segunda-feira, junho 13, 2011

Caveira My Friend


Para encontrar determinados filmes brasileiros, aconselho o pesquisador a se benzer, fazer uma prece ao santo de admiração, ter paciência, acompanhar mostras de cinema e vasculhar pilhas de vhs antigas. Um dia, quem sabe, o fantasma bate na porta.

A caixa de dvds “Bahia, 100 Anos de Cinema” – divulgada em 2011 pela Secretaria de Cultura do estado – quebra a via crúcis da espera e ateia fogo nas lacunas. O projeto nos dá o alívio de termos por perto Edgard Navarro, Roberto Pires, Fernando Coni Campos, dentre tantos nomes e títulos. Autores diferentes, tendências diferentes, agora guardam em comum a visibilidade. Estão acessíveis em obras que, na maior parte das vezes, se escondiam por aí, sem poderem ser vistas ou tocadas.

Selecionei do box o “Caveira My Friend” (1970), de Álvaro Guimarães. A princípio, um colega de classe de “Meteorango Kid, Herói Intergalático” (1969), de André Luiz Oliveira.

Dois ícones do cinema baiano experimental – vulgo “marginal” –, da virada dos anos sessenta para os setenta. Fumam os mesmos cigarros alucinógenos, cometem os mesmos porres homéricos, tascam feitiços nos mesmos agentes de repressão: pais, chefes, padres, policiais. No entanto, apesar das semelhanças, batem a sineta do recreio em volumes diferentes.

“Meteorango Kid” tem o estilo solar, espontâneo. Uma curtição, como o próprio diretor escreve em um letreiro do filme. “Caveira” usa gags, é cômico, mas tem a atmosfera soturna. Álvaro Guimarães filtrou os sincretismos e os godardismos, utilizou uma reflexão prévia. Daquele tipo que transbordava na sua própria formação pessoal, independente de querer acessá-la ou não.

Homem de letras e teatro, usina criativa, Álvaro faleceu em 2008. Participou de “Barravento” (1961) – o clássico, do golpe branco de Glauber Rocha e Rex Schindler para cima de Luiz Paulino dos Santos.

E, aliás, influências de Glauber aparecem de raspão em “Caveira”. Dado interessante, pois sabe-se que o movimento underground/“marginal”/experimental trabalhava numa frequência bem diferente do Cinema Novo.

Ouçam as rajadas de metralhadora se misturando com as dunas, no momento em que os policias perseguem os meliantes. A sequência lembra o final de “Terra em Transe” (1967), a festança carbonária que “Meteorango Kid” realizou de outra maneira, na base de histórias em quadrinhos e rebelião universitária.

“Caveira” faz alguma “crítica social” ao colocar a periferia de Salvador. Por instantes, está fora do eixo Pelourinho, em que gravita “Meteorango” e que aparece, via de regra, em “Caveira”. Graças às queridas divindades lisérgicas, a denúncia tem mais de non chalance do que de presepada pseudo-sociológica – algo que embrulharia os estômagos de Guimarães, Oliveira e do colega catarinense-paulistano, Rogério Sganzerla.

A violência subdesenvolvida de “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) é aproveitada pelo diretor. “Caveira My Friend” conta as peripécias de uma trupe que ataca, mata, arrebenta e nem sabe por quê. À medida em que vão caminhando pelas ruas ou andando de carro, a revolta se traveste de Novos Baianos, happenings, bares – se afastando de Sganzerla e se aproximando de Oliveira.

O filme traça um panorama do que acontecia na época, sob o olhar supostamente provinciano, de cineasta nordestino. Um diálogo sobre o protagonista chama atenção: “Hippies pertencem a outro mundo, não interessa a ele.” Além da onda hippie, há uma citação da figura onipresente em 1970, Jean Paul Belmondo – um cartaz de “Ho! A Face de um Criminoso”.

Passando para a metalinguagem, típica do cinema experimental, encontramos depoimentos sobre Álvaro Guimarães himself, ditos de modo desconcatenado por não-atores e com brincadeiras na banda sonora. Percebam, ainda, a frase de um curioso membro da equipe (Gatto Félix): “Bandido demais vira bicho, bicho interessa?” A incrível dúvida toca na idéia de redenção através da criminalidade. “O Anjo Nasceu” (1969), de Júlio Bressane, havia se tornado um marco do gênero.

“Caveira My Friend” demonstra um cuidado bem particular na composição das cenas. Pelo menos uma delas é absolutamente antológica. Eis que baixa um caboclo defensor da monarquia, no meio de uma festa, em uma garota. Detalhe: diz-se antigo dentista da Princesa Isabel e afirma que Dom Pedro voltará a ocupar o trono.

Quem imaginaria o cross-over de religião e tiração de sarro? O claro-escuro, a maquiagem, a fotografia conseguem deixar o rosto da atriz em suspenso. Pouco depois, a menina está na cama com dois amiguinhos e espanta a mãe que vinha servir o lanche em uma bandeja.

Outra mãe rende novas frases, deliciosas. A pobre coitada, velha, catatônica, sentada em um descampado. A filha explica, com candura: “É minha mãe. Ela ficou assim por causa do sol.” Close no olhar sumido da mulher, que deve ter se controlado bestialmente para não rir.

Baby Consuelo encarna Baby Consuelo. Ainda de menor, aos 17 anos de idade, no papel de namorada de Caveira (Caveirinha, ator coadjuvante em “Meteorango”). A certa altura, Baby fala o nome da certidão de nascimento: “Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade”. Nascida em Niterói, Rio de Janeiro, a garota que varou o mundo antes de gritar “Rá!” no Rock in Rio e ter filhos de alcunhas exóticas. Interessante que “Meteorango” pôs o futuro esposo de Baby, Pepeu Gomes em um ponta, mas que não assume tanta centralidade quanto a participação de Bernadete.

A quebra das instituições – Baby assume que fugiu de casa – também é sentida na personagem do funcionário público. Um coitado de bigode, cabelo para o lado, que manda carimbadas aleatórias nas pensões de uma repartição qualquer. Casamento, filhos, coisas do gênero, flutuam no tempero ácido do diretor.

Abraços masculinos idem, com um lirismo que escapa da homossexualidade e que é tão representativo da cinefilia na contracultura. É como se pudéssemos ver in loco e em tempo real o que Edgard Navarro descreveu em “Eu Me Lembro” (2005). Belo e autobiográfico, profissão de fé, envolta na memória.

A Lauper Filmes, de Luiz Sérgio Person e Glauco Mirko Laurelli, co-produziu “Caveira My Friend” com Joaquim Guimarães e Orlando Senna. Parceria entre Bahia e São Paulo (sede da Lauper), que possibilitou a Glauko assinar a montagem.

Peça-chave no rebuliço, Álvaro Guimarães não retornou à direção em cinema. Performer saboroso, Álvaro teria queimado uma cópia de “Caveira My Friend” em plena Praça dos Três Poderes, na capital da República, em protesto contra a interdição pelos censores. A piromania foi momentânea. Por ajuda do destino, chegaram-nos outras cópias que, encapsuladas no delírio, revelam a eternidade da fita.

7 comentários:

André Setaro disse...

Findo o chamado Ciclo Baiano de Cinema, na primeira metade dos anos 60, cujo canto de cisne foi 'O grito da terra', do feirense Olney São Paulo, a partir de 1968, sob a influência de 'O bandido da luz vermelha', carro-chefe do 'cinema underground', surge, na Bahia, uma nova geração de cineastas 'transgressores', que se filiam aos 'postulados' sganzerlianos: o 'surto underground'. O filme de maior sucesso é 'Meteorango Kid, O herói intergalático', de André Luiz Oliveira, e, nas suas pegadas, acontece 'Caveira, my fried', de Álvaro Guimarães, 'A construção da morte', de Orlando Senna, 'Voo interrompido', de José Umberto, sendo que, este último, média, mas, nas palavras do próprio Álvaro Guimarães, é o primeiro filme verdadeiramente 'marginal' feito na Bahia. Dois anos depois aparecem 'Akpalô', de José Frazão, e, mais adiante, 1972, temporão, 'O anjo negro', de José Umberto.

Você foi muito feliz na distinção entre 'Meteorango Kid' e 'Caveira, my friend'. O primeiro é, realmente, um filme 'solar', enquanto o segundo, 'noturno'. O espírito de 'non chalance' no filme de André Luis Oliveira é ainda um tanto ingênuo, enquanto em 'Caveira, my friend' nota-se um teor de 'esculhambação' sadia que se espraia em todos os níveis: na própria concepção do filme, na sua linguagem, na sua estrutura audiovisual, na sua iconoclastia absoluta em relação ao que é mostrado. É um filme demolidor em todos os sentidos e com um amargo sabor pessimista, enquanto 'Meteorango' tem um acento otimista (a alegre recepção familiar quando Lula volta no fim embora não desprovido de ironia e desalento (Lula volta para a cruz).

Conheci Álvaro Guimarães, que tinha um profundo conhecimento de teatro e literatura. Dirigiu, na Bahia, algumas peças importantes, a exemplo de 'Uma obra do governo', baseado em 'O bem-amado', de Dias Gomes. 'Caveira, my friend', apesar de assinado por ele, é um filme de grupo, feito numa espécie de 'comunidade', como era costume no período.

O melhor texto sobre 'Caveira, my friend', este vulcão desconhecido.

Andrea Ormond disse...

André, uma das coisas que me chamam a atenção nesse cenário da contracultura no Brasil é que realmente havia grupos além de Sganzerla e Bressane. O underground baiano, por exemplo, que você destrinchou belamente, com grande precisão. O grupo do "Geração Bendita", na serra de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, filme sobre o qual escrevi há pouco tempo. Do núcleo baiano, o Álvaro Guimarães era um grande depoimento, que se perdeu. Gostaria de ter conversado com ele sobre essa linha que demonstrei no texto do "Caveira, My Friend". O ceticismo, o desbunde, todos misturados em um filme com algumas cenas inesquecíveis. Obrigada pelo comentário, sempre enriquecedor.

Vagalumeazul disse...
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Vagalumeazul disse...
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Vagalumeazul disse...
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Vagalumeazul disse...

Falando em cinema underground gostaria de ler uma resenha tua sobre Os Monstros de Babaloo. Uma pérola cheia de palmeiras descabeladas. Aguardo. abçs

Rafael Porto disse...

Muito bom o texto! Como vc conseguiu o box dos 100 anos Cinema Bahia?