes, drifters, crooks and even artists from a little circus. The only thing they have in common are the hardships they endure during their seven days in the rain and the mud, isolated from the world. This initial situation unfolds into one million stories of love and hate, comradeship and infamy, life and death; during this hell we take a deep tour into the human soul. One little dialog captures the spirit of the film: one kid asks his mother, a poor migrant from northern Brazil, "Mum, where are we going to?", and the mother: "Does it make any difference?". No other movie that I have ever seen has made such an intimate portrait of an entire people (in this case, the Brazilian people), than this one. Touching, unforgettable."
Bem, achei que se teria alguém interessado em achar esse filme seria você , Andrea Ormond. Desculpe invadir a area de comentários sobre um filme com outro.
não sabia que ele era irmão do Xavier de Oliveira...
Pela sinopse que você deu parecia de cara o "Jorge, Um Brasileiro", Rodrigo. Não chegou a gravar do Canal Brasil? Agora é como eu disse no texto do "Caveira My Friend": reza, se benze ou procura em mostras. Terrível. O Denoy é irmão do Xavier, sim. Na entrevista que o Xavier me deu, há uns trechos muito bonitos sobre a relação dos dois.
Ótimo você ´resgatar´ o filme, Andrea. O Medeiros era meu primo (eu tbm sou originalmente do Piauí), e, muito legal a sua comparação com o cinema tão carioca do David Neves.
ANDREA,SEMPRE QUE FALAM DE CINEMA NACIONAL COMIGO, EU PASSO O ENDEREÇO DO SEU BLOG,A ALGUM TEMPO CONHECI UM ATRIZ,CINIRA CAMARGO, QUE TRABALHOU EM VÁRIOS FILMES DA DÉCADA DE 70 (CANGACEIRAS ERÓTICAS,PENSIONATO DE MULHERES,GARIMPEIRAS DO SEXO...ETC)QUE ASSISTI NO CINEMA DO MEU BAIRRO(COM A CARTEIRINHA DE ESCOLA FALSIFICADA),MAS VOCE ESCREVE SOBRE ALGUNS QUE VI E NÃO LEMBRAVA MAIS,GRANDE ABRAÇO.FLOREAL.
seu blog é ótimo, sempre acompanho... tanto é q adicionei a minha lista! mas , gostaria de te falar uma coisa : apresento um programa numa web rádio e há uma parte, no programa, q falo sobre 'dica de cinema'. Então , queria pedir autorização para falar do teu blog e dos teus textos como dica de cinema com todos os créditos referentes ao seu blog. meu email é jose.giba@gmail.com para retorno da resposta e também para vc mandar uma minibiografia q irei acrescentar no final da dica de cinema .... aguardo retorno, forte abraço fraterno e sucesso na caminhada!
Bacana, Marco. Realmente acredito que o espírito dos dois filmes combinam muito. O "Parceiros" e o "Muito Prazer" têm um samba heróico, uma carioquice poética.
Floreal, quer dizer que você falsificava a carteira da escola? rs Mas você está em boa companhia, já ouvi outras pessoas comentando sobre esse método, era eficaz. O "Pensionato de Mulheres" do Clery Cunha é bem interessante, uma boa pedida de texto. Obrigada, grande abraço.
Olá, poeta, nos falamos por email. Grande abraço.
Realmente é uma maravilha ainda não reconhecida por muitos!
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