Adriano Stuart, um dos fígados mais resistentes de toda a indústria cinematográfica, dirigiu em 1975 o indescritível “Kung Fu Contra as Bonecas”. Um pandemônio cheio da mentalidade insana e deliciosa dos 70, que – Hossana nas alturas – se ajeita com muita cara de pau.
Em 1975, a temática homossexual no cinema brasileiro se restringia a um gueto ainda menor do que é visto hoje em dia. “Cio” (1971), de Fauzi Mansur, toca nesse dilema. Um bonitão corteja um garotinho, que depois se vê mulher. “Rainha Diaba” (1974) usa o aspecto lisérgico e de ultraviolência, em que Diaba é casualmente gay. Poderia não ser, mas se não o fosse, perderia bastante da aura. “Os Imorais”, de Gerado Vietri, faria em 1979 um acerto de contas entre amor, preconceito e sinceridade, como poucas vezes se viu.
O gay power de Adriano Stuart em “Kung Fu Contra as Bonecas” é absolutamente fora do eixo. Cínico, hilário, joga uma purpurina na testosterona do protagonista – Chang, que ele mesmo faz questão de esculhambar. Um metrossexual pioneiríssimo. Faz biquinho, ajeita as madeixas em forma de cuia, nega fogo a Helena Ramos (!) como o capeta foge da água benta.
Mistura cangaço, faroeste italiano, “El Topo”, Bruce Lee e adjacências. Inclui o girl power de Mariinha (Helena Ramos) distribuindo catiripapo a rodo, seca de vontade de vingar o falecido pai. Mais ainda: os espectadores ingênuos, que seguram por aí as cartilhas oficiais do cinema nacional, vão se assustar com Maurício do Valle. O intérprete de Antônio da Mortes, capanga dialético de Glauber Rocha, protótipo do matador que não agüenta o povão profundo e vai parar em teses mil na academia.
O que dizer de Maurício do Valle em “Kung Fu Contra as Bonecas”? Sinceramente. (Pausa para reflexão). Barbado, de bobs no cabelo, fazendo o toucador e pintando as unhas. Se os histéricos já se irritavam com o lenço lilás de Antônio das Mortes em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, aqui no “Kung Fu” poderão estapeá-lo à vontade, no papel de Capitão Severino Azulão.
Um cangaceiro mequetrefe, amante de um tal de Travessa, jagunço que usa prótese dentária e leva Azulão para dentro de uma tenda de camping. É bonito de se ver. Ninguém é de ninguém no cangaço das meninas, seu chimbungo da moléstia.
A quadrilha de Severino Azulão é tão má, tão má, que assassinou o pai de Mariinha. A garota consegue escapar do estupro, ajudada por Chang (Adriano Stuart). Antes de partir para o ataque, é claro que ele pendura o casaco e a bolsa, delicadamente, em um cabide.
Chang também teve a família dizimada por Severino Azulão e se une meio a contragosto a Mariinha – que, na verdade, preferia ser estrela de cinema. Vive lembrando dos conselhos de um sansei negro, imenso, de túnica vermelha e bigodes brancos.
Mariinha e Chang tentam se conhecer melhor. Aqueles papos: “De onde você veio?” “Da China, a pé.” “Você é chinês mesmo?” Os olhos de Chang lacrimejam. Atenção para os longos silêncios: “Papai era chinês... Mamãe, pernambucana... Vovô, australiano... Vovó, grega... E o titio... pelotense.” “Você é simpático. Meio feinho, mas é simpático.” Em seguida, o lado Servicine aparece e dá a entender que Mariinha comete um ato libidinoso, em toda a sua oralidade, com o embasbacado rapaz.
“Kung Fu Contra as Bonecas” ridiculariza de maneira tão azeitada o falso moralismo e o excesso de bile que até crianças zoam de Chang, tacam pedra. É um lóki totalmente desmoralizado. Já o vilão maravilha, Severino Azulão, passa os dedinhos no rosto de Travessa: “Cabra!... Chuchu beleza...”. As gargalhadas são inevitáveis. Canta “Camisa Listrada”, de Assis Valente – o pederasta de plantão da música popular brasileira –, enquanto os capangas dançam xaxado. O companheiro homoerótico, Travessa, retribui o carinho e dá-lhe umas apalpadas em Azulão.
Interessante que quando Azulão se deita com uma prostituta – mãe de Mariinha, que não a vê há anos –, conversam como se fossem amigas de bingo: “E me respeite, que eu sou uma senhora!” Severino Azulão é bissexual, ora essa. Quem diria e quem entenderá tamanha reviravolta? Afinal, para os bocós, jagunço tem que ser macho e gay não pode transar mulher. Mas acontece que Severino pode. Pode, vai e arrasa.
Além de Adriano Stuart, constam no roteiro Alfredo Palácios, Walter Negrão e Rajá de Aragão. Um “olê, mulher rendeira”, um clima de elevator music (Beto Strada) com o folclore que Lima Barreto nunca imaginaria. André Klotzel, futuro diretor de “A Marvada Carne” (1985) e do recente “Reflexões de um liquidificador”, faz a assistência de direção.
A próxima empreitada de Adriano Stuart seria o ecológico “Bacalhau” (1975), vulgo “Bacs”. Uma resposta cômica ao “Jaws” de Steven Spielberg. Recém-chegado da participação como ator em “O Exorcismo Negro” (1974), de José Mojica Marins, “Kung Fu” abre as portas para o Stuart diretor. Tarefa que incluiria vários títulos de “Os Trapalhões” e o lúdico “Fofão e a Nave sem Rumo” (1988), em que se ouvem os grugrugrus de Fofolo, primo de Fofão – o alienígena peludo e afásico do grupo “Balão Mágico”.
Campos, estradas desertas, sol a pino, flauta doce. “Bruce Lee versus Gay Power” – título da versão estrangeira – é um Stonewall do deboche. Em tempos de guerra, misoginia, homofobia e bestialidade, dai-nos paciência, Senhor. A sacrossanta engenhosidade nacional é o que ainda nos salva. Livrai-nos de todo o tosco mal. E ademã, que eu vou em frente. Amém.
Em 1975, a temática homossexual no cinema brasileiro se restringia a um gueto ainda menor do que é visto hoje em dia. “Cio” (1971), de Fauzi Mansur, toca nesse dilema. Um bonitão corteja um garotinho, que depois se vê mulher. “Rainha Diaba” (1974) usa o aspecto lisérgico e de ultraviolência, em que Diaba é casualmente gay. Poderia não ser, mas se não o fosse, perderia bastante da aura. “Os Imorais”, de Gerado Vietri, faria em 1979 um acerto de contas entre amor, preconceito e sinceridade, como poucas vezes se viu.
O gay power de Adriano Stuart em “Kung Fu Contra as Bonecas” é absolutamente fora do eixo. Cínico, hilário, joga uma purpurina na testosterona do protagonista – Chang, que ele mesmo faz questão de esculhambar. Um metrossexual pioneiríssimo. Faz biquinho, ajeita as madeixas em forma de cuia, nega fogo a Helena Ramos (!) como o capeta foge da água benta.
Mistura cangaço, faroeste italiano, “El Topo”, Bruce Lee e adjacências. Inclui o girl power de Mariinha (Helena Ramos) distribuindo catiripapo a rodo, seca de vontade de vingar o falecido pai. Mais ainda: os espectadores ingênuos, que seguram por aí as cartilhas oficiais do cinema nacional, vão se assustar com Maurício do Valle. O intérprete de Antônio da Mortes, capanga dialético de Glauber Rocha, protótipo do matador que não agüenta o povão profundo e vai parar em teses mil na academia.
O que dizer de Maurício do Valle em “Kung Fu Contra as Bonecas”? Sinceramente. (Pausa para reflexão). Barbado, de bobs no cabelo, fazendo o toucador e pintando as unhas. Se os histéricos já se irritavam com o lenço lilás de Antônio das Mortes em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, aqui no “Kung Fu” poderão estapeá-lo à vontade, no papel de Capitão Severino Azulão.
Um cangaceiro mequetrefe, amante de um tal de Travessa, jagunço que usa prótese dentária e leva Azulão para dentro de uma tenda de camping. É bonito de se ver. Ninguém é de ninguém no cangaço das meninas, seu chimbungo da moléstia.
A quadrilha de Severino Azulão é tão má, tão má, que assassinou o pai de Mariinha. A garota consegue escapar do estupro, ajudada por Chang (Adriano Stuart). Antes de partir para o ataque, é claro que ele pendura o casaco e a bolsa, delicadamente, em um cabide.
Chang também teve a família dizimada por Severino Azulão e se une meio a contragosto a Mariinha – que, na verdade, preferia ser estrela de cinema. Vive lembrando dos conselhos de um sansei negro, imenso, de túnica vermelha e bigodes brancos.
Mariinha e Chang tentam se conhecer melhor. Aqueles papos: “De onde você veio?” “Da China, a pé.” “Você é chinês mesmo?” Os olhos de Chang lacrimejam. Atenção para os longos silêncios: “Papai era chinês... Mamãe, pernambucana... Vovô, australiano... Vovó, grega... E o titio... pelotense.” “Você é simpático. Meio feinho, mas é simpático.” Em seguida, o lado Servicine aparece e dá a entender que Mariinha comete um ato libidinoso, em toda a sua oralidade, com o embasbacado rapaz.
“Kung Fu Contra as Bonecas” ridiculariza de maneira tão azeitada o falso moralismo e o excesso de bile que até crianças zoam de Chang, tacam pedra. É um lóki totalmente desmoralizado. Já o vilão maravilha, Severino Azulão, passa os dedinhos no rosto de Travessa: “Cabra!... Chuchu beleza...”. As gargalhadas são inevitáveis. Canta “Camisa Listrada”, de Assis Valente – o pederasta de plantão da música popular brasileira –, enquanto os capangas dançam xaxado. O companheiro homoerótico, Travessa, retribui o carinho e dá-lhe umas apalpadas em Azulão.
Interessante que quando Azulão se deita com uma prostituta – mãe de Mariinha, que não a vê há anos –, conversam como se fossem amigas de bingo: “E me respeite, que eu sou uma senhora!” Severino Azulão é bissexual, ora essa. Quem diria e quem entenderá tamanha reviravolta? Afinal, para os bocós, jagunço tem que ser macho e gay não pode transar mulher. Mas acontece que Severino pode. Pode, vai e arrasa.
Além de Adriano Stuart, constam no roteiro Alfredo Palácios, Walter Negrão e Rajá de Aragão. Um “olê, mulher rendeira”, um clima de elevator music (Beto Strada) com o folclore que Lima Barreto nunca imaginaria. André Klotzel, futuro diretor de “A Marvada Carne” (1985) e do recente “Reflexões de um liquidificador”, faz a assistência de direção.
A próxima empreitada de Adriano Stuart seria o ecológico “Bacalhau” (1975), vulgo “Bacs”. Uma resposta cômica ao “Jaws” de Steven Spielberg. Recém-chegado da participação como ator em “O Exorcismo Negro” (1974), de José Mojica Marins, “Kung Fu” abre as portas para o Stuart diretor. Tarefa que incluiria vários títulos de “Os Trapalhões” e o lúdico “Fofão e a Nave sem Rumo” (1988), em que se ouvem os grugrugrus de Fofolo, primo de Fofão – o alienígena peludo e afásico do grupo “Balão Mágico”.
Campos, estradas desertas, sol a pino, flauta doce. “Bruce Lee versus Gay Power” – título da versão estrangeira – é um Stonewall do deboche. Em tempos de guerra, misoginia, homofobia e bestialidade, dai-nos paciência, Senhor. A sacrossanta engenhosidade nacional é o que ainda nos salva. Livrai-nos de todo o tosco mal. E ademã, que eu vou em frente. Amém.
10 comentários:
Belíssimo texto, Andrea. Vai fundo na questão, direto ao ponto, sacando superbem as influências todas - e bem definindo Adriano como um "fígado resistente". Eu só senti falta, na lista de influências, da menção ao seriado KUNG FU - porque é essa a base de tudo, sem referência alguma a Bruce Lee, na verdade; o seriado com David Carradine era um sucesso no Brasil. Fora isso, só a título de curiosidade: foi o filme que deu fim à histórica parceria Palácios-Galante na Servicine - e o Galante lista o filme entre seus fracassos de bilheteria no documentário O GALANTE REI DA BOCA. Parabéns.
Oi, Rodrigo, obrigada :) E "Bruce Lee e adjacências" foi ironia, lógico. Com a minha má vontade de fazer uma detalhada recriação da moda das artes marciais nos anos 70, que era fortíssima. David "Kung Fu" Carradine está subentendido nesse contexto. Preferi a abordagem gay e esculhambativa, que sempre me agrada mais :)
Na base dos brutos também amam e os bravos desmunhecam, Maurício do Vale sempre teve aquele, digamos, phisique du role para intrepretações gays debochadas. Na lembrança da temática, inesquecível o personagem boliviano que, em Toda Nudez Será Castigada, conquista o filho de Paulo Porto na prisão. E se Adriano Stuart cometecu o seu bacalhau, hoje vemos Elisabeth Shue no inacreditável Piranha 3D...
Adorei o Hossana nas alturas! ahahahah
Deve ser insano e apropriado para os dias absurdos que (ainda) estamos vivendo. Mais gay power! Onde será que dá para encontrar esse filme? por sinal, eu tô querendo mergulhar mais no cinema brasileiro e vou passear mais por aqui. até.
ahahahhaah Roberto, aquele olharzinho cândido do ladrão boliviano é assaz romântico. Imaginei o Maurício do Vale como ator nesta cena. Era uma criatura de um must, uma coisa impressionante. Nos "Sete Gatinhos", por exemplo, na piscina com a Regina Casé. Sabe que você citou o Piranha e um que me veio logo à lembrança foi o Alligator? Pois é, esse lado zoológico dos trashs...
Não bastasse o gay power, ainda tem o girl power. Mas com muita cara de pau, sempre! O "Kung Fu contra as bonecas" passa no Canal Brasil. Talvez você ainda encontre por lá.
Esse filme é um Trapalhões para adolescentes com direito a peitinhos de brinde! Um verdadeiro antecessor de Kill Bill!
Anônimo, antecessor de Kill Bill é forçar, mas um Kill Bill caboclo pode ser! rsrs E como pulava o Stuart...
Saudações Andrea: é claríssima a influência nesta Produção não só do Sucesso da Série Kung Fu , com o Legendário ( e recentemente falecido, em Bangkok/Tailândia, por Auto - Asfixia , ao que parece), como da Fase do conhecido Brucexploitation ,ou seja, uma série da Produções de Baixo orçamento feitas em Hong Kong & utilizando sósias , após o falecimento do Grande Mestre Bruce Lee.
Achei esse filme no Youtube, na íntegra: http://www.youtube.com/watch?v=wGOLw1f8LOQ&feature=related
Uma comédia maravilhosa e sem vergonha. Concordo com a análise. Parabéns.
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